Resultantes da organização das comunidades surdas, movimentos sociais em busca

Finalizando nossa apostila de estudos sobre surdez, chegamos à última aula. Aqui procuraremos entender a constituição do sujeito surdo trabalhador, tendo como base os discursos sobre a surdez e a educação e o trabalho como temas nos movimentos surdos. Quando falamos de movimentos surdos, queremos colocá-los como movimentos sociais articulados a partir de aspirações, reivindicações, lutas das pessoas surdas no sentido do reconhecimento de sua língua, de sua cultura. Os movimentos surdos são uma possibilidade de resistência política às práticas hegemônicas nos diferentes espaços educacionais, sociais e culturais, como também, um espaço de luta pelo reconhecimento da Língua de Sinais e das identidades surdas. Conforme o entendimento de uma pesquisadora surda: Para o movimento surdo, contam as instâncias que afirmam a busca do direito do indivíduo surdo ser diferente nas questões sociais, políticas e econômicas que envolvem o mundo do trabalho, da saúde, da educação, do bem-estar social (PERLIN, 1998, p. 71). Os movimentos acontecem a partir dos espaços articulados pelos surdos, como as associações, as cooperativas, os clubes, onde os " jovens e adultos surdos estabelecem o intercâmbio cultural e lingüístico e fazem o uso oficial da Língua de Sinais " (FENEIS, 1995, p. 10).

Movimentos sociais no protagonismo pol�tico: a Comunidade Surda Brasileira e sua luta por reconhecimento e efetiva��o de direitos

O presente artigo convida o leitor a aproximar-se e, assim, permitir-se mergulhar nas quest�es que envolvem a tem�tica do movimento social e pol�tico dos surdos no Brasil, cuja luta � pela garantia e pela efetiva��o de direitos, especialmente �queles relacionados � igualdade de condi��es de acesso a uma educa��o de qualidade, capaz de respeitar a especificidade lingu�stica destes sujeitos, considerada como condi��o humana b�sica para seu pleno desenvolvimento. Com uma breve retomada da trajet�ria hist�rica da quest�o dos surdos ao longo dos tempos, chegando at� a organiza��o social e pol�tica da Comunidade Surda brasileira nos dias atuais. Autores como Sacks, Lucas, Perlin e Skliar oferecem o pano de fundo ideal a esta necess�ria contextualiza��o, pelo vi�s dos estudos culturais em educa��o. Numa perspectiva focada na compreens�o da sociedade e no papel de seus atores, este artigo encontra nas considera��es de J�rgen Habermas importantes referencias que alinhavam as considera��es finais deste texto, organizando e delineando um posicionamento frente � tem�tica abordada.

I - Introdução

Esta temática poderia ser ingenuamente considerada ponto de relevância apenas para a área da educação, dos serviços sociais ou até mesmo das áreas clínicas correlatas à saúde. No entanto, o amplo espaço de atuação da Gestão Pública apresenta-se favorável e receptivo às demandas reivindicadas pelo Movimento Surdo e onde, portanto, este tema precisa ser acessado, conhecido e compreendido, auxiliando na construção de diretrizes ou, até mesmo, na reavaliação de políticas públicas já existentes em nosso país, levando em consideração as especificidades deste grupo enquanto minoria linguística.

Através de uma breve contextualização histórica, procura-se apontar de que maneira a população surda vem, ao longo dos tempos, sendo tratada a partir de óticas que compreendem este sujeito pelo viés da “falta”, a partir daquilo que ele “não tem” e daquilo que ele “não pode ser”. Estas informações são relevantes visto que as marcas da trajetória dos surdos ainda estão presentes na atualidade, especialmente quando a comunidade surda de nossos dias vem a público reivindicar que a trágica retrospectiva de negação e discriminação não mais se repita.

Aponta-se neste texto a questão da diferença surda, partindo da própria história de vida da autora dentro deste contexto, fator determinante que despertou o interesse em descobrir como estes processos interferem em seu próprio desenvolvimento enquanto sujeito ativo neste movimento social. Certamente por esta razão, em muitos trechos, torna-se impossível manter a impessoalidade da pesquisa realizada por atores externos aos objetos de análise, visto que a vivência, neste caso, passa a ser também uma referência de apoio a linha de raciocínio traçada neste ensaio textual.

O Movimento Surdo no Brasil, na última década, tem vivenciado muitos fatos marcantes e que merecem ser publicados, relatados, reproduzidos e conhecidos por todas as pessoas. A luta pela oficialização da Libras – Língua Brasileira de Sinais e a conquista do reconhecimento desta enquanto segunda língua oficial em nosso país, bem como a disseminação do ensino e da utilização da Libras em diferentes contextos são, entre outros, alguns dos pontos relevantes a destacar nesta trajetória histórica.

