Não e a vida que se determina pela consciência, mas a consciência que é determinada pela vida

Resumo

This paper will focus on the key role played by the concept of forgetfulness on Fichte’s Sonnenklarer Bericht while trying to come to terms both with the phenomenon itself and its structure, as well as with what is implied by the philosopher arguing for forgetfulness as the touchstone of reality. We will try to understand how forgetfulness conditions and determines both the way in which consciousness immediately relates to the world and the understanding it has of its own self-relation. We will also address the phenomenon of forgetfulness both as a defective way of being of consciousness and as a condition for this same self-consciousness by showing it to be present in all of its fundamental determinations. Last but not least, we will have the opportunity to unveil the fact that forgetfulness is at the center of the “Hingabe” and “Einsenken” phenomena, as well as its relation to the “Aufgehen”.

Topo da página

Texto integral

  • 1 Assim, por exemplo, que eu esteja aqui sentado a ler este artigo é, para mim, aquilo que neste prec (...)
  • 2 O juízo sobre a realidade ou não realidade de X é, antes do mais, relativo a um mesmo X. Mas na med (...)
  • 3 GA I/7, 196-198 SKB.

1O ponto de partida do Sonnenklarer Bericht é o reconhecimento explícito de que, de um modo geral, podemos, sabemos e de facto não fazemos outra coisa senão distinguir o que é real de o que não é real. Porém, sucede que apesar de estarmos continuamente a emitir juízos sobre esta matéria, o mais das vezes não estamos cientes do seu fundamento. A pergunta que Fichte faz ao seu interlocutor está, pois, orientada para a identificação do que está na base de um tal juízo e para o estabelecimento do critério usado na respectiva distinção1. Pois se o meu juízo sobre a realidade e não realidade não deve ser infundado, sou obrigado a concluir que ou num dos casos está em falta aquilo que no outro está presente como fundamento, ou que de todo o modo haja um fundamento oposto em cada um dos casos. Só assim se compreende que o meu juízo seja assaz diferente. Ora, eu não poderia pronunciar-me sobre o que é real se não estivesse na posse do que me permite fazê-lo. E ainda que, por hipótese, eu não tenha clara consciência do que funda e possibilita esse juízo, se eu me pronuncio sobre o que não é real, aquilo que mo permite tem que me ser necessariamente presente (o modo como isso está presente é que pode ser variável)2. Em última análise, a possibilidade é que eu mesmo esteja, por assim dizer, a jusante da minha actividade judicativa e na ignorância do modo como essa minha actividade está implicada na constituição do real. No estar ido à periferia e à orla da minha vida, eu posso estar perdido do seu centro (i.e., de mim mesmo e da função que desempenho), posto no que é já sempre o produto ou o resultado de uma actividade que eu nem acompanho nem reconheço enquanto tal. Esta possibilidade é aparentemente legitimada pelo facto de Fichte solicitar ao interlocutor que se volte para si mesmo e preste atenção ao que sucede consigo e ao modo como procede ao julgar – requerimento que seria de estranhar, não fosse por possuirmos em nós mesmos o que funda o nosso juízo sobre a realidade ou não realidade de um certo acontecimento enquanto objecto de uma experiência possível3.

  • 4 GA I/7, 198 SKB.
  • 5 Em certa medida porque a entrega e o abandono de si comportam ainda assim um elemento tensivo inanu (...)

2Segundo Fichte, ao agirmos em conformidade com esta recomendação, apercebemo-nos de que quando vemos, ouvimos, etc. (i.e., quando estamos envolvidos num acto perceptivo), não pensamos no que estamos a fazer, não prestamos atenção ao facto de que o estamos a fazer – em suma, não somos imediatamente conscientes de nós mesmos nem tampouco daquela nossa actividade que está na origem do que temos apresentação. Aquilo de que temos consciência e que efectivamente é objecto da nossa experiência é o visto, o ouvido, etc. (não o ver nem o ouvir enquanto tais, i.e., não os actos propriamente ditos). Quando vemos, ouvimos, etc., de facto não pensamos em nós mesmos (i.e., em quem está a ver e a ouvir) – não é a nós mesmos que estamos voltados ou dirigidos. Pelo contrário: estamos de tal modo absorvidos no (e tomados pelo) que nos invade que nos esquecemos por completo. De algum modo, tudo aquilo de que se é consciente submerge-nos. E é a completa imersão no (e imediata adesão ao) que aparece que justamente faz que nos esqueçamos de nós mesmos – e que nos esqueçamos de nós mesmos nisso que se nos apresenta e em que a consciência de si se perde4. De sorte que a consciência tende a não se viver a si mesma na sua dimensão fundamentalmente activa e constitutiva – mas tão-só enquanto testemunha do acontecimento que é o próprio aparecer enquanto tal. Poder-se-ia, aliás, dizer que, em vez de o viver, a consciência é vivida pelo que lhe acontece; e que naquilo que se acende por (e para) ela, a consciência eclipsa-se e como que se apaga para si mesma em virtude do modo como se entrega e abandona ao espectáculo que se lhe oferece. De tal modo que, em certa medida, a consciência resulta passiva: o objecto como que se lhe impõe e ela submete-se-lhe5.

