O poder moderado, existente na constituição de 1824, era exercido por quem?

ARTÍCULOS

Poder moderador na obra de Constant e na Constituição de 1824: pena de morte e sua comutação e perdão entre os escravos brasileiros no século XIX

Poder moderador en la obra de Constant y en la Constitución de 1824: pena de muerte y su conmutación y perdón entre los esclavos brasileños en el siglo XIX

Reserve power in constant’s work and in the Constitution of 1824: death penalty and its commutation and pardon among Brazilian slaves in the 19th century

Gabriel Afonso Campos

Universidade Federal de Minas Gerais

Recibido: 30-04-2019
Aceptado: 18-12-2019  


Resumo

O trabalho visa a contrapor a atuação política do Imperador do Brasil, Pedro II, ao comutar e perdoar penas de escravos, e a obra política do francês Benjamin Constant. Através da análise das leis penais relativas aos escravos brasileiros e dos escritos constantianos sobre o exercício da prerrogativa da graça, o estudo conclui que a forma de atuação do poder Moderador brasileiro não se deu conforme oque havia sido teorizado por Constant.

Palavras-chave: Benjamin Constant; Poder moderador; Escravidão; Perdão de penas.

Resumen

El trabajo pretende contraponer la actuación política del Emperador de Brasil, Pedro II, al conmutar y perdonar penas de esclavos, y la obra política del francés Benjamín Constant. A través del análisis de las leyes penales relativas a los esclavos brasileños y de los escritos constantianos sobre el ejercicio de la prerrogativa de la gracia, el estudio concluye que la forma de actuación del poder Moderador brasileño no se dio conforme a lo que había sido teorizado por Constant.

Palabras clave: Benjamín Constant; Poder moderador; Esclavitud; Perdón de las penas.

 Abstract

The work aims to counteract the political action of the Emperor of Brazil, Pedro II, in commuting and pardoning slave sentences, and the political work of the French Benjamin Constant. Through the analysis of the criminal laws concerning Brazilian slaves and of the constantian writings on the exercise of the prerogative of grace, the study concludes that the Brazilian reserve power did not act according to what had been theorized by Constant.

Keywords: Benjamin Constant; Reserve power; Slavery; Pardon.


Introdução

O presente trabalho visa a discorrer sobre o modus operandi do poder Moderador, na Constituição Política no Império do Brasil de 1824 no que diz respeito à prerrogativa de perdoar e moderar as penas impostas pelo poder Judiciário e como tal faculdade foi decisiva para fomentar o debate acerca da abolição da escravatura, debate este que descortina na abolição propriamente dita em 1888.

Tal análise, entretanto, será feita a partir da construção teórica de Benjamin Constant que inspirou tal instituto político-jurídico da ordem constitucional brasileira então vigente, a saber, a ideia de um poder Neutro existindo acima dos outros três tradicionalmente elencados pela Filosofia Política. Dessa forma, pretende-se verificar, no que tange ao aspecto elucidado anteriormente, se o poder Moderador da Constituição brasileira de 1824 coaduna-se com os pressupostos teóricos que Benjamin Constant estabelece para a existência de um poder Neutro em um Estado de Direito. Para tanto, exporei as bases jurídicas que deram origem àquele poder durante o período imperial, sua prática ao longo desses anos e, especificamente, as consequências do exercício da competência de conceder indulto às penalidades impostas aos escravos ou de comutá-las em penas mais brandas, bem como as considerações que Constant faz a respeito das monarquias constitucionais e do poder Neutro1.

A metodologia utilizada consiste no levantamento bibliográfico das obras de Benjamin Constant, bem como dos instrumentos legais que sofreram a influência de sua atuação política e intelectual, como a Carta Constitucional, de 1814 (França), e o Ato adicional às Constituições do Império, de 1815 (França). No que tange ao cenário brasileiro, também serão analisados os instrumentos legais que lastreavam a atuação do Poder Moderador, como a Constituição Política do Império do Brasil, de 1824, e a Lei nº 4, de 10 de junho de 1835.

O poder neutro na obra de Benjamin Constant

O pensamento político da passagem do Estado absoluto para o Estado liberal quis estabelecer um vínculo estável entre a soberania nacional popular e o governo. Para tal, se fiou no sistema representativo, na divisão de poderes e na adoção de sistemas de pesos e contrapesos visando à limitação do poder estatal e ao aumento da legitimidade política. No constitucionalismo liberal nascente à época de Constant, a constituição possui um papel de garantir um governo organizado e limitado, isto é, ela deve organizar os poderes e declarar direitos fundamentais. Assim, um dos princípios da concepção de Estado que se origina daí é o da separação de poderes, em que se atribuem diferentes tarefas a diferentes corpos institucionais, regulados por um sistema de controle recíproco. (Cattoni de Oliveira, M. 2012, 74)2. Nada obstante, outros mecanismos constitucionais que assegurassem a estabilidade política também são elaborados, tais como o estado de exceção, o controle jurisdicional de constitucionalidade e, conforme se vê especificamente na obra de Benjamin Constant, o Poder Neutro ou Moderador, em sua versão aplicação em terras brasileiras (Lynch, C. 2012, 149).

Uma breve digressão sobre as influências teóricas recebidas por Constant no que diz respeito a esse aspecto da reflexão política de sua época deve ser feita antes de se ingressar propriamente no tema do trabalho.

O francês sedimenta seu pensamento a partir de Rousseau e Montesquieu, autores constantemente lidos se interpretados tanto em fins do século XVIII quanto na contemporaneidade3. Assim, se por um lado, é impossível que os sistemas políticos sejam fundados senão na vontade geral, por outro, ela deve ser limitada sob o risco de desaguar em uma tirania da maioria. Nesse mesmo sentido, a separação de poderes é vista como uma forma de garantir essa limitação. Constant, contudo, considera a divisão tripartite como insuficiente.

