Identifique algumas regiões conquistadas pelos muçulmanos nos séculos vii e VIII

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo busca refletir sobre as possibilidades dialógicas existentes no Islã a partir de uma discussão que perpasse pela concretude de sua manifestação na história. Ou seja: reconhecidamente, há textos corânicos e textos de expressões religiosas de grupos islâmicos que são dialogais. 1 Porém, para além destas referências que apontam para a importância do diálogo inter-religioso e da tolerância, em que medida se pode encontrar, no âmbito da existência real e histórica do Islã, perspectivas dialogais ou, pelo menos, perspectivas que indiquem certa porosidade islâmica para interagir com outras culturas e tradições religiosas? Nesse sentido, a proposta aqui apresentada é pensar o mundo muçulmano presente na Espanha medieval e compreender os mecanismos de interação social, cultural e religiosa que ocorreram nesse período. Em certo sentido, essa época aponta para possibilidades de interação do Islã com outras culturas de forma rica e essa interação gerou benefícios para os povos habitantes daquelas terras.

Com a finalidade de abordar essa temática e apresentá-la, partir-se-á de uma contextualização histórica acerca da presença muçulmana em terras ibéricas, procurando captar as formas de interação ocorridas. Quer-se ir para além de afirmações que abordam de maneira reducionista esse período, apresentando-o com uma roupagem irênica, não levando em consideração os vários tipos de interação, sendo alguns, inclusive, violentos.

Assim, o primeiro tópico a ser abordado diz respeito ao conceito de fronteira. Quando se fala em al-Andalus, de que se está falando? De que território? Além do mais, como considerar as fronteiras nesse período em que a interpenetração cultural e política foi extremamente porosa?

Em seguida, será apresentada brevemente a história da península Ibérica na perspectiva de se perceber os diferentes povos que nela viveram, visando com isso, sobretudo, preparar o terreno para que se compreenda o contexto que recebeu a presença muçulmana no ano de 711 da era cristã.

Após uma breve e sintética exposição do mundo ibérico pré-islâmico, será apresentada a história do período islâmico, enfatizando, sobretudo, o Califado de Córdoba, os períodos dos Almorávidas e dos Almóadas, os reinos de Taipas, para finalizar com o Reino de Granada e o processo de “Reconquista”.

Por fim, discutir-se-á o legado islâmico para essas terras, assim como as interações ocorridas, tanto em termos conflituais quanto dialogais.

2 AS FRONTEIRAS DE AL-ANDALUS

Quando se fala em fronteira, normalmente se quer dizer, segundo o Dicionário Aurélio, da “extremidade de um país ou região do lado onde confina com outro; de um limite”. O mesmo dicionário define esta noção, agora no âmbito da Física, como “limite material de um sistema; separação entre um sistema e o seu exterior” (FERREIRA, 1986, verbete Fronteira). Portanto, a primeira noção que vem à mente quando se utiliza esse conceito é a de que a fronteira marca uma divisão, uma separação entre dois territórios ou duas regiões. Nesse sentido, pode-se dizer que a península Ibérica sob o domínio muçulmano em seu período áureo concentrou-se na parte sul e central de seu território, estendendo-se ao leste e oeste, sendo que os reinos cristãos dominavam a região mais ao norte.

Porém, esse conceito de fronteira, na acepção acima mencionada, não é pertinente quando se refere ao período islâmico da península Ibérica. Primeiro, porque essa separação, entendida como ausência de encontro ou de mescla, entre o mundo islâmico e os mundos cristão e judaico, não ocorreu; paradoxalmente, a fronteira criada pela disputa armada do território ibérico foi também o lugar do encontro, da coexistência e do convívio dessas mesmas civilizações.

Depois, porque o que se denominou al-Andalus não era entendido apenas como a região controlada pelos muçulmanos, mas estendia-se muito além de seus domínios, atingindo a totalidade da península Ibérica. Aliás, mesmo a noção de Espanha abarcava a totalidade da península, englobando em seu seio o que hoje é Portugal e Espanha. De fato, não só entre os séculos XI e XIII, mas até muito mais tarde, o que se entendia por Espanha era algo correspondente à Hispania romana.

Também os escritores muçulmanos atribuíam o nome al-Andalus à totalidade da península Ibérica, independente de sua ocupação por uma população islâmica, cristã ou judaica, pois era a forma como nomeavam essa região. Segundo uma interpretação, esta nomeação, al Andalus, é provavelmente derivada da locução árabe “Jazirat al-andalus”, que quer dizer: a ilha ou a península do Atlântico. Com o tempo, essa denominação cada vez mais foi se restringindo aos domínios muçulmanos, pois, na medida em que os cristãos avançavam na “Reconquista” do território peninsular, esse conceito foi se modificando até ficar restrito, no século XIII, aos territórios muçulmanos de Granada. Por sua vez, os praticantes da fé islâmica, para indicar os reinos peninsulares cristãos, raramente se utilizavam do nome Isbaniya (Espanha), mas preferiam referir-se a Liyun (Leão), Qastila (Castela), Burtugal (Portugal) e assim por diante.

No âmbito deste artigo, a fronteira é pensada como “zonas geográficas de interação entre duas ou mais culturas distintas”. (WEBER & RAUSCH, 1994, posição 148). Nesse sentido, pode dizer respeito tanto a áreas de conflito escassamente povoadas, e que, decorrentes de um processo de conquista, vão alargando a presença de determinado povo em determinado território, quanto a áreas densamente povoadas, urbanizadas, em que diferentes culturas convivem e competem “pacificamente”, não sem tensões, para desenvolver suas formas de vida particulares e identidades.

As “fronteiras” são dinâmicas. Nelas se produzem relações, encontros, desencontros, conhecimentos e arte, representando, além de lugares e regiões, também processos que geram identidades, configurações e reconfigurações singulares, decorrentes de espaços e tempos vivenciados de forma singular. Assim sendo, em cada tempo e região, as fronteiras são móveis, caleidoscopicamente gerando diversos tipos de fronteiras entre diversos atores. Pode-se falar, então, de fronteiras econômicas, culturais, artísticas. Também se pode falar em fronteiras simbólicas, espirituais e religiosas, decorrentes da presença de religiões e religiosidades diversas numa mesma região.

Em al-Andalus existiram fronteiras entre muçulmanos, cristãos e judeus, fronteiras religiosas e simbólicas, que não foram só lugares de separação e tensão, mas lugares porosos de trocas, de mesclas, de aprendizado mútuo e de intercâmbio de experiências de sustento comum. Mas também, em cada grupo dessas religiões, existiram outras fronteiras. É assim que, entre os muçulmanos, existiam árabes, berberes e muwalladin, isto é, os neomuçulmanos. Mas mesmo entre os árabes, haveria períodos em que se encontraram em al-Andalus árabes sírios, árabes modharitas e árabes iemenitas. E dos berberes e muwalladin se pode dizer o mesmo.

3 AL-ANDALUS E SUA HISTÓRIA

A história da presença islâmica na península Ibérica pode ser dividida em diversas etapas: o início da presença muçulmana, o período do Califado de Córdoba, os Reinos de Taifa, o Período dos Almorávidas, o Período dos Almóadas, breve retorno dos Reinos de Taifa, a “Reconquista”, e o último baluarte da resistência islâmica: o reino de Granada.

Segundo Thomas F. Glick (1994, p. 47), em linhas gerais, dois grandes períodos se destacam e podem ser observados, referindo-se, sobretudo, ao período de domínio islâmico efetivo até o século XI, a partir de quando há a queda do Califado de Córdoba e, consequentemente, a diminuição de sua capacidade de governança na região:

1º: Período de Ajuste, que vai aproximadamente do ano 715 da era cristã – quando se designaram os governadores (Wali) e o novo território começou a se organizar como província do califado Omíada de Damasco – até meados do século IX, quando a sociedade islâmica começou a se tornar mais complexa;

2º: Período de Consolidação, que é marcado pelo poder e riqueza de al-Andalus até o reinado de ‘Abd al-Rahman III, e que terminou com a dissolução do sistema de governo no período dos anos 1000 a 1100 d.C.