  • 6 GA I/7, 198-199 SKB.
  • 7 E o mesmo se passa se, por exemplo, considerarmos o que sucede ao representarmos a representação de (...)

3Mas, pergunta Fichte, e o que sucede quando representamos algo que, nesse mesmo instante, julgamos ser irreal? Pois se isso não está imediatamente presente, se não há nenhuma doação, se não há nada que possa ser percepcionado, se não acontece que nos possamos deter e fixar nisso – que é que nesse momento constitui o verdadeiro acontecimento da nossa vida, que é que preenche esse instante e nos prende, o que é isso que é vivido e experienciado, que é que constitui nesse caso o conteúdo da consciência? Haverá porventura alguma coisa em que nos possamos esquecer, algo em que nos deixemos absorver ou pelo qual sejamos tomados? Sim, mas com uma diferença. Enquanto no primeiro caso eu esquecia-me de mim mesmo diante do objecto percepcionado, aquilo em que eu estou absorto é, neste caso, na representação de um determinado conteúdo (é nela que eu me esqueço e me perco) – não na sua presença. Justamente, eu evoco o conteúdo desde a sua ausência (pelo que não se trata mais de um conteúdo perceptivo, disponível enquanto tal). E é o acto mediante o qual o presentifico que, na ausência do objecto propriamente dito, determina para mim o conteúdo que nesse momento preenche a minha vida e constitui a minha experiência a título de acontecimento efectivamente real. O que para mim é real na representação do objecto é a representação ela mesma6. O representado é apenas uma especificação da primeira (pois a minha representação é, também neste caso, a representação de algo determinado, não é uma representação em geral). Ou seja, o representado é aquilo que, relativamente ao acontecimento fundamental (que é o próprio acto de representar), constitui a sua determinação7. A diferença consiste, pois, no seguinte: ao contrário do que sucedia antes, o que agora passa a ser considerado efectivamente real é a reflexão sobre o objecto, mas de tal forma que esse objecto é reflectido enquanto conteúdo ou determinação da própria consciência e não como algo que porventura exista em si mesmo (independentemente de estar ou não estar constituído em apresentação). Aquilo em que (e por que) a consciência se perde não é, neste caso, algo que se lhe recuse ou que se lhe manifeste desde o “exterior”. Aquilo em que (e por que) a consciência se esquece é, neste caso, produzido por ela mesma – a consciência esquece-se a si mesma na sua própria actividade reflexiva, i.e., em virtude de algo que tem lugar no (e que irradia a partir do) seu “interior”.

  • 8 GA I/7, 198-199SKB.

4Assim, ao passo que, no primeiro caso, o que estava na origem do esquecimento de si era o abandono e a entrega ao conteúdo perceptivo, no segundo caso a realidade não é mais aquilo que a invade e que subtrai a consciência a si mesma: a realidade consiste, para ela, na própria actividade reflexiva – é nesta (e por esta) actividade que a consciência simultaneamente se perde e encontra o que a determina, de tal forma que o estar imerso em algo e o estar esquecido de si, de algum modo, coincidem. Ou seja, a consciência que se entrega e que se abandona e aquilo que capta ou prende a sua atenção (aquilo em que a consciência se fixa) são um e o mesmo. Esta não-indiferença a si e aos seus conteúdos – que é o que está na base de tudo quanto seja experienciado no modo de ser e saber de si enquanto tal – é, a par do esquecimento de si na sua própria actividade, uma dupla condição de possibilidade da consciência finita. De facto, diz-nos Fichte, o que funda o nosso juízo sobre a realidade ou não realidade é o esquecimento de si. O esquecimento de si é o critério do real(é o que determina para a consciência o teor e o estatuto de realidade do que vem à consideração). Aquilo em que eu me esqueço, em que estou absorto ou imerso é o que faz para mim a realidade da minha experiência na medida em que isso efectivamente preenche e determina um certo momento da minha vida8. Mas quer isso dizer que aquilo de que eu sou efectivamente consciente esgota por completo todo o domínio da realidade e que, portanto, não exista nada para além do que é objecto da minha consciência?