Há, portanto, uma única forma de bom governo: aquele que extrai sua soberania do povo. “Em suma, o mundo só conhece dois tipos de poder. Existe a força, o tipo ilegítimo; e há o tipo legítimo, a vontade geral” (Constant, B. 2007, 44)4. Entretanto, tal vontade deve ser limitada, não pode consistir em “[...] uma alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, a toda a comunidade”, como o que JJ. Rousseau (1999, 21). É preciso, dessa forma, limitar seu campo de atuação. Segundo B. Constant (2007, 82),

o corpo de todo os cidadãos é soberano. Isso significa dizer que nenhum indivíduo, grupo ou facção pode assumir a soberania, salvo por delegação desse corpo. No entanto, não se infira daí que o corpo de cidadãos ou daqueles por ele investidos com o exercício de sua soberania pode exercê-la de modo a dispor soberanamente das vidas individuais. Pelo contrário, há uma parte da existência humana que, necessariamente, permanece individual e independente e que, por direito, transcende a jurisdição política.

A fórmula de C. Montesquieu (1996, 166-167), segundo a qual, “para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder limite o poder”, também é apropriada por B. Constant (2005, 17) como uma forma de se circunscrever o Estado.  A mera divisão tripartite de poderes, contudo, não é suficiente. Para o francês, “o poder executivo, o poder legislativo e o poder judiciário são três engrenagens que devem cooperar, cada qual em seu âmbito, com o movimento geral”. No entanto, “[...] quando essas engrenagens desajustadas se cruzam, se entrechocam e se travam mutuamente, é necessária uma força que as reponha em seu devido lugar” (Constant, B. 2005, 19).

É a partir desses pressupostos que Constant, então, julga ser necessário um poder “[...] que não possa nem condenar, nem encarcerar, nem espoliar, nem proscrever, mas que se limite a tirar o poder dos homens ou das assembleias que não saberiam detê-lo por muito tempo sem perigo” (Constant, B. 2005, 23). Em síntese, um poder exercido por um monarca que concentre em si, única e exclusivamente, a faculdade de impedir e destituir os outros poderes e nunca de agir em seus lugares, isto é, um poder passivo5.

É mister ressaltar que a Constant, conforme se verá abaixo, não atribui a esse poder nenhuma faculdade que já não fosse prevista aos poucos reis constitucionais que existiam na Europa no início do século XIX. No entanto, inovava ao reuni-las em um único poder e em separá-las do executivo. E mesmo a transposição de sua teoria para a Constituição de 1824, analisada na próxima seção, é fiel, no sentido jurídico, ao pensamento constantiano (Lynch, C. 2005). Nesse mesmo sentido, C. Schmitt afirma que

essa teoria faz parte, essencialmente, da teoria constitucional do Estado civil de direito e não influi apenas sobre as duas constituições6, nas quais foi adotada de forma bastante literal. A ela remonta, muito mais, o catálogo, típico para todas as constituições do século XIX, de prerrogativas e poderes do chefe de Estado (monarca ou presidente), todos imaginados como meio e possibilidades de atuação de tal pouvoir neutre, como, por exemplo, inviolabilidade ou, pelo menos, posição privilegiada do chefe de Estado, assinatura e promulgação de leis, direito de indulto, nomeação de ministras e funcionários públicos, dissolução da câmara eleita. Em quase todas as constituições de Estados maiores, desde que correspondam ao tipo do Estado civil de direito, tanto em monarquias quanto em repúblicas, pode-se reconhecer essa construção de alguma forma, não interessando se a situação política possibilita ou não sua aplicação. (Schmitt, C. 2007, 195)

A função do poder neutro é garantir a ordem no sistema político, conservando o Estado e evitando que facções políticas usurpem o poder, e prevenir abusos dos outros três poderes ao destituir grupos políticos considerados inábeis para o exercício de suas funções. Existem, entretanto, duas condições institucionais para que esse poder também seja exercido de forma não-abusiva: seu isolamento dos outros três (consequência lógica da necessidade de não agir em seus lugares) e a irresponsabilidade do seu titular, porque, sendo responsável, poderia ser derrubado e ficar à mercê das pressões políticas feitas por aqueles que querem alcançar seu posto. Caso isso ocorresse, o problema da estabilidade institucional continuaria indefinido (Constant, B. 2005, 24).

Constant tem a oportunidade, em 1815, de colocar sua teoria à prova ao redigir o Ato Adicional à Constituição7. O francês, contudo, enumera quais seriam as competências de seu poder neutro em um esboço de Constituição publicado no ano anterior, em 1814. A lista é concorde com as condições expostas anteriormente:

I. O poder real está nas mãos do rei.
II. O rei nomeia e destitui o poder executivo.
III. A sanção real é necessária para que as resoluções das assembleias representativas tenham força de lei.
IV. O rei pode adiar as assembleias representativas e dissolver a assembleia representativa eleita pelo povo.
V. A nomeação dos juízes pertence ao rei.
VI. O rei tem o direto de agraciar.
VII. O rei decide da paz e da guerra, mas de tal maneira que, em nenhum tratado com uma potência estrangeira, não possa ser inserida nenhuma cláusula que influa sobre a condição ou os direitos dos cidadãos no interior do reino.
VIII. A pessoa do rei é inviolável e sagrada (CONSTANT, 2005, p. 208 e ss)

O Ato Adicional, escrito por Constant e promulgado em 1815, alterou algumas disposições da Carta de 1814. A Constituição atribuía as seguintes prerrogativas ao monarca francês:

Art. 13 - A pessoa do Rei é inviolável e sagrada. Seus ministros são responsáveis. Para o rei só pertence o poder executivo.
Art. 14 - O rei é o chefe supremo do Estado, ele comanda as forças terrestres e marítimas, declara guerra, faz tratados de paz, aliança e comércio, nomeia todos os postos administrativos público, e faz os regulamentos e portarias necessários para a execução das leis e a segurança do Estado.
Art. 15 O poder legislativo é exercido coletivamente pelo Rei, Câmara dos Pares e Câmara dos Deputados dos Departamentos.
Art. 16. - O rei propõe a lei.
[...]
Art. 18 - Toda a lei deve ser discutida e votada livremente pela maioria das duas Câmaras.
[...]
Art. 22 - Somente o rei sanciona e promulga as leis.
[...]
Art. 50 - O rei convoca as duas casas a cada ano; ele os prorroga e pode dissolver o dos deputados dos departamentos; mas neste caso, ele deve ligar para um novo dentro de três meses.
[...]
Art. 58 - Os juízes nomeados pelo rei são inamovíveis.
[...]
Art. 67 - O rei tem o direito de perdoar e de comutar as penalidades.