O PERÍODO PRÉ-ISLÂMICO DE AL-ANDALUS: O DOMÍNIO VISIGÓTICO

Os Árabes, provenientes da Síria, juntamente com os berberes da África, quando adentram a península Ibérica se deparam, sobretudo, com o Reino dos Visigodos, marcado pelas contribuições romanas, embora eles não tenham mantido muito das suas técnicas, avanços arquitetônicos e estruturas de mobilidade.

O “Estado” visigodo era uma sociedade etnicamente estratificada, com uma estrutura política fragmentada, uma economia rural decadente e desequilibrada e com uma vida urbana rudimentar. Além disso, os visigodos constituíam-se como um povo pastor e que se concentrava nas regiões mais adequadas às suas atividades econômicas tradicionais.

Aproximadamente 200.000 visigodos governavam oito milhões de hispano- romanos. Inicialmente eram cristãos arianos 2 enquanto os hispano-romanos, católicos. A separação entre esses dois grupos se sustentava institucionalmente através de um sistema legislativo e administrativo dual: cada província possuía um governador romano que administrava a justiça para os romanos; possuía também oficiais visigodos que administravam a justiça, segundo o uso germânico, para os visigodos. Estes também tinham certa jurisdição sobre os romanos. Em 652 da era cristã, houve a reforma do sistema legal e administrativo do Reino, abolindo o duplo sistema jurídico, o que, mais que provocar a união ou fusão dos dois grupos, acentuou as tensões.

Havia ainda diferenciação em relação ao trabalho: os visigodos, como já afirmado anteriormente, eram pastores e também desenvolviam uma economia florestal e extrativista (devido a essa forma menos elaborada de produzir o próprio sustento, os romanos chamavam os visigodos de rudes e ignorantes, os últimos a aprender a ler e escrever); os hispano-romanos eram agricultores, no estilo dos agricultores mediterrâneos: cultivavam cereais como trigo e cevada. Porém, sua economia se encontrava em profunda desordem: uma série de catástrofes naturais no século VII gerou más colheitas, fome e epidemias.

Também o comércio dos visigodos não ia bem e fracassaram na tentativa de extração de metais do subsolo, coisa que os romanos faziam muito bem (ouro, ferro, chumbo e estanho). Não souberam manter as estradas romanas que cortavam toda a Espanha e nem souberam aproveitar do conhecimento romano acerca das técnicas de plantio. Nesse sentido, pode-se dizer que os visigodos foram incapazes de construir uma civilização a partir das bases romanas, embora tenham sofrido uma influência dessa cultura em sua arte e formas de expressão.

Porém, por mais limitada que fosse a cultura visigoda, ela não foi uma civilização isolada do resto do mundo. É tentador ver o Islã como o elemento que deu projeção à península Ibérica e sua recuperação, segundo afirmação de Toynbee. (1947, v. III, p. 323). Porém, tal como Jocelyn Hillgarth (1962, p. 170) assinala, a Espanha visigótica havia sucedido ao Norte da África como sede do saber cristão antigo e, na época de Isidoro de Sevilha, possuía vínculos culturais e artísticos com o Oriente Bizantino, com as sociedades pré-feudais da França merovíngia, da Irlanda e da Inglaterra. Sem dúvida que a conquista islâmica representou um avanço em termos sociais, econômicos e culturais, porém, seu significado maior foi no sentido da intensificação das relações com outros povos e na qualidade dessas relações e da organização socioeconômica e cultural.

A CONQUISTA MUÇULMANA

A conquista foi preparada no Marrocos e levada a cabo principalmente pela cavalaria berbere sob a tutela dos árabes sírios. Os visigodos foram derrotados em 711 da era cristã, na batalha de La Janda, porém, ainda resistiram durante algum tempo. Mas em questão de cinco anos, a península Ibérica estava subjugada e foi integrada ao Império Muçulmano, através do Califado Omíada de Damasco. O que facilitou uma conquista rápida do território espanhol foi a falta de uma organização militar bem estruturada, bem como o apoio popular ou, pelo menos, a indiferença popular.

Também há quem defenda a ideia de que o que houve foi uma derrocada da ordem estabelecida pelos visigodos que se sustentava na relação entre Estado e Igreja. Essa ordem se estabeleceu a partir da conversão de Recaredo ao catolicismo e foi afirmada no VIII Concílio de Toledo, em 652 da era cristã. Ela se rompeu com a fuga do bispo Sinderedo em 712 d.C. para Roma, que tornou a coesão social e a governabilidade da região insustentável. (ARCE, posição 4169ss).

Roger Garaudy defende a tese de que o Islã triunfou na península devido não a uma conquista militar, mas antes, à uma mudança cultural, caracterizada pela inserção do Islã no cristianismo ariano. Essa inserção já tinha sido preparada pelo priscilianismo 3.

A Espanha pré-islâmica era cristã e basicamente ariana. [...] O que teve lugar na Península foi uma guerra civil (entre cristãos que aceitavam a crença na Trindade e na divindade de Jesus, proclamada pelo Concílio de Nicéia no ano 325, e os cristãos unitários, isto é, aqueles crentes que rechaçavam a Trindade e que viam em Jesus não a Deus, mas a um de seus profetas). (GARAUDY, 1987, p. 16).

Além disso, quando o Islã entrou na Península Ibérica, o problema que a Igreja vivia era o da heresia adocionista, segundo a qual Jesus Cristo era, de acordo com a natureza humana, filho de Davi e, segundo a Graça, adotado por Deus. Logo, ele não era Deus, mas foi adotado como Filho de Deus. Novamente uma crença que não atribuía a Jesus uma personalidade divina.

No entanto, é questionável essa opinião de Garaudy, uma vez que quem levou o arianismo para a Península Ibérica foram os visigodos. Porém, esse povo nunca chegou a ser a maioria da população (eram apenas 200.000) e nem chegou a promover conversões entre os hispano-romanos ao arianismo. Com certeza, deixaram suas marcas na cultura hispano-romana, assim como a presença dos judeus e sua crença na unicidade de Deus; porém, não uma marca à qual pudesse ser atribuída tamanha importância.

Desde seu início, a Espanha muçulmana viveu imersa em conflitos internos devido à competição e aos desentendimentos entre os chefes dos dois clãs dos exércitos conquistadores: Muza ben Nusair, chefe dos exércitos árabes, e Tariq, chefe dos exércitos berberes. Os árabes, por sua vez, possuíam conflitos herdados de seus quadros tribais ou étnicos. Existiam dois partidos, que se hostilizavam, herdeiros das antigas questões dinásticas: partido dos Modharitas, dominado pelas famílias koraichitas, parentes do profeta; e partido dos Iemenitas. Ao mesmo tempo, a organização da sociedade nascente também era marcada por essas divisões somadas às diferenças religiosas e étnicas trazidas pelos cristãos, judeus e pela presença de escravos na região.

Essa conjuntura, que perdurou nos séculos VIII e IX, marcou o início da conquista muçulmana sobre a Espanha e o primeiro período de sua história, o Período de Ajuste. Foi uma época que permitiu certo desenvolvimento econômico e político que gerou as bases para o estabelecimento dos povos muçulmanos na península. Outro elemento importante, nem sempre mencionado, foi a urbanização crescente desse território e o dinamismo econômico trazido pelos muçulmanos.

Em 755 da era cristã, desembarcou na praia de Almuñecar, ‘Abd al-Rahman, príncipe da família dos Omíadas que fugiu do massacre de toda sua família em Damasco, ordenado pelos Abássidas, que constituíram uma nova dinastia no Islã, com sede em Bagdá. Com sua atuação, criando um emirado Omíada em Córdoba, sem se opor diretamente à dinastia Abássida recém-instalada no califado islâmico, ‘Abd al-Rahman cumpriria um importante papel na constituição do Emirado de Córdoba e lançaria as bases para o surgimento do Califado de Córdoba em 929 d.C., que propiciaria grande desenvolvimento social e cultural da Espanha muçulmana.

2.2.1. O PERÍODO DO CALIFADO DE CÓRDOBA

O Emirado de Córdoba aos poucos gerou uma rápida urbanização e mudança na economia da região, que se tornou mais dinâmica. Com isso, fez-se necessária uma nova organização administrativo-sócio-econômica. O período de transição para a nova forma de estrutura política aconteceu sob o reinado de ‘Abd al-Rahman II, que coincidiu com a derrocada do poderio naval de Bizâncio, em 827 da era cristã, o que propiciou a abertura do Mediterrâneo para al-Andalus. Isso desencadeou um grande movimento comercial que iria impulsionar al-Andalus a se tornar um Estado rico e promover o desenvolvimento de suas cidades, principalmente Córdoba e Sevilha.