  • 9 Se entretanto não olhei para o relógio, porque aquilo em que estou imerso (e em virtude do qual me (...)
  • 10 Esta conclusão pode, eventualmente, carecer de fundamento; mas há uma coisa que eu julgo ser certa. (...)
  • 11 GA I/7, 200-201 SKB.
  • 12 Porém, há algo que não pode deixar de ser referido e que é o seguinte: se eu pude inferir a realida (...)
  • 13 Dito de outro modo. A partir da observação de algo efectivamente dado, eu concluo que se porventura (...)
  • 14 GA I/7, 202 SKB.

5Enquanto estou aqui nesta sala a ler esta conferência, eu tenho por certo que – para usar o exemplo de Fichte – os ponteiros do meu relógio avançam (ou que de todo o modo terão avançado desde o início da sessão até este momento). Ora, como é que eu me posso pronunciar sobre isto se não experienciei esse acontecimento9? Seguramente, só me é lícito fazê-lo porque estou familiarizado com o seu mecanismo e porque observo que, desde a última vez que olhei para o relógio, os ponteiros mudaram realmente de posição. É em virtude da minha última percepção que eu concluo que os ponteiros se moveram. Eu estou, aliás, convencido de que se tivesse prestado atenção ao relógio durante os últimos minutos os teria visto avançar (i.e., eu teria sido capaz de acompanhado o seu movimento). Portanto, ainda que efectivamente não o tenha observado, ainda que esse movimento não tenha sido realidade para mim no sentido estrito do termo (i.e., no sentido em que o tenha realmente experienciado), concluo que ele teve necessariamente lugar enquanto estive ocupado com a leitura deste texto10. Assim, há aparentemente dois tipos de realidade – e bem diferentes (se bem que não menos reais apesar do que os distingue): uma realidade que se faz a si mesma e uma realidade que só emerge enquanto tal ao ser constituída por (e para) aquele que a faz11, de tal modo que enquanto o primeiro tipo de realidade é, dir-se-ia, em e por si mesma, o segundo tipo de realidade tem que ser posta ou, por assim dizer, feita pela consciência12. Isto é, sem dúvida, significativo. Por um lado, permite-nos compreender que o primeiro tipo de realidade (aquela que aparentemente se faz por si mesma e independentemente de estar estabelecida por relação a uma qualquer consciência) só é passível de ser reconhecida enquanto tal na medida em que já tenha sido percepcionada (ou, pelo menos, objecto de consideração). Ou seja, na medida em que eu já me tenha deixado absorver nela e em que me tenha esquecido nela, mesmo que num determinado momento da minha vida eu não a tenha constituída em apresentação. Por outro lado, que eu tenha inferido a realidade do movimento dos ponteiros do relógio entre duas percepções díspares – ou seja, que eu tenha reconhecido como real algo a que de facto não tive acesso (e que nesse sentido poderia ser considerado um acontecimento independente da minha consciência) – significa que eu como que preencho ou completo o intervalo perceptivo (i.e., o intervalo entre as duas percepções) com um conteúdo que antecipo poder ser objecto de uma experiência possível13. Assim, este tipo de realidade que é tida por ser em e por si mesma só pode ser realidade para nós na medida em que nos seja possível perdermo-nos e esquecermo-nos nela – neste caso, por via de um processo de actos de pensamento, i.e., por inferência, de tal modo que ela só devém real por meio desta actividade, i.e., ao ser posta por e para uma consciência. E tanto quer dizer, não como algo que existe independentemente dela mas tão-só enquanto for uma determinação da consciência ela mesma14.

  • 15 GA I/7, 203 SKB.
  • 16 Para Fichte, estas determinações são determinações fundamentais: determinações que estão na origem (...)