Faz-se necessário, também, que o recorte histórico aqui proposto trate de abordar os fatos recentes que esta luta por reconhecimento e pela efetivação de direitos tem vivenciado. Surge, então, o Movimento Surdo em Defesa da Escola Bilíngue para Surdos, uma manifestação da vontade e das necessidades trazidas de dentro das Comunidades Surdas em relação a própria escolarização destes sujeitos, especialmente por ter na escola muito mais do que simplesmente o cumprimento o legal do direito a educação. A Escola Bilíngue para Surdos emerge como uma proposta capaz de oferecer as condições mais favoráveis à promoção do pleno desenvolvimento cognitivo de alunos surdos, principalmente por proporcionar a convivência em um espaço educacional onde a Língua de Sinais é de fato a primeira língua.

Assim, o presente artigo tece ponderações e reflexões, costuradas no pano de fundo do Movimento Surdo, com uma breve retomada histórica de suas lutas sociais e políticas, enfatizando a realidade atual no Brasil, onde esta forte mobilização nacional da Comunidade Surda vem articulando frentes em defesa da garantia da existência das Escolas Bilíngues para Surdos.

Esta história recente da comunidade surda brasileira está alicerçada em um grande esforço conjunto, onde pesquisadores, estudantes, educadores e outros colaboradores, surdos e ouvintes, estão direcionados e empenhados em conhecer as proposições dos Deputados Federais na elaboração da redação final do Projeto de Lei Nº 8035, de 2010, que institui as diretrizes do Plano Nacional de Educação – PNE –, cuja aplicabilidade compreende o decênio 2011-2020. Estes militantes da causa surda vem discutindo e propondo alterações significativas às propostas iniciais apresentadas pelo texto original deste Projeto de Lei, com vias a garantir, através da alteração de trechos de algumas das emendas, a existência de Escolas Bilíngues para Surdos. Dentre as justificativas da Comunidade Surda para estas alterações textuais na composição das emendas do PNE, destaca-se como ponto principal a questão da aquisição linguística e a construção da identidade surda, construída na perspectiva cultural da convivência dos surdos nestes espaços linguisticamente favoráveis ao desenvolvimento cognitivo integral destes sujeitos.

Existem diferentes referenciais internacionais que embasam as propostas do Movimento Surdo para a construção das políticas públicas para estes sujeitos surdos, assim como para as pessoas com deficiências, visto que estes grupos encontram-se em desvantagem no sistema social contemporâneo, especialmente por suas trajetórias históricas em busca da afirmação de suas capacidades e habilidades. O mais recente documento internacional publicado e que merece destaque, é o Documento da International Desabyliti Alliance – IDA –, entidade de representatividade mundial junto a ONU, cujo conteúdo reafirma as questões de direitos humanos e linguísticos dos surdos, principalmente na oferta de um sistema escolar que respeite sua especificidade. Este parece ser um tema de grande relevância neste contexto, principalmente pelo fato de que nos discursos políticos do cenário educacional brasileiro tem ficado claro o completo desconhecimento dos agentes públicos para com a especificidade surda. Além do documento da IDA, outros marcos legais também servem de apoio a esta busca por respostas capazes de garantir os direitos pelos quais os surdos brasileiros vem lutando.

Finalizando este breve registro, são utilizadas reticências no lugar de um ponto final, considerando que o principal objetivo desta construção textual está em abrir mais um espaço onde seja possível a ampliação desta discussão, propondo a reflexão sobre as questões que estão envolvidas na capacidade que as esferas políticas de representatividade legal dos cidadãos apresentam para atender as demandas, as necessidades e reivindicações apontadas por representações da sociedade civil organizadas, formadas por pessoas de determinados grupos, em determinados movimentos sociais. Contextualiza-se assim, esta capacidade de absorção das necessidades sociais pelo poder público através de uma aproximação com as ideias de Jurgër Habermass, onde são apresentados subsídios significativos para compreender e refletir sobre o quanto a sociedade consegue (ou não...) interferir nas decisões da esfera política.

Pretende-se, através das amarrações deste artigo, contribuir para a multiplicação de informações, com vias a auxiliar na reflexão pública acerca da temática da educação de surdos, assunto de grande relevância social não só para o povo brasileiro, visto que a luta dos surdos tem sido semelhante em todo o mundo, ao longo de sua história.