No ano de 929 da era cristã, o Emirado de Córdoba se proclamou Califado independente da autoridade do Califado Abássida de Bagdá, com ‘Abd al-Rahman III. Foi o período áureo da Espanha muçulmana. Com o califado e sua tradição de mecenato, as artes tiveram um desenvolvimento considerável. Os califas também incentivaram a produção cultural e científica e chegaram a construir uma biblioteca com 400.000 volumes.

Em sua atmosfera nasceu a idealização romântica do amor e a devoção quase religiosa do amado pela amada, que depois iria encontrar sua expressão no estilo poético da Itália do século XIII, que acabaria retornando à Espanha no Século de Ouro. Também é nesse ambiente que se originou a nova poesia lírica, que influenciou a lírica dos trovadores que surgiria na região de Languedoc e se estenderiam por toda a Europa ocidental.

Também na questão religiosa predominou a tolerância, principalmente com ‘Abd al-Rahman III (912-961) e Hakam II (961-976). Após a morte de Hakam II, entretanto, os Fuqaha 4 começaram a se impor. Eles tiveram condições de agir devido ao apoio constante do poder autoritário e centralizador, e agiram não só no âmbito religioso, mas também influenciaram na produção do conhecimento. Al Mansur, vizir de Hisham II (califa entre 976-1009 / 1010-1013), destruiu as bibliotecas do califa (400.000 volumes), eliminando as obras científicas, com exceção das de matemática, medicina e os tratados ortodoxos de jurisprudências. Ibn Massarra foi obrigado ao exílio; Ibn Hazm foi expulso de Mallorca; a obra de Al-Ghazali foi queimada; Ibn Tufayl e Ibn Ruschd foram exilados.

Nos primeiros anos do século XI começou a patentear-se a crise do califado, e parcelas do território de al-Andalus começaram a se declarar autônomas, dando início à sua desagregação. Com a morte de Hisham III, em 1031 d.C., desaparecia a figura do califa. Dessa ausência de poder centralizado, nasceram os Reinos de Taifas, cujo nome, derivado de uma palavra árabe, quer dizer facção. Foi al-Andalus fragmentada em diversos pequenos reinos.

2.2.2. OS REINOS DE TAIFAS

Os chamados Reinos de Taifas, no plano político, organizaram-se como principados independentes, fortificados, com exército, moedas, administração e uma corte real próprios. Seus governantes não se atribuíam o título de malik, ou seja, rei, mas autodenominavam-se hashib, fazendo referência a serem representantes de um califa, preservando-se assim a ideia de que eram submetidos a uma autoridade superior. Entretanto, eles eram a autoridade maior em seus principados ou reinos e, com isto, deixava de existir uma única autoridade sobre a totalidade das regiões conquistadas.

Esses pequenos reinos foram numerosos em al-Andalus – chegaram a ser em número de 26 – e viviam em incessantes guerras de fronteiras, nas quais, frequentemente, intervinham os reinos cristãos do norte, para os quais, com frequência, os Reinos de Taifas pagavam tributos, sob o intenso protesto dos fuqaha, com o intuito de receber em troca ajuda militar. Esses tributos eram chamados de páreas e ocasionavam um círculo vicioso: para pagar as páreas, os governantes lançavam mão de aumento de impostos; com isso, a população ficava insatisfeita e organizava levantes; para reprimir esses levantes, os governantes recorriam novamente aos monarcas cristãos, pedindo-lhes apoio militar.

Esse círculo vicioso chegou ao ponto de determinar zonas de influência de cada um dos reinos cristãos do norte: Leão em Toledo, Galícia em Badajoz, Castela em Valência, e Aragão em Zaragoza. Essa foi a situação explorada por aventureiros heroicos como el Cid, ou Rodrigo Díaz de Vivar, que alternativamente despojava e defendia os príncipes muçulmanos, e que acabou por se estabelecer em Valência como governante cristão independente de um Estado muçulmano.

Porém, o sistema de páreas e a desunião interna enfraqueceram os muçulmanos e fortaleceram os reinos cristãos, o que fica claro 50 anos mais tarde, no ano de 1085, quando Afonso VI de Castela tomou Toledo.

Apesar dessa situação de guerras de fronteiras e do pagamento de páreas, o comércio não se estacionou, mas recebeu um novo direcionamento: a necessidade de pagar as páreas aos monarcas cristãos fez aumentar a produção de ouro. Também houve aumento do crédito, administrado por judeus, devido à proibição eclesiástica da usura.

Por outro lado, a queda de Al Mansur e a instauração dos Reinos de Taifas propiciaram uma maior liberdade religiosa e cultural. As ciências, as letras e a filosofia desenvolveram-se em uma atmosfera frequentemente profana, livre e aberta a várias influências, inclusive a moçárabe, que teve um papel importante nesse período.

A desagregação do califado dificultou as comunicações com os centros culturais do Islã oriental. E o que aparentemente era uma desvantagem, acabou por levar a Espanha muçulmana a firmar-se como centro criador de cultura. Também a fragmentação do reino em pequenos principados propiciou a multiplicação de focos difusores das artes. E apesar da falta de recursos para investimentos em arte e a necessidade de se construir edifícios menores e mais simples, houve a compensação dessas desvantagens na grande riqueza decorativa.

A própria poesia andaluza adquiriu uma nova orientação.

É também a grande época da poesia andaluza. Secretários ou embaixadores, trovadores errando de palácio em palácio, cercados por pequenas orquestras de escravos músicos, cantam, seja em árabe dialetal, seja em românico; 5 as mais das vezes, misturam as duas línguas ou acrescentam-lhes curiosos empréstimos. Essa poesia popular andaluza, original, delicada, desconhece os temas clássicos ou religiosos. Mais picaresca, já desabusada, fala ela do orgulho das cidades da Espanha, da nostalgia do campo e dos tempos passados, das alegrias e tristezas do amor. (HEERS, 1977, p. 332).

No entanto, com esses conflitos, muitos homens de letras abandonaram a região e se refugiaram na África; outros vieram a morrer. Com isso, muito da literatura espanhola da época veio carregada de um pessimismo e desilusão.

2.2.3. PERÍODO ALMORÁVIDA E ALMÓADA

Diante do poderio dos reinos cristãos circunvizinhos, os reis de Taifas não conseguiram se sustentar por muito tempo e apelaram para ajuda externa, fazendo aliança com seus correligionários Almorávidas 6, da África do Norte, liderados pelo sultão Yusuf ben Taxfin. Os Almorávidas eram “Guerreiros de origem nômade [...] caracterizavam-se tanto pelo desprezo da refinada cultura que o califado legara aos Reinos de Taifas, quanto pela intransigência das convicções religiosas”. (VALVERDE, 1997, p. 154). Com isso, faziam oposição ferrenha aos cristãos. Também foram duros com os próprios muçulmanos da Espanha, que se viram dominados.

Concomitantemente, os Almóadas 7 começaram a se fortalecer na África e rivalizaram-se com os Almorávidas, que acabaram se enfraquecendo na Espanha, o que deu um novo alento aos antigos Reinos de Taifas. Consolidando, assim, o domínio do norte da África, também os Almóadas se voltam para al-Andalus, onde entraram no ano de 1147 e permaneceram até 1212 quando, nas Navas de Tolosa, 8 foram derrotados pelos cristãos. O resultado dessa derrota muçulmana foi o desequilíbrio de forças que se instaurou na Espanha medieval.

Almorávidas e, posteriormente, Almóadas foram os campeões da intolerância religiosa, atentos em defender a ortodoxia e certa pureza dos costumes. Seus soberanos cercaram-se de fuqaha, teólogos e juristas, e não deixaram liberdade religiosa para os não muçulmanos, o que explica, talvez, também o avanço da “reconquista” cristã, já que gerou um clima de intolerância, inibiu o comércio e propiciou emigrações maciças para o Norte da península Ibérica.

Os projetos arquitetônicos foram abandonados pela influência Almorávida, que só fizeram poucas construções além de mesquitas. Somente com a supremacia dos Almóadas é que se retomou o impulso da criação artística.