6Por conseguinte, reais são – para nós e antes do mais – aquelas determinações da consciência em que ficamos completamente imersos e sem sabermos de nós mesmos. De um modo geral, é o abandonar-se imediata ou reflexivamente a essas determinações que caracteriza o estado em que se está perdido de si mesmo. Por um lado, a entrega irreflectida a estas determinações e o precipitar-se desprevenida, irrecusável e destravadamente nelas é o que faz que nos esqueçamos de nós mesmos – são essas mesmas determinações que constituem para nós o conteúdo da nossa vida, que a suportam e que lhe dão realidade15. Por outro lado, é o esquecimento de si na actividade reflexiva que confere a essas mesmas determinações a capacidade de nos porem fora de nós, de nos arrancarem a nós mesmos, de nos prenderem e captarem nelas16.

  • 17 O que foi dito a esse respeito não significa que, em última análise, não sejamos nós mesmos que nos (...)
  • 18 Com efeito, a consciência possui na sua actividade o fundamento do modo como se relaciona com o que (...)
  • 19 GA I/7, 203 SKB.
  • 20 GA I/7, 203 SKB.

7Ora, de acordo com (e na sequência de) o que acabou de ser visto, poderia parecer que, em tudo isto, a consciência fosse manifestamente passiva. Porém, não é assim. A consciência é fundamentalmente extrovertida. Como nos diz Fichte, estas determinações fundamentais não têm a capacidade de nos prender irresistivelmente a elas – elas não nos têm irremediavelmente sob o seu poder. Não é verdade que estejamos irreversivelmente na sua alçada, nem tampouco encerrados ou aprisionados por elas sem que possamos fazer nada a esse respeito e sem que tenhamos uma palavra a dizer. Pelo contrário. Se por um lado é verdade que nos abandonamos a elas, que nos submetemos a elas, que nos esquecemos nelas, que ficamos imersos e absortos nelas, por outro lado, tudo isso é susceptível de nos ser imputado. De tal modo que, não obstante o que se disse a respeito do carácter passivo e da entrega desprevenida ao que se nos apresenta e se nos sugere imediatamente como uma evidência, é facto que não deixamos de ser responsáveis17. Na verdade, a entrega e o abandono a estas determinações (o deixar-se levar ou tomar por elas) revela – e releva de – uma componente intrinsecamente activa. Mas isto, por sua vez, não é tudo. Nisso a que se entrega e ao que se abandona, etc., a consciência não se relaciona senão consigo mesma – se bem que de uma forma confusa e distraída. De tal modo que é ainda nesse e por esse relacionar-se que a consciência constitui isso mesmo em que se perde e em que se esquece – em que se perde e em que se esquece, tanto de si mesma como da sua actividade intrinsecamente constitutiva18. No limite, a consciência desconhece-se por completo – e é isso que lhe permite viver a si mesma (e aos seus conteúdos) como se de facto não fosse uma forma do saber defectiva. Contudo, segundo Fichte, a consciência é capaz de se subtrair ao condicionamento que a distrai de si mesma e, por sua vez, subtrair-se ela mesma ao repouso nas determinações objectivas (determinações que não são mais do que a objectivação da actividade da consciência ela mesma)19. Ora isto significa que a despeito do que se passa na 1ª Potência, a consciência não está completamente limitada e diminuída. A consciência pode libertar-se, adquirir por si mesma a folga necessária para se elevar à 2ª Potência e reflectir sobre (o modo como se relaciona consigo mesma e com) a própria vida20.

  • 21 GA I/7, 204 SKB.
  • 22 Ibidem.
  • 23 De tal maneira que essa falta ou não é sequer sentida ou não chega a ser agressiva o suficiente par (...)
  • 24 Segundo Fichte, a diferença fundamental entre a primeira e todas as outras potências consiste no fa (...)