Aparentemente a posse do poder Executivo e possibilidade de proposições legislativas contradizem a teoria de Constant. No último caso, porém, atividade legislativa permanece com as Câmaras e, no primeiro, qualquer ato executivo precisa da assinatura ministerial, o que acarreta responsabilidade e, por isso, não é atribuído diretamente ao monarca8. O Ato Adicional, nesse sentido, propõe que

Art. 38 - Todos os atos do governo devem ser referendados por um ministro com departamento.
Art. 39 - Os ministros são responsáveis pelos atos de governo por eles assinados, bem como pela execução das leis.
Art. 40 - Eles podem ser acusados pela Câmara dos Representantes, e são julgados pelos dos pares.

Num primeiro momento, essa imprecisão em relação à titularidade do poder neutro causa estranheza, considerando que o próprio Constant redigira o Ato Adicional e que, pouco tempo antes, havia defendido sua separação dos demais poderes. Entretanto, para o próprio francês, “[...] não era necessário que o Poder Moderador fosse formalmente consagrado no texto como um quarto poder, desde que ela fosse observada na prática institucional empírica”. Isto é, “[...] o fato de atribuir constitucionalmente ao monarca o exercício do Poder Executivo [...] não consistia, para ele, em nenhum óbice para o funcionamento de sua teoria, desde que os negócios ordinários da administração ficassem, na prática, por conta de um ministério responsável” (Lynch, C. 2005)9.

A contradição é apenas aparente e a explicação dada por Lynch também se aplica às críticas feitas pela historiografia tradicional à Constituição brasileira de 1824 por haver conferido a chefia do poder Executivo e do poder Moderador ao Imperador e, assim, deturpado a construção teórica constantiana. Ocorreu que, na verdade, o documento foi cauteloso “[...] ao não confundir o imperador com o próprio Poder Executivo, fazendo daquele apenas o seu chefe e acrescentando que ele apenas o exercia por meio de seus ministros de Estado (art. 102), sem cuja referenda os atos assinados pelo rei não teriam executoriedade (art. 132)”, cautela esta que não estava nem no próprio ato adicional que Constant redigira em 1815 (Lynch, C. 2005).

O poder moderador na Constituição brasileira de 1824

Foi nessa construção teórica de Benjamin Constant que os constituintes brasileiros de 1823 se inspiraram ao estabelecer uma divisão quadripartite de poderes (Lynch, C. 2005)10.

A recepção do instituto no Brasil não se deu de forma unânime e, indiretamente, refletiu debates políticos ocorridos na França revolucionária. Em 1789, a discussão sobre qual poder deveria representar a vontade do povo deu origem ao conceito de Poder Moderador. À época, duas propostas constitucionais se enfrentaram. A primeira, encabeçada por Sièyes, concebia uma arquitetura institucional que concentrasse todas as competências da nação (primariamente, a função legislativa) em uma única câmara. Nesse cenário, o papel do monarca aparecia como intruso ou, ao menos, sem uma verdadeira utilidade. A segunda proposta (denominada monarquiana), derrotada pelos acontecimentos posteriores, a qual um dos expoentes era Clermont-Tonnerre, citado pelo próprio Benjamin Constant, apesar de postular também que a soberania nacional era a fonte de legitimidade do sistema político, concebia que cabia ao Rei a representação da nação, para além do Parlamento. Nesse sentido, o monarca, possuindo direitos de influir no processo legislativo (através do veto e da dissolução, por exemplo), serviria de árbitro nos conflitos políticos e evitaria o surgimento de uma nova aristocracia no seio do Parlamento, garantindo, assim, a salvaguarda da ordem constitucional. Tal arquitetura institucional, a despeito de sua derrota nos primeiros momentos da Revolução, enfraquecia o poder real, já que o monarca deveria afastar-se das atividades governamentais (Lynch, C. 2005).

Nesse sentido, dois projetos se chocam na Constituinte de 1823: o da denominada elite coimbrã e aquele da elite braziliense. A elite de Coimbra (cujo maior expoente é José Bonifácio de Andrada e Silva) aproxima-se dos monarquianos franceses ao defenderem uma coroa forte em oposição a um Parlamento unicameral com poderes legislativos plenos, tal situação, se refletiria no processo de constitucionalização do Brasil. Tal elite foi responsável por elaborar um projeto cujo centro fosse o príncipe, e não o parlamento, após a irrupção da Revolução do Porto. A elite braziliense (representada por Gonçalves Ledo e Januário da Cunha Barbosa), ao contrário, concebia um sistema baseado na assembleia, mas, por outro lado, era a favor da continuação de determinados institutos coloniais, como, por exemplo, a escravidão. O projeto de Coimbra triunfa posteriormente pela necessidade de instituição de um governo forte capaz de manter a unidade nacional, povoar e civilizar as terras brasileiras. Nesse sentido, “o intuito de José Bonifácio era chegar ao constitucionalismo liberal, contornando porém a estrada que conduzia os governos fracos à anarquia e à revolução”, isto é, estabelecendo uma Coroa forte em detrimento de um Parlamento centralizador (Lynch, C. 2005).