Porém, se o domínio Almorávida levou ao declínio da tradição poética erudita, ele propiciou a difusão da poesia popular representada pela moashaha e pelo zéjel9, formas poéticas criadas em al-Andalus e que, mais tarde, irão influenciar as obras de poetas hispano-árabes e hispano-judeus. Na questão dos hispano-judeus, nas composições líricas apareceram as jarchas 10 que, surgindo posteriormente às moashahas, tinham a função de fecho destas.

2.2.4. A RESISTÊNCIA DE GRANADA E A “RECONQUISTA”

As mudanças nos reinos cristãos nesse período de presença muçulmana foram lentas devido a questões econômicas. Seus estados, inicialmente, estavam fragmentados, desorganizados, de economia rural. No ano 1000 da era cristã, encontramos ainda uma sociedade agrícola estática, praticamente sem cidades e dependente do sistema econômico islâmico em vários sentidos. No entanto, reencontrando pouco a pouco a organização política, os cristãos formaram, através de uma evolução lenta e complexa, reinos empenhados na “Reconquista”, nome com que se denomina a tentativa de recuperação e o repovoamento dos territórios ocupados pelos muçulmanos 11. Seu período crucial se localiza entre os séculos XI e XIII e se encerra com a conquista de Granada em 1492, último reduto muçulmano na Península.

No período dos Reinos de Taifa (1031-1088 d.C.), a região de Granada foi governada pelos Zirids, uma tribo berbere do Marrocos. No ano de 1090, os Almóadas dominaram a região de Granada e a deixaram no ano de 1232, devido a problemas enfrentados com clãs berberes rivais no Marrocos. Com a partida dos Almóadas, os Násridas tomaram o controle da região, no ano de 1238 12. Logo em seguida, a situação desse reino de Granada tornou-se precária e se começou a pagar tributo ao reino de Castela, em 1246. Também batalhas eram travadas contra outros reinos cristãos, o que obrigou Granada a contar com o apoio militar dos Marinidas, uma tribo berbere sucessora dos Almóadas no norte da África.

Durante o reinado de Yusuf (1333-1354), os Násridas e Marinidas perderam a Batalha do Rio Salado (1340) para as forças de Castela, Aragão e Portugal. Com isso, os Marinidas deixaram a península em paz e os Násridas, logo depois, fizeram um acordo com Pedro I, de Castela, para que pudessem continuar na região de Granada, em troca de seu apoio à Castela na luta contra Pedro IV de Aragão.

No século XV, Granada enfraqueceu-se ainda mais, devido a lutas internas pelo poder, e em 1485, Boabdil, Abu ‘abd Allah Muhammad XII, fez um acordo de submissão a Fernando e Isabel de Castela.

Em 1492, o reino de Granada não se sustentou mais e caiu sob as forças de Aragão e Castela. A fortaleza / palácio de Alhambra sobreviveu devido ao uso que dele se fez para demonstrar simbolicamente a superioridade dos reinos de Aragão e Castela sobre o Reino de Granada.

Granada foi o último reino muçulmano a cair nas mãos dos cristãos devido a três motivos: esgotamento da “Reconquista”, devido às divisões e rivalidades dos príncipes do Norte pelos laços econômicos mantidos entre Granada e os sultões Merínidas do Marrocos, e pela proteção de Castela a esse reino. Também os mercadores italianos aplicavam seus capitais e suas atividades nessa região.

No processo de “Reconquista”, o Caminho de Santiago de Compostela, surgido após a descoberta do que se cria ser o sepulcro de São Tiago, foi fundamental, pois reforçou a unidade dos reinos cristãos entre si e consolidou a união da cultura espanhola à cultura da Europa ocidental, já que por suas estradas passavam e conviviam peregrinos de várias origens, o que propiciou a tomada de consciência de que todos pertenciam a uma cristandade europeia para além das fronteiras dos próprios reinos e conferiu à “Reconquista” um tom de Cruzada, à semelhança das Cruzadas à Palestina, Terra Santa. Essa consciência da Cristandade unificada além das fronteiras dos reinos, bem como o espírito de Cruzada, propiciou uma união de oposição ao Islã. O Caminho de Santiago também favoreceu a entrada na Espanha de elementos religiosos e culturais importantes, como, por exemplo, os monges de Cluny – que com sua liturgia romana suplantariam a liturgia moçárabe dominante na região – e a arte românica.

À medida que os cristãos foram se adentrando nos reinos muçulmanos, começou a haver um repovoamento das regiões por eles abandonadas em fuga diante do poderio islâmico. Granada foi o último reino muçulmano a cair em suas mãos e em 1492 não mais resistiu e se entregou.

4 ELEMENTOS SIGNIFICATIVOS DA PRESENÇA MUÇULMANA PARA A PENÍNSULA IBÉRICA

A conquista islâmica abriu o Mediterrâneo, até então um espaço dominado por Roma, e o conectou com o Oceano Índico, transformando-o em rota de comércio mundial. Assim, a despeito da pirataria que tornava insegura a navegação, a possibilidade de comércio no Mediterrâneo criou uma rede de rotas comerciais que unia os grandes mercados mundiais de Constantinopla, do Egito, da Ásia Central e da Índia à Espanha e ao Norte da África. Essa rede de circulação também propiciou intercâmbios culturais e viagens no interior do mundo muçulmano.

No âmbito dos territórios muçulmanos, o valor do comércio apareceu no formato de zona de livre comércio, uma espécie de mercado comum medieval. Além desse intercâmbio comercial altamente intensificado pelos muçulmanos, houve outro tipo de intercâmbio que favoreceu o desenvolvimento socioeconômico: a difusão de técnicas e ideias de um extremo a outro das regiões nas quais se faziam presentes. Esse movimento de difusão de conhecimento e arte envolveu a totalidade do mundo islâmico existente na Alta Idade Média: China, Índia, Ásia Central, Arábia, o Mediterrâneo Oriental e o norte da África. O foco central de onde emanava esta difusão foi a Pérsia, que nesse período vivia uma inovação cultural em várias áreas – comércio, técnica, ciência, farmácia, arte, literatura, música, culinária e técnicas agrícolas. Daí se entende que alguns elementos da poesia e mística persa tivessem certa repercussão no território espanhol muçulmano, como as ideias de Al-Nuri de Bagdá, místico sufi que já trabalhava no século IX com a temática do castelo concêntrico representando a alma, à semelhança de Teresa de Jesus e a precedendo nesse tipo de temática. (NURI, 1999).

Outro âmbito onde a presença islâmica representou avanço para a Península Ibérica foi no plano agropecuário: houve a introdução de alguns cultivos, como algodão, cana-de-açúcar, arroz, amoreiras para a produção de seda. Também houve a intensificação do emprego de engenhos mecânicos e hidráulicos em benefício da lavoura, o que possibilitou o aumento da área irrigada. Também a criação de animais foi intensificada, principalmente a de equinos.

Como na Pérsia, o Islã ocidental vivido em al-Andalus centrou-se em uma grande urbanização, na contramão do que era a Espanha até então. Essa urbanização, possibilitada pela grande produção agrícola e pelo comércio, permitiu o desenvolvimento de grandes obras de transporte de água para as cidades, assim como de esgotamento sanitário e grandes projetos de irrigação. Também gerou desenvolvimento das artes e possibilitou um grande incentivo à investigação científica.

Ao se falar na ciência em al-Andalus, não se pode esquecer do valor da ciência para o mundo islâmico, da tentativa de troca e intercâmbio de conhecimentos e da tradição científica entre as várias regiões de religião islâmica, e nem da relação que a produção científica possui para a fé muçulmana. Vale lembrar que o próprio Corão valoriza a ciência e o conhecimento, que não são considerados como um pecado. Antes “[...] pelo contrário. Setecentos e cinquenta versículos do Corão (ao redor de um oitavo do livro) exortam os fiéis ao estudo e à investigação”. (GARAUDY, 1987, p. 221).