8Segundo Fichte, a 1ª Potência corresponde à esfera das determinações fundamentais da experiência. Isto significa que é a potência base de toda e qualquer outra potência. E que enquanto é possível descer até ela desde uma outra que lhe seja superior, a 1ª Potência constitui um limite da própria consciência – tanto no sentido em que não se vê nem se apreende para além dela quanto no sentido de se tratar de uma consciência superlativamente finita21. Mas que assim seja não é sem consequências de monta – uma das quais consiste no facto de as determinações fundamentais serem determinações da própria consciência (e não supostas coisas em si, algo a que, por definição, não teria acesso ou que estaria fora do seu alcance, fora ou para lá do âmbito da experiência)22. A 1ª Potência corresponde, segundo Fichte, à esfera que compreende toda a multiplicidade de formações possível no espaço e no tempo. Ora, se a relação da consciência com o apresentado é uma relação com algo que tem lugar na sua imanência, percebe-se que a imersão no que aparece reflicta uma componente de esquecimento colossal. Por um lado, a falta de um fundamento para o juízo sobre a realidade não belisca o modo natural de pensar23. Por outro lado, é esta mesma componente de esquecimento que permite embarcar naquilo a que Kant também chamou ilusão transcendental. Mas a consciência pode superar e vencer o condicionamento de que está refém na 1ª Potência. É esta possibilidade que está na base do mecanismo de elevação de perspectiva: tornar-se activo em relação aos conteúdos perceptivos e, no limite, desvelá-los como determinações (dedutíveis a partir) da consciência ela mesma. Nas potências intermédias, a consciência não está mais imersa nas determinações enquanto determinações de uma realidade com existência independente, mas sim nas determinações enquanto determinações da própria consciência24. Como é óbvio, não deixa ainda assim de resvalar para uma compreensão (fáctica) que as objectiva. Todavia, terá superado a sua primeira prisão, ter-se-á elevado acima do primeiro esquecimento e reduzido a componente de finitude que a implica. Não obstante, esta redução é tão-só o primeiro passo no curso de várias etapas de desconfinamento. Para além do que, em última análise, todas e cada uma das potências intermédias comportam (e enfermam de) uma componente de esquecimento inanulável e irredutível.

Topo da página

Notas

1 Assim, por exemplo, que eu esteja aqui sentado a ler este artigo é, para mim, aquilo que neste preciso momento preenche e determina a minha vida a título de acontecimento real (é isto que eu julgo ser real). Mas enquanto aqui estou sentado, com estas folhas na mão, nada me impede de recordar a conversa que tive com um amigo à entrada do aeroporto, antes de apanhar o avião para o Brasil. À partida, quer a leitura desta conferência quer a recordação daquela conversa poderiam igualmente preencher este momento da minha vida. Mas é a conversa (que eu tive há dois dias) tão real para mim como o facto de eu estar diante de vós, aqui e agora, a ter esta discussão? Se bem que tenha sido um conteúdo da minha experiência, se bem que tenha feito parte da minha vivência, a conversa com o meu amigo pertence já ao domínio do passado: ela não é mais – ela foi – um acontecimento real. Não obstante, posso reproduzi-la, posso reportar-me a ela, posso evocar o que se passou naquele instante e reinscrevê-lo no momento actual. Se o fizer, é nisso que passa a consistir a minha experiência; não, portanto, na conversa ela mesma mas sim no facto de que eu recordo o que foi dito e presentifico o meu amigo desde a sua ausência. O conteúdo da minha experiência seria, neste caso, a presentificação ou rememoração de um conteúdo já antes experienciado, mas que no imediato não se constitui na base de nenhuma doação. Ao empregar assim o meu tempo, é isso que efectivamente preenche esse instante da minha vida, é isso que é verdadeiramente real para mim nesse momento: a actividade que consiste em recordar – e não o que é recordado, o que é objecto ou matéria de recordação. Há, pois, para mim, uma clara diferença quanto ao estatuto de realidade entre o que eu vi e fiz há dois dias e aquilo com que eu me ocupo no curso desta meia hora. Há algo que me faz dizer que apesar de terem tido lugar enquanto acontecimentos que se inscreveram na minha vida, todos esses conteúdos perceptivos deixaram já de ser considerados reais, de tal modo que a realidade é, para mim, aquilo em que eu estou investido aqui e agora. Por outro lado, tem de haver algo comum à minha representação do que se passou há dois dias e ao facto de vos ter diante de mim nesta sala – algo que justamente me permite afirmar que tanto a representação do já decorrido quanto aquilo que agora mesmo experiencio fazem igualmente parte da minha vida. Consideremos o primeiro caso. A presença efectiva do meu amigo e a minha conversa com ele foram, na altura, acontecimentos que moldaram e preencheram a minha vida. E é como tal que, ainda hoje, volvidos dois dias, eu os compreendo como tendo sido reais. Mas se tiver que me referir ao seu estatuto de realidade a partir deste (e em relação a este) preciso momento direi que, no presente, eles não o são mais. O meu juízo é, por conseguinte, o oposto daquele que então formulei. Como é que isto se explica? De algum modo, diz-nos Fichte, ou eles devem possuir hoje algo oposto ao que então possuíam (de modo que é em função disso que agora os julgo irreais) ou deve faltar-lhes neste preciso momento aquilo que, então, me fez reconhecê-los como realidades (caso contrário, eu continuaria ainda hoje a julgá-los reais). Com efeito, eu recuso-lhes hoje o que então lhes concedi; eu nego-lhes hoje o estatuto de realidade que então lhes atribuí; eu afirmo hoje o contrário do que então afirmei. Aquilo sobre o que me pronuncio é, aparentemente, neutro em relação ao estatuto de realidade que eu de cada vez lhe confiro. Pelo que, se isso admite indiferentemente tanto o primeiro como o segundo, os meus juízos dizem mais sobre mim e sobre a minha relação com isso do que propriamente a seu respeito.