A disputa acerca das bases de legitimidade dos dois poderes constituídos (Coroa, representada por Pedro I aclamado defensor perpétuo do Brasil, e Assembleia, encarnada na Constituinte que então iniciava suas reuniões) sem ainda uma Constituição escrita deu origem às discussões sobre o Poder Moderador. Por um lado, os coimbrãos aspiravam à centralização no Executivo para a manutenção da unidade nacional, o que incluía, por exemplo, a luta contra Portugal. Por outro, os brasilienses defendiam a descentralização apenas como uma etapa, como um momento transitório ao qual se deveria suceder a autonomia das localidades. Dessa forma, “argumentos puramente monarquianos, porém, talvez fossem insuficientes para convencer a Assembleia Constituinte – como todas elas, ciosa de seu mando. Foi nesse contexto estratégico que, logo em seus primeiros dias, começou a ser mobilizado o conceito de Poder Moderador” (Lynch, C. 2005).  Nesse sentido,

foi antevendo, portanto, a resistência que enfrentaria a proposta institucional de corte monarquiano que os partidários do Imperador lançaram mão da teoria do poder neutro como forma de dourar a pílula. Embora isso pareça não fazer sentido, já que o Poder Moderador em princípio enfraqueceria o poder monárquico, o estratagema envolvia uma engenhosa linha de argumentação: o Poder Moderador era uma invenção da moderna escola francesa de direito público e, portanto, insuspeita aos brasilienses. Segundo tais autores, aquele poder, cujas atribuições compreendiam o direito de veto e o de dissolução era da essência de toda a monarquia constitucional. No Brasil, desde o 7 de setembro, já havia um Estado independente, e seu regime era o monárquico constitucional; portanto, esse Poder Moderador também já existia. Logo, o Imperador detinha suas atribuições, podendo vetar e dissolver a câmara. Estava armada, assim, a arapuca retórica (Lynch, C. 2005).

Dito isso, inspirada em Constant, a Constituição de 1824, em seu artigo 99, estabelecia a irresponsabilidade do Imperador. Tal ponto deu origem a diversos debates ao longo do século XIX entre políticos e juristas da época, como Braz Florentino, Visconde de Uruguai, Tobias Barreto e Zacarias de Goés e Vasconcellos, sobretudo no que diz respeito à amplitude dessa responsabilidade e o seu significado para os atos dos Ministros e dos Conselheiros de Estado11. A Constituição, logo em seguida, definia quais eram as competências do Poder Moderador. De acordo com o texto,

Art. 101 - O Imperador exerce o Poder Moderador:
I. Nomeando os Senadores, na forma do Art. 43.
II. Convocando a Assembleia Geral extraordinariamente nos intervalos das Sessões, quando assim o pede o bem do Império.
III. Sancionando os Decretos, e Resoluções da Assembleia Geral, para que tenham força de Lei: Art. 62.
IV. Aprovando e suspendendo interinamente as Resoluções dos Conselhos Provinciais: Arts. 86, e 87.
V. Prorrogando, ou adiando a Assembleia Geral, e dissolvendo a Câmara dos Deputados, nos casos, em que o exigir a salvação do Estado; convocando imediatamente outra, que a substitua.
VI. Nomeando, e demitindo livremente os Ministros de Estado.
VII. Suspendendo os Magistrados nos casos do Art. 154.
VIII. Perdoando, e moderando as penas impostas e os réus condenados por Sentença.
IX. Concedendo anistia em caso urgente, e que assim aconselhem a humanidade, e bem do Estado.

A prerrogativa da graça insere-se na ideia de que o poder Moderador é responsável por controlar politicamente os atos dos outros poderes. Ela permite a correção de erros do poder Judiciário, tal como a prerrogativa de dissolver o Gabinete corrige erros do Executivo e a de dissolver o Parlamento os do Legislativo. Dessa forma, a atuação do Imperador serviria para temperar a atuação dos magistrados, o que se coaduna com a proposta original de Constant.

A regulamentação do direito de perdoar constava na lei de 11 de setembro de 1826.  Previa o dispositivo que “a sentença proferida em qualquer parte do Império que impuser a pena de morte não será executada sem que primeiro suba à presença do Imperador para poder perdoar ou moderar a pena, conforme o art. 101, VIII, da Constituição do Império”. A legislação, contudo, não significou o fim da pena de morte. Nada obstante, “entre 9 de junho de 1828 e dezembro de 130, o Imperador junto a seu Conselho de Estado Pleno examinou vinte e duas sentenças de morte, mandando executar dezesseis” (Ribeiro, J. 2005, 15).

A Insurreição de Carrancas12 enseja a criação da lei nº 4, de 10 de junho 183513, que estabelecia, em seu artigo primeiro, a pena de morte para os escravos que “que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave ofensa psíquica a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes que em sua companhia morarem, a administrador, feitor e a suas mulheres que com eles viverem” e ainda, no artigo quarto, permitia que a execução da sentença condenatória ocorresse sem recurso algum, inclusive a apelação ao poder moderador. O decreto de 9 de março de 1937, no entanto, previa o direito de petição de graça aos condenados pela lei de 1835. Contudo, o direito não se estendia aos escravos que perpetrassem homicídio contra seus senhores. Nesses últimos casos, os presidentes de província, se julgassem conveniente, poderiam dirigir observações sobre o processo em questão ao poder moderador, que poderia exercer ou não a faculdade de comutar ou de perdoar a pena aplicada.