Vivemos em um tempo onde a comunidade surda brasileira emerge de anos de “silêncio” e chega aos diferentes espaços de representação pública para fazer valer seus direitos e necessidades. Assim, partindo do pressuposto de que as ações políticas e de que a criação de políticas públicas é fortemente influenciada pelas necessidades apresentadas pelo povo, o presente artigo propõe-se a fundamentar as necessárias discussões acerca das necessidades educacionais das pessoas surdas, subsidiando a construção de novos caminhos possíveis a esta área educacional.

II - A questão dos surdos: Um pouco de história

A história dos surdos, desde as primeiras menções de que se tem conhecimento, remonta a uma trajetória de grande sofrimento, marcada por relações onde o sujeito surdo teve, na grande maioria das vezes, papéis coadjuvantes na construção até mesmo de seus próprios passos.

A história dos surdos e a origem da exclusão são contadas a partir de diversos recortes da humanidade. Reconstruir tal trajetória significa entender concretamente o percurso do ideário de normalidade imposto a essa minoria e, consequentemente, a concepção de estigma que marca a vida dos surdos. (GARCEZ,, 2008, p.17)

Como afirma Perlin (2002), um dos primeiros registros encontrados sobre as pessoas surdas na sociedade está presente na Bíblia, nas páginas do Antigo Testamento. Desde este registro até os dias atuais, os surdos tiveram, de diferentes maneiras e intensidades, suas histórias narradas e marcadas pelo descrédito, pela afirmação de uma “menos valia” social e pela negação de direitos básicos por parte da sociedade majoritária ouvinte.

Na Grécia antiga, os primeiros filósofos acreditavam que os surdos fossem seres que, por não ter a capacidade da fala também não desenvolviam a capacidade de abstração e de compreensão do mundo e da realidade onde viviam. Sua sorte era das piores, muitas vezes sendo eliminados, escondidos, abandonados e mal tratados.

Na Idade Média a história dos surdos pouco se modificou, continuando a não ter direitos, de qualquer natureza, garantidos por parte do estado.

A situação dos surdos pré-linguais, antes de 1750, era de fato uma calamidade: incapazes de adquirir a fala, portanto, “estúpidos” ou “mudos”; incapazes de desfrutar a livre comunicação até mesmo com seus pais e famílias; confinados a uns poucos sinais e gestos rudimentares; isolados, exceto nas grandes cidades, até mesmo da comunidade de seus iguais; forçados a fazerem os trabalhos mais servis; vivendo sozinhos, muitas vezes próximos da miséria total; tratados pela lei e pela sociedade como um pouco melhores do que imbecis – o destino dos surdos era evidentemente terrível. (SACKS, 1990, p.30)

A primeira escola para surdos foi fundada em Paris em 1775, com apoio público para este fim. Isto aconteceu pelo empenho e pela vocação apresentados pelo jovem Abade de l’Epée, que segundo Sacks (1990, p.32) “considerou a linguagem dos sinais não com desdém, mas com respeito”. De l’Epée não conseguia aceitar o fato de que as pessoas surdas não poderiam alcançar a glória divina por não terem uma forma de compreender os ensinamentos que a Igreja da época tinha a disseminar. Assim, o Abade buscou conhecimento e embasamento para compreender os processos pelos quais os surdos poderiam melhor aprender e desenvolver-se, aproximando estes conceitos da língua naturalmente utilizada por um grupo de surdos para comunicar-se entre si.

Mas não são (de um modo geral) as idéias dos filósofos que mudam a realidade; também não são, inversamente, as práticas das pessoas comunas. O que muda a história, o que desencadeia revoluções, é o encontro de duas coisas. Uma mente superior – a do Abade de l’Epée – tinha de encontrar um costume humilde – a linguagem de sinais dos surdos pobres que perambulam por Paris – para possibilitar uma transformação extraordinária. (SACKS, 1990, p.32)

Assim, com esta combinação promissora entre a vontade e o brilhantismo de l’Epée e a língua de sinais utilizada pelos surdos em Paris na época, fora criado um método de ensino que encontrava nesta forma de comunicação viso-espacial sua principal mudança em relação aos métodos oralistas da época.

Esse modelo educacional que se expandiu por toda a Europa motivou o surgimento das línguas de sinais nacionais e os graus de alfabetização e educação dos surdos se elevaram a patamares nunca vistos antes”. (GARCEZ,, 2008, p.18)

Este avanço, no entanto, não ficou restrito apenas ao continente europeu. A escola criada por l’Epée formou muitos professores surdos, capacitando-os para atuar como mestres na escolarização e educação de pessoas surdas em outros lugares. Estes professores passaram a ser referência e muitos deles migraram para outros países, com o objetivo de educar outros surdos pelo mundo.