É assim que vale a pena relembrar alguns nomes, sem querer esgotar os personagens importantes para as ciências da época:

- Na astronomia: Ibn Yunus (940-998); Al-Biruni (973-1048), que mediu o diâmetro da Terra com uma grande precisão; Maslamah al Majriti, que estabeleceu um quadro astronômico a partir da latitude de Córdoba e introduziu em al-Andalus as epístolas enciclopédicas dos “Irmãos da Pureza”, que lutaram em Bagdá pela liberdade de pensamento; Al Zarkalli, que realizou invenções como o astrolábio, facilitando a navegação e os grandes descobrimentos quatro séculos mais tarde; Al Bitroji (século XII), precursor de Copérnico por sua crítica dos “epiciclos”; Yusuf Al- Mutamin, rei de Zaragoza (1081-1085), que compôs um célebre tratado de matemática e, juntamente com seu pai, transformou Zaragoza em um grande centro filosófico e científico;

- Na geografia: Al Idrisi (1099-1166), que fez um mapa do mundo utilizando-se de métodos de projeção bem similares aos do Renascimento e Ibn Battuta (1304-1377);

- Na medicina: Abu Marwan abd al Malik Ibn Abi ala Zuhr (1091-1161), que escreveu vários tratados, dentre os quais: um de dietética, outro sobre o micro organismo causador da sarna (Acarus scabiei) e outro sobre o que chamamos de psicossomática; Abu al Qasim al Zahrawi (936-1013), cirurgião de nome latinizado como Abulcasis, escreveu vários tratados sobre cirurgia: descrição dos instrumentos que ele mesmo havia inventado para cirurgias; sobre a prática de cauterização, descrição clínica de operações que vão desde a oftalmologia à ginecologia. Foi o primeiro a utilizar tripas de gato para suturas abdominais; descreveu e curou a orteoartritis tuberculosa da coluna vertebral (mal de Pott), e desenvolveu um método de fazer traqueostomia que é utilizado ainda hoje;

- Na física, tem-se Ibn Bajja, que fez análise do movimento; Ibn Hayttham, que estudou física ótica e a trajetória dos raios luminosos; Ibn al-Haizam (965-1039);

- Na filosofia: Ibn Hazam (994-1064), que foi no ocidente muçulmano o que Al- Ghazali foi no oriente islâmico. Escreveu Fisal, onde aborda a história crítica de todos os tipos conhecidos de seitas religiosas e escolas filosóficas. Escreveu também um tratado sobre a filosofia do amor (Tawq al Hamama). Além dele, não se pode esquecer de Ibn Massara (883-931), Ibn Bajja / Avempace (1090-1138), Ibn Tufayl (1100-1185), Ibn Rushd / Averróis (1126-1198);

- Na história, são memoráveis os nomes de Ibn Kaldun (1332-1406) e Ibn Hayyam (987-1076), que compôs uma extensa história da Espanha, em sessenta volumes;

- Já na literatura, tem-se Al-Mutamid (1040-1095), Al-Mutasin (1051-1091), e Ibn Zaidum (1003-1070), um dos maiores poetas andaluzes.

5. O ENCONTRO DOS TRÊS MONOTEÍSMOS: ESPAÇO DE CONVIVÊNCIA?

Diante do quadro acima apresentado, a pergunta que surge diz respeito ao tipo de contato que possa ter havido entre muçulmanos, judeus e cristãos na Espanha Medieval. Existem duas possibilidades de se abordar essa história: uma enfatiza o conflito. A outra, embora reconheça o conflito, afirma uma congruência cultural e uma interação criativa. A partir desse ponto de vista, muitos historiadores utilizam-se do conceito de Convivência para descrever a relação entre essas três religiões.

A palavra Convivência foi utilizada pelo grande filologista e historiador Ramón Menéndez Pidal no sentido de “coexistência de normas” para caracterizar a existência de formas linguísticas variadas na literatura da época. Essas formas competem entre si, porém, apenas uma é selecionada e sobrevive.

Américo Castro, discípulo de Pidal, vai utilizar o termo Convivência no sentido de convivência cultural de elementos variados. Esses elementos são originários de cada confissão religiosa, que funciona como casta, produzindo uma percepção, particular a cada grupo, a respeito do mundo e dos outros grupos. O conceito de Castro é idealista, pois a Convivência ocorre apenas no plano das ideias, da autoconsciência de cada casta e da relação entre essas autoconsciências. Pautada nessa concepção, Castro conclui que a luta entre cristianismo, judaísmo e islamismo, ocorrerá no nível da consciência. Esse posicionamento de Castro não leva em conta o processo dinâmico de inter-relação social, mas apenas o processo mental. Por isto, hoje, muitos historiadores preferem o termo “coexistência”. (CASTRO, 1971).

Porém, o sentido de convivência cultural de Castro ainda sobrevive. O que se acrescenta segundo Glick (1992, p. 7), é o fato de que a interação cultural inevitavelmente reflete a complexa dinâmica social. Entretanto, ele retém de Castro a compreensão de que a aculturação implica em um processo de internalização do “outro”, que é o mecanismo através do qual se faz de traços culturais estrangeiros os próprios traços culturais.

Benjamin R. Gampel (1992), também utiliza o termo Convivência, mas não no sentido de uma convivência feliz e pacífica, sem conflitos de qualquer espécie, onde cada religião reforçava a do outro através do mútuo intercâmbio. Convivência para esse autor tem o sentido de que se está evocando uma sociedade pluralista, onde os grupos religiosos vivem na vizinhança uns dos outros, estabelecem negócios entre si e afetam-se mutuamente com suas ideias. Por outro lado, permanece uma desconfiança mútua e cada grupo tem ciúme do crescimento e sucesso do outro; e a contínua competição entre esses grupos frequentemente pode gerar ódio.

Nesse sentido, o termo Convivência, quando se lhe agrega os diversos sentidos apresentados por Castro, Glick e Gampel, traduz de forma mais clara o que ocorreu na Espanha medieval. Assim, Convivência implica em uma dimensão do encontro e interpenetração de ideias culturais e étnicas; porém, esse contato surge no espaço da dinâmica social, desvendando a presença de uma sociedade plural que gerou ricos intercâmbios e transformações sociais, culturais e religiosas, assim como conflitos, rivalidades, desconfiança e intolerância.

Esse intercâmbio intelectual ocorreu vinculado a um movimento internacional, que se estendeu por todo o mundo árabe e que se baseou na tradição cultural grega, transmitida por estudiosos da Síria e desenvolvida nas atividades em comum de judeus, cristãos e muçulmanos, o que foi facilitado devido à presença de uma organização própria de judeus e cristãos presentes nos territórios de al-Andalus.

As comunidades moçárabes (cristãs), em bairros próprios, mantiveram seus bispos e autoridades civis, embora estes estivessem sujeitos ao governo muçulmano e tivessem que lhe pagar tributos, o que tornava rendosa essa tolerância. As principais restrições religiosas se resumiam à proibição de manifestações externas de culto e à requisição de igrejas para serem transformadas em mesquitas.

Quanto às comunidades judaicas, mantiveram, no início da dominação árabe, tão boas relações com o novo governo, que chegaram a ser acusadas de coniventes na derrota da antiga monarquia visigoda, o que, aliás, seria muito compreensível, já que os judeus não foram bem tratados pelos visigodos e pelos cristãos. Com a chegada dos muçulmanos, sua situação mudou devido à tolerância islâmica com as outras religiões. À semelhança dos moçárabes, os judeus viviam em bairros separados, mantendo a própria administração e o culto sinagogal. Também estavam sujeitos ao pagamento de tributos. Durante o período almorávida, foram perseguidos.

No tocante aos conflitos étnicos, o século XI tem um significado particular: nele, os conflitos entre judeus, cristãos e muçulmanos adquirem uma conotação mais religiosa. Essa mudança foi decorrente da chegada ao território de al-Andalus de aliados externos, francos ou norte-africanos, imbuídos do espírito de Cruzada ou guerra santa. Houve a Cruzada de Babastro, conduzida por Guilherme de Poitiers, duque da Aquitânia, tendo em seus exércitos soldados franceses e italianos. Também houve nesse período uma requisição dos reinos cristãos ao Papa Urbano II, dos mesmos privilégios “espirituais” concedidos pelo papado aos cruzados que iam a Jerusalém. Inclusive as ordens militares – Templários, Calatrava e Santiago da Espada – foram incentivadas a se fazerem presentes na Espanha.