O período histórico de maior aplicação da pena capital é o da Regência e o do intervalo entre a maioridade de Pedro II e sua coroação. Segundo J. Ribeiro (2005, 72), “aos regentes concedeu-se o saco poder de perdoar, mas tal poder era atribuído ao Monarca, devendo ser usado parcimoniosamente quando delegado”. E continua: “[...] a instabilidade política e social do período exercia grande pressão sobre os regentes: não poderiam passar por ‘frouxos’ no trato com a escravaria”. Referindo-se à adolescência do imperador, J. Ribeiro (2005, 127) salienta a influência que Victor Hugo e o rei francês Luís Felipe I exerciam sobre ele no que diz respeito à luta abolicionista. Todavia “[...] foram tão poucas as comutações durante os doze primeiros anos do reinado de Pedro II, que tais influências pouco pesaram. Não teriam força no imaginário adolescente em formação, ou se calavam diante de pressões muito mais fortes em prol da aplicação exemplar da pena de morte?”. A situação muda de rumos a partir da década de 1850: “a pena de morte foi vivamente debatida durante os primeiros dois anos da Conciliação, e, incidentalmente, suas relações com a escravidão. É a partir do ministério de 6 de setembro que a pena de morte começou a declinar no Brasil” (Ribeiro, J. 2005, 194)14.

A guinada mencionada se refere às modificações feitas no decreto de 9 de março de 1937. Em circular reservada aos presidentes de províncias, determinava-se que todos os recursos de graça deveriam subir ao Imperador, acompanhados das peças principais dos respectivos processos. Na prática, a faculdade dada aos presidentes de províncias de mandarem executar as sentenças de morte era extinta: estes deveriam, obrigatoriamente, remeter ao Imperador os processos relativos aos escravos que houvessem cometido homicídio contra seus senhores (Ribeiro, J., 2005, 202).

A partir do período, Pedro II protagoniza uma política, munido de sua prerrogativa real, de comutar as penas de mortes atribuídas aos escravos15. J. Ribeiro (2005, 314) condensa os dados de sua pesquisa histórica e arquivística feita nos registros de Minas Gerais, Rio de Janeiro (corte e província) e São Paulo:

1. Entre 1833 e 1876, 180 escravos foram condenados à pena capital. Destas, 130 foram cumpridas entre 1833 e setembro de 1853 e as 50 restantes entre outubro de 1853 e 1876. Tais números, contudo, se referem àqueles processos cuja execução do castigo foi comprovada documentalmente.
2. Outras 144 sentenças foram exaradas, entre 1834 e 1868, mas não se pode comprovar sua execução ou não.
3. De 1839 a 1888, 523 escravos tiveram suas sentenças de morte comutadas em penas perpétuas.

A atuação de Pedro II, embora tivesse ocasionado poucas modificações em aspectos jurídico-formais, foi capaz de diminuir, de fato, a aplicação da pena capital. “[...] Desde a conciliação, o Imperador decidira mais e mais restringir, através de uma política de comutação sob seu inteiro arbítrio, a aplicação da pena de morte. Em relação à política da pena capital, reinou e governou, foi o maestro” (Ribeiro, J. 2005, 313).

O próprio imperador o confessa em sua Fé de Ofício, escrita após a República:

Para mim, o homem devia ser regenerado e não suprimido; e por isso, muito estudava a penalidade, tomando grande parte no que se fez relativamente a prisões e pesando todas as questões modernas, que tendiam a seu melhoramento. Procurei abolir a pena capital, tendo-se encarregado o visconde de ouro preto de apresentar às câmaras um projeto para a abolição legal da mesma pena. Pacientemente compulsava todos os processos para a comutação da pena última: quando não encontrava base para isso, guardava-os, sendo a incerteza já uma pena gravíssima para os réus. (Taunay, V. 1938, 195-196)

Segundo M. Repolês (2008, 61-62), a conduta do imperador era a de comutar em galés ou em prisão a penal capital atribuída aos escravos que incorressem na conduta tipificada pela lei de 1835. Dessa forma, os escravos assassinavam seus senhores (e o número de casos como esse cresce drasticamente entre as décadas de 1850 e 1870) e ficavam a espera de receber a comutação por parte do poder moderador. Nada obstante, a condenação a trabalhos forçados era uma condição muito mais vantajosa que aquela a que eram submetidos nas fazendas e nas casas de seus senhores.

R. Pirola (2014) minucia que “no que se refere aos réus escravos, o exercício das atribuições do Poder Moderador, no Brasil Imperial, se concentrou fortemente na comutação das penas de morte em galés ou prisão perpétua”. O perdão das penas, todavia, era escasso, não ultrapassando 6 casos por ano durante a década de 1870 e não chegando a 1 por ano nas duas décadas anteriores. R. Pirola (2014) ainda aponta um crescimento nos pedidos de graça deferidos pelo imperador às vésperas e após a abolição (já que a lei áurea, de 1888, revogava a lei de 1835).

Especialmente entre os anos 70 e 80 do século XIX, o que se observa também um alto número de cartas de réus escravos endereçados ao Imperador solicitando o perdão de sua pena. Essas ações se somavam a diversas lutas travadas nos Tribunais, no Conselho de Estado e no Ministério da Justiça, em face do sistema penal da época, que estabelecia penas mais severas aos crimes cometidos por escravos. Assim,

mesmo o monarca não tendo cedido aos pedidos para o perdão total das penas até à véspera da abolição, a pressão exercida por escravos e por seus curadores não parece ter sido em vão. A decisão imperial de rever as penas dos réus condenados durante a vigência da escravidão remetia a essa longa campanha de críticas ao sistema penal do Império, representada tanto pelos discursos, pareceres e decisões tomadas no âmbito da burocracia imperial, quanto pelos pedidos de perdão de réus escravos. A libertação pode não ter vindo de imediato para a maioria dos cativos que enviaram suas cartas de perdão ao monarca, mas se concretizou para grande parte deles em 13 de maio de 1888. (Pirola, R. 2014)

Um efeito, embora limitado tendo em vista a proporção entre comutações e perdões, dessa postura do imperador era a condição de homens livres, dada aos escravos que tivessem suas penas perdoadas. Após consulta do diretor da Casa de Correção da Corte, em 1872, Pedro II, ouvido tanto o Ministério da Justiça quanto o Conselho de Estado, determinou que, uma vez perdoado, o réu não voltava à condição de escravo (Pirola, R. 2014). O fato corrobora, assim, a opinião de M. Repolês (2008, 65) de que o imperador, para além da restrição da aplicação da pena capital, foi “[...] condição de possibilidade para que o debate sobre abolição da escravatura fosse levado a cabo”. Nesse sentido, “o Poder Moderador no Brasil foi [...] o avalista da abertura de espaços políticos de debate sobre direitos”.