2 O juízo sobre a realidade ou não realidade de X é, antes do mais, relativo a um mesmo X. Mas na medida em que eu me pronuncio sobre a realidade ou não realidade de X, eu distingo sempre uma da outra. Portanto, a diferença no modo como eu julgo reporta-se ao facto desse mesmo X ser (ou não ser) algo que num dado momento se inscreve (ou não) como factor determinante na minha vida. Se é para mim que algo ou é ou não é real – assunção que, segundo Fichte, enferma de uma peculiar forma de dogmatismo –, a realidade ou não realidade seja do que for tem essencialmente que ver comigo: a realidade ou não realidade de X é posta pelo meu juízo; o estatuto de X depende e decorre do modo como eu julgo. O que pode suceder é que, por um lado, eu posso não ser consciente de qual seja o respectivo fundamento – com efeito, na sua maior parte os meus juízos são tácitos e inexplícitos –; por outro lado, que eu não saiba como e onde procurar o que funda o meu juízo sobre a realidade de um determinado acontecimento.

3 GA I/7, 196-198 SKB.

4 GA I/7, 198 SKB.

5 Em certa medida porque a entrega e o abandono de si comportam ainda assim um elemento tensivo inanulável e irredutível que responde por uma componente intrínseca e constitutivamente activa – a saber, o interesse. No limite, a consciência pode até não decidir o que lhe aparece, mas tampouco está aquém do envolvimento (ainda que espontâneo, involuntário, não deliberado) com o que se lhe apresenta. A consciência está, inclusive, tão longe de lhe ser indiferente que, pelo contrário, o esquecimento de si num determinado conteúdo anda sempre a par do interesse – algo de que a consciência nunca está desprovida. Em última análise, o esquecimento de si num determinado conteúdo é sempre correlativo da atenção que isso nos merece e do maior ou menor interesse que isso nos suscita (que mais não seja, pelo significado que isso tem para nós e pelo modo como isso interfere na organização e na condução da nossa vida). Pelo que o fenômeno do esquecimento de si não significa apenas que se esteja necessária e invariavelmente distraído ou alheado; pode também reflectir o estado em que se está totalmente imbuído por algo ou completamente absorto num determinado conteúdo da nossa experiência (Cf.GA I/7, 198 SKB). E ainda que a respectiva tensão de não-indiferença possa, no essencial, permanecer incompreendida, a evidência de que algo é real tende, para além do mais, a ser tão mais viva quanto mais isso nos atrai e nos prende, nos arranca e nos subtrai a nós mesmos – tanto mais quanto mais isso capta a nossa atenção e a fixa. De tal forma que a consciência que se tem do objecto é aparentemente tão mais plena e profunda quanto mais se estiver absorvido pelo que nos determina. Ou seja, quanto menos o que se nos manifesta nos faz hesitar, quanto menor for a nossa capacidade de recusa, quanto menor for a resistência que pudermos oferecer ao que, por assim dizer, nos invade, nos toma de assalto ou se nos inculca. O esquecimento de si pode não ser mais do que dispersão e alienação, mas pode também reflectir um traço característico de uma forma de acontecimento fundamentalmente determinada por uma componente tensiva.