No Brasil, foi fundado o Imperial Instituto de Surdos Mudos, em 26 de setembro de 1857, durante o Império de Dom Pedro II, quando da vinda do professor surdo francês E. Huet. Na época, o Instituto funcionava como uma escola, mas também assumia o papel de asilo, onde só eram aceitos surdos do sexo masculino, advindos de todos os pontos do país.

No entanto, desde aqueles tempos, a aceitação da língua de sinais e de formas diferentes de interagir com o mundo e com o outro eram temas de grandes embates, em defesas favoráveis e contrárias ao uso e ao reconhecimento das línguas de sinais como algo positivo para o desenvolvimento de pessoas surdas.

Nestes recortes históricos encontramos fatos de grande relevância, mas dentre todos, e quando pensamos nas questões que estão envolvidas nos processos educacionais e de escolarização das pessoas surdas, é fundamental citar o Congresso de Milão, ocorrido em 1880 na Itália, e que pode ser definido como um evento ao qual, até os dias atuais, os surdos tem verdadeira aversão. O Congresso de Milão tinha como principal objetivo discutir, a nível mundial, qual seria a melhor forma de educar pessoas surdas, visto que não se conseguia chegar a um consenso sobre estas práticas.

Após alguns dias de discussão, em um universo de mais ou menos uma centena de pessoas, onde menos de uma dezena era composta de pessoas surdas, ficou acordado e definido que a escolarização de surdos através da língua de sinais deveria ser banida dos processos educacionais, pois o uso de línguas desta natureza era foco de descrédito, uma vez que acreditava-se que estas estimulavam comportamentos considerados anormais para os parâmetros da época, não servindo, portanto, para serem utilizados. Com esta decisão, ganhou ainda mais força o discurso das correntes oralistas, onde pessoas surdas eram escolarizadas e educadas através do desenvolvimento da fala.

Os professores surdos passaram a ser destituídos de suas funções. A língua de sinais passou a ser marginalizada e comparada com movimentos rudimentares, muitas vezes até com os movimentos dos animais. Os surdos não mais podiam se comunicar através de suas mãos, sendo que passou a “ser bom” apenas o surdo que aprendesse a falar, deixando para trás os traços capazes de identifica-lo enquanto sujeito fora da norma.

Para os defensores do modelo médico, a voz é o único meio de comunicação e de educação, e intervenções clínicas são necessárias para curar ou corrigir a surdez e reabilitar a fala. Sendo assim, o Oralismo estabelece uma espécie de “paradigma da normalização” dos surdos. Se antes os surdos eram simplesmente eliminados do convívio social, a partir do estabelecimento dessa corrente de pensamento passam a ser alvos das tentativas de correção e reabilitação que visam sua cura e consequentemente a sua reincorporação à sociedade. (GARCEZ,, 2008, p.19)

Estas decisões acabaram por proporcionar aos surdos, por quase um século, a vivência de um longo período de prejuízos gravíssimos para seu desenvolvimento cognitivo, emocional e social. Mourão (2010, p.1) vai ainda mais longe ao afirmar que “Ao longo da história, foram bem mais de cem anos de existência de um ensino para surdos através do método oral. Entretanto, qual foi o resultado? F-R-A-C-A-S-S-O”.

Na década de 1960, no entanto, começaram a surgir estudos sobre as línguas de sinais utilizadas pelas Comunidades Surdas. Apesar da proibição dos profissionais oralistas no uso de gestos e sinais, raramente se encontrava uma escola ou instituição para surdos que não tivesse desenvolvido, às margens do sistema, um modo próprio de comunicação através dos sinais. Nesta época, ao estudar a Língua de Sinais Americana (ASL), Willian Stokoe encontrou uma estrutura que, de muitos modos, se assemelha àquela das línguas orais. Stokoe argumenta em seus estudos que, assim como da combinação de um número restrito de sons (fonemas) cria-se um número vastíssimo de unidades dotadas de significado (palavras), com a combinação de um número restrito de unidades mínimas na dimensão gestual (queremas) pode-se produzir um grande número de unidades com significados (sinais). Nesta linha de pensamento, o linguista norte americano comprovou em suas análises que um sinal pode ser decomposto em três parâmetros básicos, que são o lugar no espaço onde as mãos se movem, a configuração e o movimento da(s) mão(s) ao realizar o sinal.