A recepção em termos jurídicos do poder moderador, conforme se viu, foi fiel à ideia original de Constant. O uso político do instituto, no entanto, é que diverge da proposta inicial: ao afirmar, em seu artigo 11, que a Nação era representada pelo Imperador e pelo Parlamento, a Constituição de 1824 não deixava dúvidas quanto ao papel que o monarca deveria desempenhar no jogo político. A noção original de Constant de que, não podendo se imiscuir na execução das leis (a não ser através dos ministros), o príncipe poderia ser o árbitro do sistema político é mitigada com o fato de a Carta designar, em seu artigo 98, que a chave da organização política é o próprio poder Moderador, e não sua distinção em relação ao Executivo (Lynch, C. 2005). Nesse sentido,

como os atributos do Poder Moderador passaram a ser identificados como sendo os do próprio Estado brasileiro, seja como realidade, discurso ou aspiração, este último passou a ser reivindicado como uma força acima da política partidária, fora do alcance e árbitra das facções, garantidora do sistema representativo e construtora da unidade nacional. (Lynch, C. 2005)

Era nesse espírito que a comutação e o perdão de castigos com o fito de restringir a aplicação da pena capital e inserir na agenda pública, mesmo que nos últimos anos do Império, o debate sobre a escravidão foram políticas levadas a cabo pessoalmente por Pedro II.  O poder Moderador no Brasil, dessa forma, foi o responsável por uma mudança de status quo na sociedade. Contudo, tal reforma seria uma prerrogativa típica do arcabouço teórico que inspirou a organização de poderes da Constituição de 1824, isto é, do poder Neutro tal como concebido por Constant? Para responder e chegar ao remate do trabalho é preciso voltar aonde começamos: os textos constantianos.

Poder neutro como preservador do status quo social

Trabalhando a distinção entre poder Executivo (ministerial) e poder Neutro, aspecto esse mais complexo que a menção feita a ele anteriormente, o francês considera necessário o reconhecimento de dois direitos, prerrogativas que caberiam separadamente a cada um dos dois poderes: “o direito de manter o que existe, direito que pertence necessariamente ao poder real e que o constitui, conforme afirmo, em autoridade  neutra e preservadora, e o direito de propor o estabelecimento do que ainda não existe, direito esse que pertence ao poder ministerial” (Constant, B. 2005, 27).

O exemplo utilizado por Constant para explicar seu ponto é o das restrições existentes na Inglaterra16 contra os católicos, os quais eram impedidos de terem assento no Parlamento, de exercerem determinadas profissões etc. Willian Pitt, primeiro-ministro entre 1783 e 1801 e entre 1804 e 1806, renunciou ao seu primeiro mandato após a oposição do rei Jorge III à denominada Emancipação Católica, isto é, à extinção das distinções legais entre católicos e protestantes. A Emancipação ocorre em 1829, um ano antes da morte de Constant, com o Ato de Ajuda Católica, sob a liderança do então primeiro-ministro, Duque de Wellington, o qual pressionou o rei Jorge IV (ameaçando, inclusive, renunciar ao cargo) para que este sancionasse a lei, malgrado sua oposição pessoal a ela.

Para Constant, a situação não deve servir de exemplo para o argumento de que é impossível separar o poder real do poder ministerial, mas sim de que o rei Jorge III, mesmo que contrário ao espírito dos tempos, não extrapolou suas prerrogativas ao se opor a uma mudança no status quo, ou seja, de conservar a ordem política. E, mesmo que a situação fosse contrária, a vontade do monarca não encontraria meios de propor leis discriminatórias contra os católicos a não ser por meio dos ministros. Assim,

a diferença entre o poder real e o poder ministerial é constatada pelo próprio exemplo alegado para obscurece-la.  O caráter neutro e puramente preservador do primeiro é bem manifesto: é evidente que, dos dois, somente o segundo é ativo, porque, se este último não quisesse agir, o primeiro não encontraria nenhum meio de forçá-lo a também não teria meio de agir sem ele. (Constant, B. 2005, 28)17

Constant é claro ao afirmar a marca unicamente preservadora (sempre passiva, jamais ativa) do poder que teorizava, o que coloca sua construção em divergência ao que de fato ocorrera no caso brasileiro no século XIX. Obedecida as disposições de Constant para o instituto, não caberia a Pedro II engendrar a extinção da pena de morte entre escravos e catalisar a extinção da escravidão, mas apenas resignar-se à escravidão enquanto a maioria dos cidadãos18 a quisessem e repudiá-la quando não a desejassem mais.

A discrepância, contudo, não foi acidental: foi planejada e inserida na Constituição pela elite coimbrã, ainda na década de 1820, através o artigo 98, já mencionado. Se, por um lado, a Carta designava que o Parlamento também representava a Nação, por outro, conferia ao poder Moderador não só uma representação conjunta a esta, mas também o status de chave de toda a organização política. Segundo C. Lynch (2005),

o essencial de toda essa empreitada [..] resultou portanto em um texto constitucional que permitia duas diferentes interpretações e, por conseguinte, duas formas distintas de desempenho da Coroa enquanto agência pública. Por conta dessa ambigüidade do conceito e da forma como os monarquianos brasileiros o vincularam, desde a manjedoura, à questão da construção do Estado, o tema do Poder Moderador cedo assumiu posição central na agenda política brasileira: a possibilidade permanente de se ativar a chave institucional monarquiana conferiria à Coroa a capacidade de eventualmente governar de modo autônomo, descolado dos interesses oligárquicos representados no Parlamento, podendo desencadear ações políticas a elas estranhas em nome de um interesse superior. A ameaça de um processo de abolição da escravatura deflagrado pela Coroa pairaria, assim, por exemplo, sob a cabeça dos interesses escravocratas durante o Primeiro Reinado, acabando por concretizar-se nos finais do Segundo; da mesma forma, seria por pressão da Coroa que ambos os partidos tentariam sanar o problema das fraudes eleitorais por meio de reformas do sistema, cujos maiores exemplos foram a Lei dos Círculos (1856) e a Lei Saraiva (1881)”.