Houve alternância entre momentos de muita tolerância e intercâmbio cultural e momentos em que imperou a intolerância. Com a chegada dos Almorávidas e, mais tarde, dos Almóadas, por exemplo, a tolerância foi bastante reduzida. Eles eram intolerantes com as minorias e com os nativos convertidos (ou revertidos) ao Islã, que eles viam como decadentes. Os Almóadas, com sua interpretação estrita da lei, iniciaram uma política de conversão e muitos judeus e cristãos foram perseguidos, sendo que vários deles, inclusive o célebre Maimônides, acabaram tendo que se exilar. O massacre dos judeus em Granada no século XI foi o maior exemplo disso. Esse massacre surgiu devido a uma controvérsia acerca de um poderoso judeu, Joseph Ibn Naghrila, ministro chefe do rei muçulmano de Granada.

A partir daí, no século XII, uma série de leis restringindo a liberdade judaica aparecem: visavam controlar sua mobilidade social e econômica. Ibn Abdun obriga os judeus a usarem uma roupa específica, para se distinguirem. Ibn Idhari conta que al Mansur também determinou um tipo de roupa específica para os judeus. Isto porque eles estavam vestidos como os mais nobres dos muçulmanos e se queria distingui-los dos “servos de Deus”.

Mas, apesar do acirramento dos conflitos, a consciência de que havia preceitos que exigiam o convívio respeitoso islamo-cristão-judaico, ao menos fora dos campos de batalha, sobreviveu. O próprio Corão, na sura 29, admoestava os muçulmanos a não travar debates com os cristãos e judeus senão nos termos da amizade e da brandura. Também Afonso X, o Sábio, de Castela, solenizou no século XIII a proibição da violência, recorrendo a argumentos religiosos. Na sétima de suas “Partidas” estabelecia: “com boas palavras e pregações oportunas devem os cristãos empenhar- se em converter os mouros, a fim de fazê-los crer em nossa fé e conduzi-los a ela; e não por força ou opressão”. Em relação aos judeus, também afirmava: “de maneira nenhuma devem usar de força ou opressão contra nenhum judeu para que se torne cristão”. (VALVERDE, 1997, p. 161).

Entre os lados da fronteira que separava os reinos cristãos de al-Andalus houve também certo intercâmbio. Em ambos os lados, principalmente após a “Reconquista” de vários territórios, viviam populações que estavam longe de ser homogêneas. Havia os mudéjares, judeus e muçulmanos habitantes dos reinos agora cristãos; moçárabes, cristãos que viviam nos reinos muçulmanos; e os muladis, judeus ou cristãos que aderiram ao Islã, além, é claro, dos já citados cristãos francos e muçulmanos norte-africanos.

Entretanto, embora se tenha, em ambos os lados da fronteira, isolado as minorias em termos religiosos, isso não ocorreu no campo econômico, o que criou uma inevitável tensão intergrupal. Essas tensões forjaram espaço para o intercâmbio cultural. Nos mercados, por exemplo, as diferenças étnicas tinham menos peso que em outros setores da vida. Nas cooperativas, porém, havia o medo de que os segredos tecnológicos de um grupo fossem revelados a membros de outros grupos religiosos.

Com o tempo, as distâncias culturais diminuíram, mas não as distâncias sociais. Isto porque a dimensão social ficou atrás das leis do sangue puro e outras instâncias de preconceito racial. A ḏhimma – contrato que em al-Andalus regulava a relação dos muçulmanos com as minorias – garantia que essas relações não seriam sobrecarregadas emocionalmente, pois era um contrato que gerava uma obrigação religiosa. Como “Povos do Livro”, judeus e cristãos eram minorias protegidas que, embora não tendo acesso a todos os benefícios sociais – prerrogativa dos muçulmanos –, não eram classificados como pagãos, tinham o direito de não serem agredidos e de possuírem propriedades, além de poderem se locomover livremente e praticar suas crenças.

Entretanto, em meio às situações conflituosas abordadas acima, houve experiências de relações cordiais e de amizade, o que fica claro através de algumas alianças realizadas entre os reinos cristãos e os muçulmanos. Até relações de parentesco houve, já que eram comuns os casamentos mistos, favorecidos por motivos políticos e devido ao fato de os exércitos muçulmanos terem levado consigo poucas mulheres para a Península Ibérica. Esta convivência começou a ser implantada no séc. X por ‘Abd al-Rahman III, quando este, a partir de Córdoba, dominou a península e rompeu com os Abássidas de Bagdá. ‘Abd al-Rahman III, como seu pai, tinha uma política de inclusão étnica e religiosa, visando o fortalecimento do estado islâmico.

Alguns exemplos paradigmáticos desse intercâmbio entre as populações podem ser levantados: ‘Abd al-Rahman III era neto de uma princesa cristã; a filha do rei de Navarra se casou com Al Mansur; vários judeus ocuparam com frequência cargos importantes na administração peninsular: Hasday Ben Shaprut (945-970) ocupou uma importante posição na corte de ‘Abd al-Rahman III; no século seguinte, o reino de Granada foi governado durante anos pelo vizir judeu Samuel Ibn Nagdela. Houve também uma cooperação intelectual entre judeus, cristãos e muçulmanos. Um

Bom exemplo desta cooperação intelectual o temos na história do suntuoso manuscrito de Dioscórides, que o imperador bizantino Constantino Profirogeneta presenteou ao califa espanhol Abderramán III e que foi traduzido pelo judeu Hasday ben Shaprut, com a ajuda de um monge grego que veio especialmente de Constantinopla com tal fim. (DAWSON, 1960, p. 151, tradução nossa).13

Também a literatura apontava para a possibilidade de convívio amistoso entre os diversos grupos e etnias. No Poema del Cid, há a figura honrada e leal do mouro Abengalbón; no Códice do Tratado de Jogos, de Afonso X, há uma iluminura que retrata um muçulmano e um cristão jogando xadrez; também nos versos do Romance Fajardo, já do final da “Reconquista”, é apresentada a resolução de uma contenda entre um cavaleiro cristão e um rei mouro através de uma partida de xadrez. Portanto, “a literatura e a legislação atestam [...] a ambiguidade da fronteira que percorria a Espanha medieval. Para além da grande fronteira, outras fronteiras menores separavam e uniam populações vizinhas e heterogêneas”. (VALVERDE, 1997, p. 166).

Por outro lado, neste clima de certa convivência intercultural, pode-se perguntar pela questão da conversão ao Islã ocorrida nesse período. A conversão ao Islã não foi imediata e nem massiva no início. Nos tempos dos Omíadas, o Islã era seguido por uma pequena parcela da população, principalmente por uma elite árabe que governava no estilo da tradicional estrutura tribal árabe e que se concentrava principalmente nas cidades. Em um determinado momento, a partir do século X, se iniciou um período explosivo de conversão que quando se completou teve como resultado a mudança de 80% da população para o islamismo. Quando a grande massa da população se tornou muçulmana, houve uma transformação radical no Estado, que agora é distinto do Estado árabe do passado. A sociedade se torna caracteristicamente muçulmana, com as instituições que lhe são peculiares. É uma sociedade mais segura de si mesma, capaz de se autoafirmar diante dos outros povos. Entretanto, surgem também as distinções entre velhos e novos conversos, os primeiros orientando-se tipicamente a posicionamentos religiosos mais ortodoxos; os segundos, orientando-se para movimentos mais flexíveis e abertos como o Sufismo. Esse fenômeno também ocorrerá na Espanha pós “Reconquista”.

No caso de al-Andalus, a taxa de conversão foi lenta até o século X (menos de um quarto da população havia se convertido até então). O período de explosão da conversão coincide com o reinado de ‘Abd al-Rahman III (912-961); o processo se completou ao redor do ano 1100 da era cristã.

Após a “Reconquista”, muitos muçulmanos fogiram para a África, mas muitos resolveram permanecer na Espanha. Nesse período inicial, eles, assim como os judeus, não foram alvo de hostilidades, que se tornariam frequentes posteriormente. Também podiam morar em bairros próprios, possuíam liberdade de culto, podiam ter seus próprios juízes e pagavam tributos aos reinos cristãos.