Esses estudos iniciais, além de outros que vieram após o pioneiro trabalho de Stokoe, revelaram que os sinais eram utilizados dentro de uma estrutura constitutiva de língua, preenchendo os requisitos que os estudos da linguística exigem para a validação das línguas orais.

Este ponto da história pode ser considerado um grande divisor de águas, pois a partir de então começou a se pensar na questão da educação de pessoas surdas considerando, enfim, a importância da aquisição da língua de sinais, bem como sua utilização nos processos de construção de significado e de conceitualização do mundo e de suas próprias vidas.

III - Organização social e política dos surdos brasileiros

A comunidade surda brasileira é descrita como uma força de luta por direitos muito presente e atuante no cenário social do país. Graças a mobilização desta comunidade muitas são as conquistas que podem ser constatadas na última década.

Um dos mais importantes atores sociais que deve ser destacado nesta trajetória é a Feneis – Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos. A história da Feneis iniciou-se em 1977, quando fora criada a Federação Nacional de Educação e Integração dos Deficientes Auditivos (Feneida). Esta instituição foi criada por profissionais ouvintes, que tinham relação com a área da surdez e seu principal objetivo era oferecer um espaço de apoio aos surdos, sujeitos historicamente excluídos dos processos sociais e democráticos.

Apesar dos objetivos nobres, um fato interessante que pode ser observado nos registros desta história, está na questão de que a Feneida, mesmo sendo criada com o objetivo de auxiliar e promover a emancipação dos surdos, apresentava-se bastante limitada ao desenvolvimento pleno destes sujeitos, talvez por desconhecimento ou por falta de experiência. Assim, muitos registros apontam para uma queixa recorrente de que a instituição acabava por deixar de fora muitos aspectos da cultura surda, o estímulo ao uso e a própria difusão da língua de sinais, bem como não considerava os desejos das pessoas surdas de forma satisfatória. Acredita-se também que havia uma falta de protagonismo por parte dos surdos, fator originado em uma questão crucial: o longo período em que a língua de sinais fora banida das escolas e da vida dos surdos fez com que estes sujeitos não tivessem “voz” capaz de alcançar o próprio reconhecimento perante a sociedade. Assim, os surdos acabavam por não assumir papéis de liderança pois faltava-lhes experiência neste tipo de vivência.

Com o passar do tempo, e com o gradual aprimoramento linguístico, cognitivo e social da comunidade surda, o engajamento político passou a fazer parte também do cotidiano dos surdos, surgindo as primeiras lideranças. Assim, com o surgimento de lideranças motivadas em engajar-se nas lutas surdas, com o crescente aumento na demanda de encaminhamentos com vias a atender as necessidades dos surdos, bem como com a complexidade do trabalho a ser desenvolvido, fora necessária uma reestruturação estatutária e organizacional na instituição, que resultou em significativas mudanças. Estas mudanças influenciaram substancialmente os encaminhamentos e a trajetória da militância surda a partir de então.

Na data de 16 de maio de 1987, através da realização de uma Assembléia Geral, foi escolhido o novo nome da entidade, que passou a chamar-se de Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis). Esta mudança não fora apenas na forma escrita do nome da entidade ou então uma simples alteração de estatuto. Nesta nova configuração, os surdos de fato assumiram o papel de protagonistas na Instituição e nos rumos do Movimento Surdo. Como principal resultado obtiveram a expansão e descentralização de diversas atividades, proporcionando a criação de escritórios regionais da Feneis por todo o Brasil.

As alterações ocorridas são consideradas pela entidade como o passo fundamental para melhor atender as especificidades dos surdos. Neste sentido, quando aborda-se esta temática, não restringe-se as ações exclusivamente pautadas no sujeito surdo. Observa-se que há uma preocupação em disponibilizar profissionais qualificados no atendimento de familiares, na interrelações com outras instituições e organizações, sejam estas governamentais ou não-governamentais, na relação com professores de surdos, com fonoaudiólogos e com outros profissionais desta área de atuação.

Atualmente, a Feneis possui está presente em todo o país, descentralizada em nove escritórios regionais, com aproximadamente 120 entidades filiadas (Associações de Surdos, Associações de Pais e Amigos de Surdos, Escolas e Clínicas Especializadas no atendimento de pessoas surdas, entre outras).