Se, por um lado, um projeto que conferia protagonismo ao poder Moderador fora vitorioso na década de 1820, por outro, é, paradoxalmente, essa centralidade que enseja sua queda quase 70 anos depois. Após minuciosa discussão sobre as forças políticas envolvidas no processo da abolição, J. Carvalho (2008, 323) mostra que foi justamente esse envolvimento da Coroa com a questão dos escravos que deu origem ao golpe da República. A monarquia fracassa, não pela ineficiência no que tange à abolição, mas por não haver surgido, no Brasil, uma força política que fizesse frente aos donos de terra que perdiam escravos e se ressentiam com ela. “Ao invés, então, de ver-se legitimado pela atuação, reformista, o sistema imperial perdeu a legitimidade que conquistara. É que as principais reformas que promovera atendiam a interesses majoritários da população que não podiam representar-se politicamente”.

Conclusão

A ação do imperador Pedro II influiu de maneira definitiva sobre a questão da abolição e da pena de morte entre escravos no Brasil do século XIX. Ela, no entanto, não se coadunava com o que foi pensado originalmente por Constant nos textos apresentados no trabalho e publicados originalmente num contexto de monarquia constitucional. Conforme exposto, a ideia de um poder neutro visava à preservação do sistema político, moderando os excessos dos outros poderes, mas nunca agindo em seu lugar ou promovendo mudanças na ordem social vigente. Daí a denominação, usada por Constant, poder preservador.

À guisa de conclusão e de encaminhamento para posteriores desenvolvimentos da pesquisa e considerando a complexidade da obra constantiana, bem como de sua extensão, três observações devem ser feitas.

Primeiramente, o argumento que M. Gauchet (2009) desenvolve sobre o poder Neutro pode lançar novas luzes sobre a questão. Segundo o autor, Constant, ao propor um poder que arbitrasse os demais e conservasse o sistema político, estaria tomando precauções em relação ao sistema democrático que, à época, ia sendo reconhecido como o único legítimo. A democracia representativa pode, por vezes, tornar-se uma tirania da maioria, como acontecera na França com a ascensão dos jacobinos ao poder. Para evitar isso, Constant teoriza um polo de poder, capaz de fazer contraponto às maiorias, situado, para tal, fora do próprio sistema representativo. É nesse sentido que o poder Neutro poderia ser plenamente exercido por um monarca constitucional: dado que seu poder se origina da tradição, ele poderia se contrapor à maioria ao destituir os poderes Legislativo e Executivo e evitar abusos por parte dos representantes eleitos. Sua função preservadora seria também uma função de representar os interesses mais profundos da sociedade, que antecederiam a própria democracia representativa, isto é, a garantia dos direitos fundamentais a todos, inclusive às minorias que ora poderiam ser oprimidas por uma maioria eleita para o Legislativo, por exemplo. Dessa forma, a atuação do monarca brasileiro poderia estar de acordo com a lógica constantiana ao representar os escravos e, aos poucos, tentar garantir-lhes direitos básicos.

Em segundo lugar, as obras de Constant citadas no trabalho para expor sua ideia de poder Neutro foram escritas em momentos conturbados da vida política francesa. Assim, suas considerações sobre o poder Neutro em um sistema republicano, mencionadas na introdução, podem ser valiosas para a pesquisa, considerando que a gênese do texto, inclusive sua não-publicação em vida, poderiam nos dar acesso ao pensamento constantiano despreocupado com os processos políticos que transcorriam na França de sua época (Constant, B. 2013).

Por fim, deve-se destacar a postura que Constant assume contra a escravidão ao longo de sua vida pública (Pitts, J. 2009). Ao discorrer sobre a influência saudável do passado e suas instituições nos sistemas políticos hodiernos, posicionando-se contra cortes revolucionários, o francês afirma que “a escravidão [...] não é legitimada por nenhum lapso de tempo. Pois naquilo que é intrinsecamente injusto, há sempre uma parte sofredora, que não pode se acostumar com ela, e para quem não há, consequentemente, a influência saudável do passado” (Constant, B. 2008, 59).

Notas

1. Constant (2013) também propõe um poder Neutro para sistemas republicanos. Nesse sentido, saliento que as considerações do francês sobre o referido poder não se restringem à obra que será citada abaixo (Constant, B. 2005). No entanto, ela foi escrita para e em um contexto monárquico e lida pela elite política brasileira do início do século XIX, elite esta que considerava Constant a principal autoridade teórica nos debates da Constituinte de 1823 (Lynch, C. 2005). Seu uso, assim, no trabalho, encontra-se justificado.

2. O liberalismo francês, em oposição forte ao jacobinismo que surgira na Revolução, dedica-se especialmente à limitação da soberania do Estado. Segundo P. Cassimiro (2017) “o topos comum à imaginação política do período é a busca pela solução para o problema da limitação do poder. Como colocar limites legítimos a um poder legitimamente constituído? A república jacobina será sempre retomada como o exemplo de um poder que, pela própria natureza indeterminada da soberania popular, nutria-se de uma fonte inexaurível de tirania”.