No reino de Aragão, a política de repovoamento previa a permanência da população muçulmana nas terras “reconquistadas”. Isso, aliás, foi de certa forma facilitado, com o objetivo de se arrecadar tributos e de se obter mão de obra, então escassa. Já Castela, com outra linha de repovoamento, favoreceu a concessão de terras a mosteiros e a proprietários de terra que se submetiam diretamente ao rei. No reino de Valência e no vale do Ebro, os muçulmanos constituíram durante muito tempo a maioria da população. E, embora tenha havido conversões ao cristianismo, muitos desses conversos não abandonaram suas práticas muçulmanas:

As conversões encorajadas pela hierarquia católica são menos desejadas pelos nobres cristãos, proprietários de domínios rurais povoados e cultivados por camponeses mudéjares. Parecem ser pouco numerosas e, de qualquer maneira, não provocam qualquer mudança notável nos costumes (os novos cristãos podem manter mais de uma mulher), na língua, no gênero de vida e nas atividades, na maneira de construir ou de decorar os monumentos. (HEERS, 1977, p. 334).

A sobrevivência e influência da cultura muçulmana na cultura espanhola parecem estar ligadas a esses grupos que permaneceram, juntamente com seus costumes. A eles, Asín Palacios (1931) atribui a transmissão da espiritualidade e termos técnicos islâmicos a João da Cruz. Suas marcas também são percebidas nas casas e palácios, nos conventos, igrejas e sinagogas, cujos ornamentos em tijolos nas fachadas e nas absides, nos campanários semelhantes aos minaretes muçulmanos e nas ricas decorações com arabescos e flora estilizadas e nos estuques cinzelados, remontam à arte e arquitetura muçulmana.

Também muitos conhecimentos muçulmanos permaneceram devido aos seus sábios e artistas, que acabaram sendo requisitados por vários príncipes da “Reconquista”. Afonso X encarna bem esse espírito de tolerância e curiosidade intelectual: em Múrcia, criou uma escola de altos estudos islâmicos destinada a judeus, cristãos e muçulmanos; e, em Sevilha, fundou um studium generale e uma escola de latim e árabe, em que mestres muçulmanos ensinam as ciências e a medicina. Encomendou uma tradução do Corão e de obras dos filósofos e poetas árabes, dos livros do Talmude e da Cabala. Ele próprio escreveu várias obras de apologia e moral inspiradas nos escritos orientais.

Também em Zaragoza e em Toledo foram fundadas instituições cujo objetivo era o estudo e a tradução de obras latinas e árabes. Sem esse trabalho e esforço de transmissão de antigos conhecimentos realizados nessas instituições, a assimilação da ciência de cunho árabe-judaico na Europa seria, no mínimo, retardada.

Esse processo de interação intelectual não seria possível sem um alto nível de interação social, pois o trabalho de traduzir textos envolvia sempre dois homens: um lia o texto em árabe e o traduzia oralmente para o castelhano. A seguir, seu parceiro traduzia cada palavra para o latim (GLICK, 1992, p. 101). Nessas escolas não trabalhavam apenas tradutores, mas também os chamados emendadores (que verificavam o significado de termos técnicos difíceis através de discussão com os tradutores) e secretários, que escreviam as traduções.

Outro sinal desse rico intercâmbio social e cultural foi o surgimento de termos comuns com origens árabe, hebraica e latina. Geraram um alargamento do léxico espanhol, sendo que os termos técnicos ficaram da seguinte forma: 5% eram arabismos, 30% latinismos com sentido árabe, e 65% eram traduções literais de termos árabes. Também houve uma influência semítica na semântica, sintaxe e estilo, principalmente porque muitos dos membros judeus das equipes de tradutores não tinham familiaridade com as regras sintáticas do latim clássico e acabavam por criar novas estruturas.

CONCLUSÃO

A primeira conclusão que se pode chegar a partir do percurso feito é que nunca houve uma separação de fato entre os povos que habitaram a Península Ibérica entre o século VIII e o XV. Também nunca houve uma pureza cultural, de modo que cada um fosse intocável em sua identidade. Na verdade, houve várias fronteiras diferentes dentro dos limites dos territórios muçulmanos. Algumas dessas fronteiras trouxeram (des)encontros, como as fronteiras dos Almorávidas, dos Almóadas, das cruzadas cristãs, ou a das lutas por território e poder. Outras trouxeram convívio, como a da arte, a da tolerância, a da tentativa de ser coerente com a própria crença, a do cultivo da sabedoria e a da busca de construção de um espaço mais habitável para todos.

Exemplo claro da afirmação acima é a arte hispano-muçulmana: embora seja parte da arte islâmica em seu conjunto e com ela se identifique, ao mesmo tempo, é devedora de outras tradições artísticas e culturais, como a arte bizantina, a arte paleocristã e visigótica, a arte Omíada do oriente, a arte marroquina, também muito devedora da arte Omíada oriental, a arte fatimida e aglabida, a arte de influência Abássida, a arte mudéjar. Assim sendo, a arte hispano-muçulmana, desenvolvida em al-Andalus, é islâmica por possuir identidade com esta tradição religiosa e suas expressões amplas. Porém, também possui uma série de peculiaridades devido ao grande entrecruzamento de perspectivas culturais diferentes, que lhe proporcionaram uma singularidade no seio da arte islâmica (MOMPLET, 2008, posição 81ss).

Diante desses espaços de encontros e desencontros, também não houve possibilidade de um povo não ser tocado em sua identidade pelo outro. Houve, na verdade, uma mescla e uma pluralidade de expressões muito ricas que propiciaram a produção de um conhecimento e uma arte em proporções nunca antes produzidas na região. Foi um verdadeiro “Renascimento” 14 em plena Idade Média, e anterior ao iniciado na Itália no século XVI. Isso vem a comprovar que a questão do “atraso cultural e tecnológico” não é algo inerente ao mundo islâmico, mas fruto de condicionamentos históricos. Aliás, somente um povo que valorizasse a cultura, como os muçulmanos valorizaram, seria capaz de produzir tanto em condições tão adversas como as vividas por ele durante a conquista do território espanhol e os consequentes conflitos daí nascidos. Somente um povo imbuído desse espírito seria capaz de tal criatividade em meio a tanta instabilidade interna (dentro de al-Andalus, com os povos cristãos e judeus), externa (frente aos reinos cristãos) e no seio do próprio povo conquistador (divisões internas: modharitas/iemenitas; árabes/berberes; Omíadas/Abássidas; Almorávidas/Almóadas).

Outro fator importante é que de fato a Espanha medieval experimentou um desenvolvimento social, econômico e cultural nesse período. Ela, que viveu sob o domínio visigodo durante um bom período, experimentou no período islâmico um esplendor e riquezas muito grandes, além de inovações na produção, no comércio, na arte, na filosofia e nas ciências. Certamente, parte desse desenvolvimento se deve à abertura que al-Andalus teve para o mundo. Em seu seio havia um contínuo intercâmbio comercial e intelectual, sendo que muitos teólogos e estudiosos se locomoviam por todo o território dominado pelo Islã, favorecidos, inclusive, pela unidade linguística que a língua árabe conferia a toda região (BISSIO, 2012, posição 410-411).

Verdadeiramente, a experiência muçulmana na Península Ibérica pode ser um modelo para as relações no seio das três religiões monoteístas, no que diz respeito às suas possibilidades dialogais. Ela serviu tanto para favorecer a percepção da raiz e das consequências da intolerância, ou seja, as posturas autoritárias e dogmáticas – existentes no Islã (e em diversas tradições religiosas) não em sua totalidade, mas em grupos específicos, com teologias particulares –, como para perceber elos que propiciam o diálogo, a tolerância, a abertura ao diferente e a troca de experiências com vistas a tornar melhor e mais humana a vida.

Por fim, tomando como base o documento Diálogo e Anúncio do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso, sediado no Vaticano, pode-se dizer que houve diálogo em al-Andalus.

Segundo esse mesmo texto, o Diálogo Inter-Religioso pode ocorrer de diversas formas:

  • a) O diálogo da vida;

    b) O diálogo das obras;

    c) O diálogo dos intercâmbios teológicos;

    d) O diálogo da experiência religiosa. (PONTIFÍCIO CONSELHO PARA O DIÁLOGO INTERRELIGIOSO, 42)

Em al-Andalus, o diálogo da vida e das obras, ou seja, o diálogo ao redor de questões referentes à existência e à construção de uma sociedade melhor pautada nas boas obras, tanto no sentido social, quanto no sentido artístico-cultural, ocorreu. Após esse percorrido histórico, entende-se ser possível pensar que em al-Andalus houve exemplos de dialogicidade, seja nas trocas comerciais, seja na produção artística, que ficará marcada pelas três comunidades religiosas presentes em seu território, denominadas de arte moçárabe e arte mudejar. Seja na troca linguística, em que o árabe deixará marcas na língua falada e escrita da região, seja na literatura, dentre outros exemplos possíveis. E tudo isso possibilitado e chancelado pela governança islâmica.