A Feneis é uma entidade filiada à Federação Mundial dos Surdos (WFD), uma organização com sede na Finlândia, cujos princípios norteadores estão intimamente relacionados ao objetivo de garantir os direitos culturais, sociais e linguísticos dos surdos em todo o mundo. Através desta aproximação e parceria, os surdo do Brasil acabam por ser beneficiados com o constante intercâmbio de informações, culturas e saberes com surdos de todo o mundo.

A Federação Mundial dos Surdos representa estes sujeitos junto a outras entidades de reconhecimento mundial, assim como a Organização das Nações Unidas (ONU); a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO); a Organização dos Estados Americanos (OEA); e a Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Um importante lugar ocupado pela Feneis no Brasil, e que lhe garante assim representatividade para fazer valer as necessidades das pessoas surdas de nosso país, está na cadeira conquistada junto ao Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência – CONADE – ligado à Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Mesmo com a existência deste importante lugar, que destaca-se no cenário das políticas públicas nacionais que visam a promoção da acessibilidade e, consequentemente, da igualdade de condições, a luta dos surdos vem encontrando obstáculos para fazer valer direitos conquistados ao longo de sua vida de movimento social. Frente as atuais políticas de educação inclusiva, muitos duelos tem sido travados com o objetivo de fazer valer a tônica de expressões como “nada sobre nós sem nós”, onde os surdos questionam o desentendimento recorrente que há sobre quais aspectos são de fato capazes de incluir estes sujeitos na sociedade, considerando o acesso à educação e à construção do conhecimento.

IV - Marcos legais: Caminho possível para a efetivação da garantia dos direitos dos surdos

Durante esta trajetória do Movimento Surdo, algumas conquistas legais merecem ser destacadas, principalmente pelo efeito que estas ocasionaram na efetivação da inclusão social dos surdos no meio em que vivem. Destaca-se, também, o fato de ter nestes textos legais claros indicativos da necessidade e da validade de uma educação para surdos que parta dos pressupostos da diferença linguística, servindo assim de base legal para garantir que se considerem as atuais reivindicações da Comunidade Surda no Brasil.

Conforme encontramos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu Artigo 208, Inciso III, “O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:... atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino”. Assim, diferente de significar que obrigatoriamente os alunos surdos sejam inclusos em salas e em escolas regulares, neste caso monolíngues, o termo “preferencialmente” aponta, já na Constituição Federal, a possibilidade de que exista um tipo de atendimento educacional específico e diferenciado, de acordo com as necessidades dos sujeitos envolvidos neste processo.

Ao apontar o texto constitucional, encontro em Habermas um importante aliado na valorização do papel da Constituição, enquanto marco expressivo da atitude e da história em um determinado tempo e espaço, reforçando o aspecto legítimo que o Movimento Surdo apresenta ao contestar as praticas excludentes da escolarização de alunos surdos incluídos em escolas regulares e monolíngues.

Toda constituição histórica desenvolve dupla relação com o tempo: enquanto documento histórico, ela relembra o ato de fundação que interpreta (ela marca um início ou um tempo e, simultaneamente, enuncia o seu caráter normativo, ou seja, relembra que a tarefa de interpretação e de configuração do sistema dos direitos se coloca para cada geração, como uma nova tarefa); enquanto projeto de uma sociedade justa, a constituição articula o horizonte de expectativas de um futuro antecipado no presente. (HABERMAS, 1997, p.119)

Buscando subsídios capazes de respaldar a luta da Comunidade Surda pela garantia do direito a uma educação capaz de oferecer a estes sujeitos plenas condições de desenvolvimento, faz-se necessário reconhecer que os surdos, em todos os países, são considerados também como minorias linguísticas e, portanto, é preciso levar em conta sua especificidade comunicacional, cultural e social. Os suportes legais contém os registros obtidos através de intensas discussões correlatas à temática dos surdos e podem ser encontrados em Cartas, Convenções e outros documentos. Em Assembléia Geral realizada pela Organização das Nações Unidas, em dezembro de 1992, fora publicada a Declaração Sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas, aprovada pela Resolução 47/135 deste mesma Assembléia. Neste marco legal destaca-se o texto descrito no item 1 do Artigo 4º, no qual afirma-se que

Os Estados adotarão as medidas necessárias a fim de garantir que as pessoas pertencentes a minorias possam exercer plena e eficazmente todos os seus direitos humanos e liberdades fundamentais sem discriminação alguma e em plena igualdade perante a Lei.

Ainda nesta Declaração, no item 3 do Artigo 4º, afirma-se que

Os Estados deverão adotar as medidas apropriadas de modo que, sempre que possível, as pessoas pertencentes a minorias possam ter oportunidades adequadas para aprender seu idioma materno ou para receber instruções em seu idioma materno.