3. Essa argumentação, brevemente exposta aqui, é desenvolvida originalmente por T. Todorov (1999, 35 e ss).

4. Constant replica, até aqui, o argumento de Rousseau (1999, 20 e ss).

5. O termo é usado pelo próprio Constant na obra mencionada no parágrafo.

6. Schmitt se refere à Constituição brasileira de 1824 e a Constituição portuguesa de 1826. É curioso notar que, se Constant não influenciou pessoalmente a construção da Carta brasileira, em Portugal, sua influência fez-se sentir, tendo ele, inclusive, trocado correspondência com Pedro I nessa época. Nesse sentido, ver S. Barbosa (2004). O trabalho defende que a outorga da carta portuguesa de 1826, por Pedro I, gerou uma reação da Santa Aliança que poderia descortinar em uma intervenção em Portugal visando ao estabelecimento de um governo de caráter mais absolutista no país. Assim, Constant defendeu, em carta, a volta de Pedro I a Portugal para que este, pela sua autoridade e legitimidade, fizesse valer a Constituição e estabelecesse uma monarquia constitucional no país. Dessa forma, evitando uma intervenção estrangeira, estaria garantida a paz na Europa (provavelmente influenciou Constant o receio de novas guerras de conquista semelhantes às que Napoleão protagonizara duas décadas antes). Em relação ao Brasil, Constant, surpreendentemente, considerava o papel do Imperador quase secundário, dado que o ethos do continente americano estaria voltado para o estabelecimento de Repúblicas. A fama autoritária de Pedro I em relação aos acontecimentos brasileiros da década de 1820, a essa altura, também o influenciou a tomar essa posição.

7. O fato de Constant colaborar com Napoleão (seu antigo desafeto no início do século XIX) durante o Governo dos Cem Dias foi criticado por seus opositores, tanto em vida quanto após sua morte, o que, segundo H. Rosenblatt (2009, 352) geraria um esquecimento de sua obra. M. Sánchez-Mejía (2008, XXXI), entretanto, o defende demonstrando que, embora se reacomodasse politicamente a cada mudança de conjuntura, o francês mantinha-se fiel aos seus princípios políticos de valorização do indivíduo e de seus direitos face à autoridade política, tendo colaborado com Napoleão unicamente porque o mesmo se submetia a uma Constituição liberal.

8. B. Constant (2005, 27) considera que “quando se trata de nomeações, o monarca decide sozinho: é seu direito inconteste. Mas se é caso de uma ação direta ou mesmo de uma simples proposição, o poder ministerial é obrigado a se pôr à frente, para que a discussão ou aa resistência não comprometam nunca o chefe de Estado”.

9. O próprio C. Lynch cita B. Constant (2005, 195), na segunda edição de seu esboço de constituição publicado antes mesmo da Carta de 1814: “tudo o que digo sobre o poder real [neutro], embora necessitando de uma terminologia diferente daquela de nossa Constituição, é perfeitamente conforme ao espírito desta”.

10. Uma leitura tradicional do período, mas que é consoante com a afirmação da grande influência de Constant sobre os Constituinte é a de J. Torres (1964, 78).

11. Sobre o debate, ver a obra de W. Guandalini Júnior (2016).

12. Revolta de escravos ocorrida em 1833, em Minas Gerais, que culmina com a morte de nove brancos e com a aplicação da pena capital a 17 escravos, incluídos os donos, descendentes e outros agregados às fazendas de Campo Alegre e Bella Cruz.

13. J. Ribeiro (2005, 552) apresenta a evolução da referida lei no Parlamento.

14. O ministério de 6 setembro, ou ministério da conciliação, foi aquele chefiado pelo Marquês do Paraná, que se tornou presidente do Conselho de Ministros em 6 de setembro de 1853.

15. Não só as atribuídas a eles, mas também àquelas aos homens livres, conforme o próprio Riberio (2005) salienta em todo seu livro.

16. A Inglaterra, para Constant, é o exemplo de como o poder Neutro deve ser inserido na organização política de um país e qual deve ser o seu comportamento no processo político (Constant, B. 2005, 20).

17. Poder-se-ia alegar que basta que o monarca troque os ministros para propor uma lei danosa. Constant replica, de maneira frágil, que nenhum ministro se ofereceria para apoiar uma lei contrária às Luzes, argumentando que as instituições dependem mais dos tempos que dos homens e que a ação direta dos monarcas tende a se fragilizar e ser mal vista com o progresso da civilização (Constant, B. 2005, 28-29).

18. O próprio Constant limita o direito de cidadania àqueles que possuem propriedade privada (Constant, B. 2007, 286-288): “[...] é demandada uma condição que transcende o nascimento no país e a idade prescrita, a saber, o tempo livre para o desenvolvimento de uma visão instruída e de um juízo sólido de valor. Só a propriedade proporciona esse tempo livre. Só ela pode tornar os homens capacitados para o exercício dos direitos políticos. Apenas os proprietários podem ser cidadãos”.

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Quem exerce o Poder Moderador em 1824?

O Poder Moderador foi exercido pelos imperadores do Brasil com o objetivo de harmonizar os outros poderes do império e era garantido pela Constituição de 1824.

O que era o Poder Moderador na Constituição de 1824?

Pela teoria, o Poder Moderador seria um quarto poder do Estado (além dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário). Esse Poder Moderador garantiria estabilidade aos outros três poderes e seria responsável por trazer a paz no caso de atritos graves.

Qual era o Poder Moderador?

Poder Moderador é um poder de Estado. Ele se sobrepõe aos poderes, necessariamente (legislativo, judiciário e executivo), cabendo ao seu detentor equilibrar os demais.

Quem exerce os quatro poderes?

Pedro I. Essa Carta Magna trazia uma divisão quadripartite, ou seja, era dividida em quatro poderes, sendo eles: Poder Executivo, Poder Legislativo, Poder Judicial (Judiciário) e o Poder Moderador, que era teoricamente neutro, mas se destacava em relação a todos os outros.