Che: um homem movido pelo amor
Sempre que se fala em Che Guevara a primeira coisa que vem a mente é a imagem do soldado, do revolucionário. Essa era uma das facetas do Che. Mas não a única. Desde bem garoto ele inventou de andar pela América Latina, gostava de conhecer as gentes e, com elas, estabelecia vínculos de amor.
Formou-se em medicina e ainda estudante voltou a percorrer os caminhos da América do Sul. Seu coração de jovem médico era
apaixonado por essa América profunda, pelos trabalhadores, pelos empobrecidos. Ele não queria que a realidade fosse assim, tão dura, com os trabalhadores. E foi esse amor pela sua gente latino-americana que o levou a ser um soldado da revolução cubana. Com seus companheiros cubanos ele empunhou o fuzil para derrubar uma ditadura, mas também cuidou dos caídos, dos doentes, dos feridos. Médico e soldado, coração e razão, sempre andando junto.
Quando a revolução foi vitoriosa
ele acabou sendo Ministro da Indústria e Comércio. Mas, seu trabalho nunca foi só de gabinete. Ele andava pela ilha, vendo as coisas com os próprios olhos, trabalhando junto com os trabalhadores no corte da cana, no carregamento dos grãos. Vivia como pensava. Ele acreditava que um homem e uma mulher revolucionários precisavam ser perfeitos, éticos, pautados pelo bem comum. Ele dizia: “temos de ser o melhor marido, o melhor filho, o melhor pai, o melhor estudante, o melhor trabalhador, o
melhor tudo. Temos de ser perfeitos, para ser exemplo. Tudo aquilo que formulamos como moral para o outro, temos de ser”. A palavra para ele não era coisa vã. Era a escritura de uma ação concreta na vida.
Tanto que não conseguiu aquietar-se num cargo de ministro da recém liberta nação cubana. Aquela gente sofrida da América que ele conhecera nas suas andanças continuava amargando dores, misérias e exploração. Então, para ele não podia haver acomodação na vitória. Seu desejo era
voltar e iniciar uma revolução na parte sul do continente. Mas, naqueles dias, outros povos clamavam por libertação. Eram as gentes do continente africano que começavam suas lutas de independência das colônias europeias e do racismo fomentado por elas. Che não pensou duas vezes. Largou a pasta de ministro e foi se fazer soldado de novo. Ele era movido por profundos sentimentos de amor. “Enquanto houver um irmão injustiçado, somos companheiros”, era seu lema. Como poderia descansar se
outros companheiros e companheiras estavam em luta. E lá se foi para o Congo e Angola, batalhando contra o apartheid e o colonialismo.
Na volta da África, de novo, seu coração decidiu por fazer valer a ética que o caracterizava: o amor pelo outro, pelo caído, pela vítima do sistema capitalista, pelo que se levantava em rebelião. E, mais uma vez recusou cargos ou honrarias. Não haveria de descansar enquanto toda a América Latina não avançasse para um tempo de justiça. Foi quando viajou
para a Bolívia, onde iria combater outra ditadura. Lá, por conta das diferentes condições históricas e erros de estratégia, foi capturado. Um dia depois, assassinado friamente por um soldado boliviano, mas a mando de agentes estadunidenses que foram chamados para documentar a morte do revolucionário. Não contentes em executar o então prisioneiro, desarmado e indefeso, os agentes lhe cortaram as mãos. Um toque de sadismo. Era preciso tripudiar do homem que ousara sair do comodismo de uma boa vida
de médico burguês, e abraçar a causa dos trabalhadores, dos oprimidos.
A última imagem que temos do Che é a de um homem morto, deitado numa mesa fria, com os olhos bem abertos, mirando o infinito. Nem na morte os seus carrascos conseguiram apagar a luz que emanava do seu ser.
Obedecendo aos preceitos éticos que pregava, el Che foi o homem perfeito. Amou as mulheres, amou seus filhos, amou Cuba, amou o conhecimento, amou os cubanos, amou os africanos, amou os
latino-americanos, e por conta desse amor incondicional entregou sua vida. Ele curou vidas, produziu teoria, dirigiu uma revolução, comandou um ministério, morreu por seus ideais.
Esse é seu maior legado. Viveu o tempo todo, na prática, aquilo que apontava como teoria, como moral e como ética. Morreu de pé, olhando o inimigo no olho. Seu exemplo de ser humano é sua maior herança.