Quando trazemos estas afirmações para o campo de discussão da Gestão Pública, foco principal desta análise, condiz apontar ainda a seguinte a orientação desta Declaração da ONU, expressa em seu Artigo 5º, onde pontua que “As políticas e programas nacionais serão planejados e executados levando devidamente em conta os interesses legítimos das pessoas pertencentes a minorias”.

Partindo dos destaques relacionados, pode-se compreender que no Brasil há de fato um primeiro passo, dado na direção de uma efetiva política linguística, através da oficialização e o reconhecimento da Libras como 2ª língua oficial do país, cuja legislação específica será tema abordado nos próximos parágrafos.

Posterior à Declaração da ONU que reconhece os direitos das minorias linguísticas, outro documento muito utilizado como base para a criação de Políticas Públicas com foco na garantia de direitos humanos primordiais ao pleno desenvolvimento do indivíduo é a Declaração de Salamanca, datada de 1994, cujo conteúdo tem sido amplamente divulgado e utilizado até o momento presente.

A Declaração de Salamanca aparece em muitos discursos como sendo um marco na direção da inclusão de todas as crianças no ensino regular, numa perspectiva de inclusão generalizada, muito presente nas políticas educacionais da educação brasileira. De posse desta “bandeira”, defesas da inclusão de todos os alunos numa mesma perspectiva educacional, num mesmo espaço e tempo, acaba por persuadir a formação de opinião, principalmente do senso comum, de que ter espaços diferenciados possa ser algo que fere os princípios de uma “educação para todos”. E, ao fazer esta apropriação aprofundada da forma como estão expressos os conceitos desta e de outras Declarações, concordo com Habermas (1997, p.97) quando diz que “as opiniões públicas podem ser manipuladas, porém não compradas publicamente, nem obtidas a força”, principalmente ao encontrar, numa escrita clara e transparente, a preocupação em destacar aspectos diferenciados na escolarização de alunos surdos. Um dos trechos com maior ênfase na questão da educação de pessoas surdas encontra-se no item 19 da parte A, “Política e Organização”, parte II, sub item “ Linhas de Ação em Nível Nacional, da Estrutura de Ação em Educação Especial”, onde consta que as

Políticas educacionais deveriam levar em total consideração as diferenças e situações individuais. A importância da linguagem de signos como meio de comunicação entre os surdos, por exemplo, deveria ser reconhecida e provisão deveria ser feita no sentido de garantir que todas as pessoas surdas tenham acesso à educação em sua língua nacional de signos. Devido às necessidades particulares de comunicação dos surdos e das pessoas surdas/cegas, a educação deles pode ser mais adequadamente provida em escolas especiais ou classes especiais e unidades em escolas regulares”. (Declaração de Salamanca, 1994)

Nesta construção de preceitos legais em direção à efetivação de direitos, outro documento a ressaltar, por sua grande relevância para a Comunidade Surda, é a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, também conhecida como Declaração de Barcelona. Este documento foi assinado pela UNESCO em 1996, em parceria com diferentes organizações não governamentais, sendo seu principal objetivo reconhecer os direitos linguísticos das pessoas, principalmente frente a ameaça de extinção de línguas utilizadas por diferentes minorias dos povos da humanidade. Este documento obteve aprovação durante a realização da Conferência Mundial sobre Direitos Linguísticos, que ocorreu em Barcelona, na Espanha, entre os dias 06 a 09 de junho de 1996.

A Declaração Universal dos Direitos Linguísticos fora construída a partir do esforço conjunto de diferentes Instituições e Organizações Mundiais, e embasou-se em outros Documentos de grande relevância para a garantia de direitos fundamentais da humanidade. Em seu corpo, aparecem referências claras as declarações e as convenções do Conselho da Europa, a Convenção Européia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, datada de 4 de novembro de 1950 (artigo 14.º); a Declaração do Recife (Brasil), de 9 de outubro de 1987, do XXII Seminário da Associação Internacional para o Desenvolvimento da Comunicação Intercultural, onde encontram-se, nos anais, o documento Os Direito Linguísticos dos Surdos.

Todo este embasamento levou a Organização das Nações Unidas a tomar as medidas necessárias à adoção e aplicação de uma Declaração Universal dos Direitos Linguísticos. Neste sentido, percebe-se uma coesão de intensões, onde recomenda-se que os direitos linguísticos sejam considerados direitos fundamentais do homem.