6 GA I/7, 198-199 SKB.

7 E o mesmo se passa se, por exemplo, considerarmos o que sucede ao representarmos a representação de um conteúdo previamente dado. O que então é real e preenche esse momento da minha vida – aquilo em que eu me perco, aquilo em que estou completamente imerso e em que me esqueço – é o acto de representar a representação daquele conteúdo perceptivo; é nisso que eu estou ancorado. Neste caso, a representação representada é a determinação primeira da minha actividade e o que nela se representa é, por assim dizer, uma determinação secundária (ou seja, a determinação da representação que é, por sua vez, representada). Tanto no caso da primeira representação como no caso da representação dessa representação, é verdadeiramente real apenas aquilo em que eu inevitavelmente me esqueço. Todavia, apesar de não ser nisso que estou imerso, nem o que é representado na primeira representação nem a representação representada são determinações meramente inventadas – antes, são determinações da actividade em que a consciência está posta enquanto tal. (Cf.GA I/7, 199 SKB)

8 GA I/7, 198-199SKB.

9 Se entretanto não olhei para o relógio, porque aquilo em que estou imerso (e em virtude do qual me esqueço) é a leitura deste artigo; se, por outro lado, é nisso que agora tenho posta a minha atenção e se é esta minha actividade que, ao estar a ser reflectida, constitui para mim o que efectivamente preenche este momento da minha vida – como é que eu sei (como é que eu posso afirmar) que, ao mesmo tempo, algo a que eu de todo não estive atento teve ainda assim lugar, a título de acontecimento real, para além da minha consciência?

10 Esta conclusão pode, eventualmente, carecer de fundamento; mas há uma coisa que eu julgo ser certa. Esta conferência não estaria a ter lugar sem que eu a lesse, ao passo que os ponteiros do relógio teriam avançado sem qualquer contributo ou interferência da minha parte. A conferência não se faria por ela mesma: sou eu que tenho que a apresentar; mas os ponteiros do relógio teriam avançado independentemente de mim e sem que eu tivesse ou precisasse ter feito fosse o que fosse.

11 GA I/7, 200-201 SKB.

12 Porém, há algo que não pode deixar de ser referido e que é o seguinte: se eu pude inferir a realidade do movimento dos ponteiros do relógio sem que de facto o tenha acompanhado, tal só foi possível em virtude de (pelo menos) duas percepções – e tanto quer dizer, em virtude de eu ter feito uma primeira observação e, passado algum tempo, ter de novo prestado atenção aos ponteiros do relógio – e de as ter comparado. Uma única observação ter-me-ia apenas revelado a posição em que o ponteiro se encontrava nesse instante. Ou seja, não teria sido suficiente para eu concluir o seu movimento. Sem uma segunda percepção, eu não me teria apercebido de nenhuma mudança de posição em relação ao primeiro momento. É com base nessa diferença que eu concluo que os ponteiros avançaram: a partir do confronto (i.e., da comparação e distinção) entre o que observo no presente e o que antes havia observado. (Cf. GA I/7, 200-201 SKB).

13 Dito de outro modo. A partir da observação de algo efectivamente dado, eu concluo que se porventura tivesse prestado atenção ao que se passou durante esse intervalo de tempo, teria podido observá-lo. Ou seja, eu só me posso pronunciar sobre o que tem lugar independentemente de mim e à margem da minha consciência na medida em que o considere um objecto possível da minha experiência. Só me é lícito falar sobre uma realidade deste género se de algum modo a considerar como uma determinação de que me poderia tornar consciente a despeito da sua não efectividade. (Cf.GA I/7, 201-202 SKB).

14 GA I/7, 202 SKB.

15 GA I/7, 203 SKB.

16 Para Fichte, estas determinações são determinações fundamentais: determinações que estão na origem (e que, por assim dizer, são a raiz) da nossa experiência – aquilo que sustém a nossa vida e que lhe dá um conteúdo, aquilo de que ela se faz e de que se alimenta. Estas determinações, diz-nos Fichte, fazem-se elas mesmas. Quer dizer, não são inventadas nem carecem de ser produzidas. Assim que são descobertas ou desveladas pela consciência, estão sempre já constituídas e disponíveis. Pelo que, aparentemente, não temos senão que nos deixar prender e levar por elas; não temos senão que nos entregar e abandonar a elas para que se nos façam determinações da nossa própria vida. De algum modo, é para nós como se estas determinações se nos oferecessem ou impusessem e não tivéssemos senão que as acolher em nós mesmos – de tal forma que a consciência não parece senão recebê-las e repousar nelas de forma inteiramente passiva. É como se estas determinações fossem aquilo em que damos sempre já connosco – como se fosse nelas que a consciência estivesse sempre já caída. (Cf.GA I/7, 203 SKB).