E hoje, quando lembramos os 50 anos do seu assassinato, é isso que nos conforta. Che Guevara ainda é um
caminho.
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Publicado na Folha de S.Paulo, quarta-feira, 11 de outubro de 1967 |
Neste texto foi mantida a grafia original |
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Exercito confirma morte de Guevara |
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A identifica��o |
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O cadaver |
A rigidez cadaverica não modificou a expressão deste rosto, que os jornalistas bolivianos classificam de "cinico". Um furo na altura do coração assinala o local em que se produziu a morte. As pernas estão literalmente crivadas de balas de metralhadoras de mão. Em torno deste cadaver, diante do qual desfilam desde ontem chefes militares, jornalistas e autoridades locais, persiste o misterio. As autoridades militares de Valle Grande conseguem a duras penas conter o povo que, desde a noite passada, rodeia o hospital, com a esperança de poder entrar e olhar o cadaver transportado em helicoptero. Alguns circulos bolivianos acreditam que o "Che" tinha sosias nas guerrilhas. O testemunho de alguns guerrilheiros capturados é, a este respeito, singular. Enquanto alguns afirmam que o "Dr. Ramon" era alto e atletico", outros asseguram que "Fernando" estava debilitado e enfermo. "Ramon" e "Fernando", segundo alguns comunicados do Exercito são os nomes de guerra do ex-ministro de Fidel Castro. Recentes fotografias mostram, alem disso, um guerrilheiro com um cachimbo na boca, cavalgando um burrico na selva boliviana. Trata-se-ia de "Che", que não mais poderia andar a pé. |
Barrientos manda enterrar Guevara |
La Paz, 10 (Folha) — O presidente René Barrientos ordenou que o corpo de Guevara seja enterrado em Valle Grande e não trazido a La Paz como se informara inicialmente. Barrientos considera que Guevara deve ter funeral como o de qualquer dos outros guerrilheiros mortos pelas Forças da Bolivia. As noticias de Valle Grande, onde está o corpo, são ainda fragmentarias dada a dificuldade nas comunicações. Os jornalistas que viajaram esta manhã em avião militar não haviam regressado ainda ao cair da noite e as condições meteorologicas da cordilheira pareciam indicar que seria dificil a chegada a La Paz. De qualquer maneira, no aeroporto de El Alto não podem descer aviões após o escurecer, em condições normais. Fontes autorizadas chegadas à Presidência indicam que a tarefa de identificação do corpo de Guevara foi realizada minuciosamente e seguindo as mais modernas tecnicas cientificas. E admitiam que as autoridades e o Exercito boliviano houvessem contado com a ajuda de tecnicos do Serviço Central de Inteligencia dos EUA (CIA). Já se noticiava que um grupo do CIA viajara ontem rumo a Valle Grande. Uma cicatriz na mão esquerda, produzida por um ferimento sofrido em Sierra Maestra, em Cuba, era outro dos pormenores caracteristicos da figura de Guevara. No diario encontrado em seu poder, Guevara subestimava as possibilidades do Exercito boliviano, mas, posteriormente escrevia que o Exercito melhorara suas taticas e que estava assertando duros golpes aos guerrilheiros. O diario tambem manifestava admiração pelo soldado boliviano, classificando-o de duro para a luta. |
Como morreu Guevara |
De acordo com a informação fornecida hoje pelo general Ovando Candia, Guevara foi um dos primeiros a cair na ação de domingo. Foi abatido enquanto se lutava frente a frente, a uma distancia de uns 50 metros. Um grupo de soldados o rodeou imediatamente e, sem saber ainda de quem se tratava, arrastou-o para as fileiras dos "rangers" (soldados especialistas em guerrilhas). Informações de fontes oficiais disseram que os guerrilheiros intensificaram seu ataque para tentar recolher o corpo, mas não tiveram exito. Ovando disse que o corpo ficou estendido numa especie de terra de ninguem por algum tempo, até que chegou um helicoptero de Valle Grande, a bordo do qual viajava o major Nino de Guzman, que conseguiu aproximar-se e ouvir as ultimas palavras de Guevara. A versão de La Paz coincide com a do general Ovando, em que essas ultimas palavras foram: "Sou Guevara e fracassei". Provas irrefutaveis, como o diario de "Che" os documentos que levava e as impressões digitais que lhe foram tiradas imediatamente depois de morto, identificaram-no como Ernesto Guevara. |
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