Em termos do diálogo via intercâmbios teológicos e via experiência religiosa, também existem exemplos em al-Andalus. Basta que se tenha presente a escola de altos estudos islâmicos de Múrcia e o studium generale de Sevilha, assim como a Escola de Tradutores de Toledo, cujo objetivo era a tradução de textos, tanto científicos e filosóficos, quanto religiosos, como o Corão e o Talmude.

No rastro desses exemplos, também se pode incluir a grande influência que o sufismo terá sobre certas correntes do Judaísmo, como o relata Roger Arnaldez (1993, p. 170ss), indicando um verdadeiro diálogo a partir das experiências religiosas. Assim, pode-se ver influência direta principalmente de Ibn Masarra (883-931) sobre textos de Ibn Gabirol, Isaac Ibn Ghayyati e Yehuda Halévi, de temáticas sufis. E mesmo Ibn Rushd, que é reconhecido mais por sua capacidade filosófica, desenvolve toda uma “teologia” que acabará dialogando com a filosofia e teologia ocidentais.

Por fim, não se pode deixar de fora Ibn ‘Arabi (1165-1240), que nasceu em Múrcia e teve sua formação em Sevilha, antes de partir para o Oriente, onde terminará sua vida. Embora não mencionado nesse artigo, representa uma grande possibilidade dialogal no seio da tradição islâmica do período ibérico e do Islã em seu conjunto. Com o poema dele abaixo, conclui-se esse artigo:

Meu coração se tornou capaz de acolher toda forma. Ele é pasto para as gazelas e abadia para monges!

Ele é um templo para ídolos e a Ka’bah para o peregrino, ele é as Tábuas da Torá e também as folhas do Corão!

A religião que eu professo é aquela do Amor. Para onde as caravanas do Amor se voltam, esta é minha religião e minha fé.

(Ibn Arab□, Tarjuman al-aswaq, XI, 1978)

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SANJUÁN, Alejandro García. La conquista islámica de la península Ibérica y la tergiversación del pasado. Madrid: Editorial Marcial Pons, 2013.

SCHWARTZ, Sílvia. O suspiro do compassivo: uma contribuição de Ibn’ Arabi para a perspectiva contemporânea do pluralismo religioso. 2001. 169 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2001.

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WEBER, David J. & RAUSCH, Jane M. (ed.). Where the cultures meet: frontiers in Latin American history. New York: SR Books, 1994. Kindle edition.

Notas

1 Um exemplo claro deste tipo de texto pode-se encontrar em diversas afirmações corânicas: 3:67-68;14:4; 16:36; 35:24; 2:62; 5:69; 5:44-50; 5:68.

2 No seio da Igreja Católica, o “arianismo é considerado uma heresia proposta por Ário (250-336 d.C.),sacerdote de Alexandria no Egito que afirmava o subordinacionismo, quer dizer: o Filho (comotambém o Espírito Santo) seria subordinado ao Pai. Eles seriam criaturas sublimes, criadas antes douniverso, por isso não seriam Deus”. (BOFF, 1989).

3 Priscilianismo é uma doutrina que surge com o bispo Prisciliano de Ávila, que foi executado no ano385 por ordem do Imperador Romano Máximo, e nega a distinção real das pessoas divinas. Nessesentido, são sabelianos, isto é, como Sabellius (século III), que negava a distinção das três pessoas daTrindade: considerava Deus uno e indivisível. O Pai e o Filho são nomes que designam a mesmarealidade, fonte de toda criação. O Filho é apenas um símbolo do Pai. O priscilianismo age sobre aEspanha até o século VI, quando se mistura com o arianismo.

4 Fuqaha é o plural de faqih, jurista islâmico, especialista no fiqh, a jurisprudência e a lei islâmica. Demaneira geral, possuem uma visão mais legalista da expressão religiosa e, com isto, mais conservadoraem relação a certos preceitos.

5 Conjunto das línguas neolatinas, incluindo aí o português, o galego, o castelhano e o catalão.

6 Esse nome tem sua origem junto aos “conventos” fortificados que protegiam o império muçulmanojunto às costas marítimas e na orla do deserto. Eram verdadeiras fortalezas que se chamam “ribat”, eos monges-guerreiros muçulmanos que formavam a guarnição chamam-se murabitûn (morabitos),donde vem, ao mesmo tempo, o nome dos Almorávidas, saídos da Mauritânia e que irão conquistar aEspanha.

7 Os Almóadas têm seu centro espiritual na cidade de Tin Mal, no Alto Atlas, fundada em 1125. São berberes do sub-grupo dos Masmudas. São sunitas e seu fundador foi Ibn Tumart, que se autodenominava Mahdi, o Guiado, um sucessor do Profeta que viria pôr ordem no mundo após o Apocalipse. Seu nome é proveniente do árabe al-muwahiddin, aqueles que acreditam na unidade de Deus, o tawhid. Os Almóadas representam uma visão conservadora do Islã. Rompem com a corrente Malikita defendida pelos Almorávidas e instalam a corrente Zahirita, que defendia uma leitura estrita do Corão e dos Hadiths, sem espaço para interpretações. Com esta perspectiva, os Almóadas lançam se a um extenso programa de reformas, sobretudo, na educação.

8 Foi uma batalha ocorrida no dia 16 de julho de 1212, na região das Navas de Tolosa, próximo à SierraMorena. Nessa batalha, os reinos cristãos lutaram juntos: liderados por Afonso VIII, de Castela,estavam Pedro II, de Aragão; Sancho VII, de Navarra; Afonso II, de Portugal; cavaleiros do reino deLeão, além de cavaleiros franceses, todos imbuídos pelo espírito das Cruzadas.

9 Moashaha, em árabe erudito, ou zéjel, em árabe popular, dizem respeito a composições poemáticasque possuem uma estrutura particular que as caracteriza: um pequeno estribilho inicial, seguido poruma quantidade variável de estrofes de três versos monorrimos, e seguidas, por fim, de outro versocom rima semelhante à do estribilho. (SPINA, 1996, p. 410).

10 As jarchas eram uma composição lírica amorosa escrita em língua românica, embora transcrita emcaracteres árabes ou hebraicos.

11 Porém, há que se compreender de forma crítica essa nomeação, que foi utilizada pela primeira vezem 1796, uma vez que passa a impressão de que a Península Ibéria era cristã e foi ocupada pelos infiéismuçulmanos, e após longas batalhas, os cristãos expulsam os infiéis e a reconquistam, resgatando aidentidade cristã da península. (RIOS SALOMA, 2011 e SANJUÁN, 2013).

12 Os Násridas eram um povo da península Arábica, portanto, não berbere, mas árabe, que reclamavapara si ser pertencente a uma dinastia distinta: eles eram descendentes de Sa’a ibn Ubada, senhor datribo de Khazraj (ou Ansar), que era um companheiro do profeta Muhammad.

13 “Buen ejemplo de esta cooperación intelectual lo tenemos en la historia del suntuoso manuscrito deDioscórides, que el emperador bizantino Constantino Porfirogeneta regaló al califa españolAbderramán III y que fué traducido por el judío Hasday ben Shaprut, con la ayuda de un monjegriego venido especialmente de Constantinopla con tal objeto.”

14 Não no sentido do Renascimento ocidental, que significou um “renascer” da tradição clássica grecoromana.Mas um renascimento no sentido do florescimento das artes e ciências de forma pujante,fenômeno semelhante ocorrido no Renascimento ocidental.

Quais são as regiões conquistadas pelos muçulmanos?

Até a sua morte Maomé havia conquistado toda a Península Arábica, e os quatro califas que o sucederam expandiram o território do império para a Pérsia, Mesopotâmia, Palestina, Síria e Egito.

Quais são as fases da expansão muçulmana e em qual etapa Esses povos atingiram a Península Ibérica?

As fases da expansão muçulmana na Península Ibérica podem ser fragmentadas em três: Primeiro período: 711 a 756. Segundo período: 756 a 1031. Terceiro período: 1031 a 1492.