17 O que foi dito a esse respeito não significa que, em última análise, não sejamos nós mesmos que nos deixamos ir, que nos deixamos subtrair a nós mesmos e que nos deixamos prender. Se prestarmos atenção ao modo como Fichte descreve esses fenómenos, o que aí está posto a descoberto é já um indício suficiente para nos pôr na pista da relação que a consciência estabelece com o seu objecto e da peculiaridade desse modo de ser. Pela forma como a consciência aparentemente se relaciona com estas determinações, poderia de facto parecer condicionada e determinada por algo a que é alheia (i.e., por algo que tem origem no – e que chega até ela desde o – exterior). Mas quando se disse que nos entregamos, que nos abandonamos, que nos submetemos, que nos sujeitamos, etc., seria um erro compreender estas expressões na sua dimensão estritamente passiva.

18 Com efeito, a consciência possui na sua actividade o fundamento do modo como se relaciona com o que lhe aparece. Simplesmente, tampouco o reconhece. Na verdade, é o facto de estar imersa e absorta no seu objecto que a impede de ter uma noção clara de si mesma. No modo de ser da entrega, do abandono, etc., a consciência não só perde de vista as determinações em que se entretece como também perde a si mesma enquanto essencialmente activa. Apesar da função que desempenha na constituição do acontecimento da apresentação, a origem do que se lhe manifesta tende a permanecer-lhe velada, escondida. É porque não acompanha a si mesma e ao que faz as determinações objectivas que a consciência tampouco se reconhece implicada e envolvida nesse processo. A consciência está, por assim dizer, imediatamente instalada nessas determinações – e é por isso que não as compreende como produto ou resultado a não ser que reflicta sobre aquela sua actividade que está na base disso mesmo em que se fixa.

19 GA I/7, 203 SKB.

20 GA I/7, 203 SKB.

21 GA I/7, 204 SKB.

22 Ibidem.

23 De tal maneira que essa falta ou não é sequer sentida ou não chega a ser agressiva o suficiente para afectar decisivamente o modo como o ponto de vista vive a si mesmo na posse de uma pseudoevidência. Em última análise, é o esquecimento de si que está na base da tese sobre o teor, o estatuto e a qualidade do acesso – e tanto quer dizer, sobre a sua adequação, i.e., sobre a sua transparência. Por outro lado, a consciência não questiona aquilo a que tem acesso; adere imediata e espontaneamente ao que lhe aparece. No que concerne o tecido da apresentação e a constituição da esfera da objectividade (i.e., a esfera da realidade objectiva), a consciência é o mais das vezes ingénua e acrítica – não se interroga, não os problematiza. Mas se é na aparência de inteligibilidade que o ponto de vista se espalha, é no esquecimento de si que a consciência se perde e se afunda.

24 Segundo Fichte, a diferença fundamental entre a primeira e todas as outras potências consiste no facto de, em todas as demais, a consciência saber de si mesma enquanto activa (seja na relação consigo mesma, seja na constituição da esfera da realidade objectiva). Ao passo que o que é característico da 1ª Potência é que a consciência se relacione de forma superlativamente confusa com o seu objecto e se compreenda como essencialmente passiva – que não o distinga e não se distinga.

Topo da página

Para citar este artigo

Referência eletrónica

Vasco de Jesus, «O “esquecimento de si” no Sonnenklarer Bericht de Fichte», Revista de Estud(i)os sobre Fichte [Online], 4 | 2012, posto online no dia 01 setembro 2012, consultado o 26 dezembro 2022. URL: http://journals.openedition.org/ref/282; DOI: https://doi.org/10.4000/ref.282

Topo da página

Não é a consciência que determina a vida é a vida que determina a consciência?

Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência. A raiz do homem é o próprio homem em sua condição material, e não em sua condição ideal. A liberdade desse homem não passa pela filosofia, pela teologia ou pela autoconsciência, mas pela sua condição histórica e material.

O que significa dizer que o ser humano é um ser de consciência?

Resposta. Porque ser consciente significa não apenas ter o conhecimento de nós mesmos e compreender o que está ocorrendo em nosso redor, mas também perceber que podemos agir de diversas maneiras, planejando o que irá acontecer.

Qual é a relação entre o pensamento e consciência?

A consciência possibilita ao Homem pensar o mundo que o rodeia e é nela que estão enraizados o sentimento de existência e o pensamento de morte, por exemplo. A consciência é a essência do ser humano e fonte de conhecimento e de verdade.

O que significa ter consciência da realidade que nos cerca?

significa entender o mundo humano e a história como o produto dinâmico da trama das vontades e liberdades humanas. Opõe-se uma visão fixista e determinista.