Compactuando com esta perspectiva linguística, na legislação nacional é importante destacar a Lei de Nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Esta Lei, conhecida como “Lei de Libras”, traz em seu corpo uma das conquistas mais significativas na luta da Comunidade Surda para a efetivação da garantia de direitos, quando em seu Artigo 1º reconhece a Libras como 2ª Língua Oficial Brasileira: “É reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais - Libras e outros recursos de expressão a ela associados”.

Ao afirmar que a Libras é a língua oficial brasileira utilizada pela Comunidade Surda do país e ao ressaltar a necessidade de que esta língua esteja presente nos espaços e contextos educacionais como garantia de direito à acessibilidade universal, podemos compreender que todo o entorno da utilização e da difusão desta língua deve estar intimamente atrelado à garantia da existência de um espaço diferenciado ao alunado surdo. A existência de espaços educacionais onde a língua de sinais assume o papel de 1ª língua, onde alunos surdos possam estar inseridos minimamente até que as capacidades sócio linguísticas desenvolvam-se de forma satisfatória, através do uso frequente, fluente e natural desta forma de comunicação, passa a ser pressuposto básico na organização escolar que deve ser pensada e preparada para o alunado surdo.

Aliado à Lei de Libras, outro marco legal fundamental que empodera as reivindicações pela existência das Escolas Bilíngues para Surdos, é o documento que vem exatamente para regular a aplicação e a efetiva execução dos termos desta Lei é o Decreto de Nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Juntos, estes dois documentos são responsáveis por uma mudança muito importante frente as necessidades e anseios da Comunidade Surda brasileira e de fato foram alcançados graças a mobilização destes sujeitos, principalmente por estarem organizados através da existência da Feneis. Com a conquista da publicação destes marcos legais, passam a existir indicativos de como deveriam ser organizadas diversas questões, relacionadas ao uso e ao reconhecimento da Libras – Língua de Sinais Brasileira – como língua de instrução e de comunicação das pessoas surdas no Brasil. É possível fazer esta afirmação uma vez que estas resoluções dispõem sobre questões relacionadas ao meio educacional em diferentes níveis, com foco na inserção da Libras especialmente nos meios acadêmicos, tanto para a inclusão do surdos neste espaço quanto para a difusão de sua língua neste meio, entre outros pontos.

Com a regulamentação da Lei de Libras, através do Decreto 5.626, um dos pontos de maior destaque é a inclusão da disciplina de Libras nos cursos de Formação de Professores (nos cursos Médios e complementares de Magistério e nos Cursos de Licenciatura, Pedagogia, Psicologia e Fonoaudiologia na Graduação. Com a implementação desta medida, a Libras ganhou ainda mais destaque e passou a circular entre meios onde antes passava despercebida, desconhecida por muitos.

O fato de reconhecer a Libras como uma língua oficial do país é um dos pontos mais importante para este grupo social, pois ao reconhecer a legalidade e a oficialidade de uma língua, reconhece-se os sujeitos usuários desta língua enquanto sujeitos sócio culturais, reforçando o próprio discurso surdo da importância e da necessidade de oferecer organizações pedagógicas capazes de estimular e oferecer condições compatíveis de ensino e de construção de conhecimento aos surdos.

Em 25 de agosto de 2009 foi publicado o Decreto de Nº 6.949 que promulga o Decreto Legislativo de Nº 186, de 9 de julho de 2008, que trata, em seu Artigo 24, da temática da Educação, e onde aponta, no item 3, letra b, que

Os Estados Partes assegurarão às pessoas com deficiência a possibilidade de adquirir as competências práticas e sociais necessárias de modo a facilitar às pessoas com deficiência sua plena e igual participação no sistema de ensino e na vida em comunidade. Para tanto, os Estados Partes tomarão medidas apropriadas, incluindo:... b) Facilitação do aprendizado da língua de sinais e promoção da identidade linguística da comunidade surda

Com estas prerrogativas, o Estado reconhece a necessária garantia de que a educação das pessoas surdas seja ministrada nas línguas, nos modos e nos meios de comunicação mais adequados ao indivíduo, em ambientes que favoreçam ao máximo seu desenvolvimento acadêmico e social, enfatizando ainda a promoção da identidade linguística da Comunidade Surda, realidade capaz de ser alcançada com a existência de espaços específicos e verdadeiramente bilíngues. Através deste texto, legaliza-se e garante-se a existência de espaços desta vivência sóciocultural da comunidade surda.

A construção dos preceitos legais que regem a organização social e política em nosso país vem consolidando a garantia de direitos fundamentais às pessoas surdas. No entanto, a interpretação que tem sido lançada a estes textos aparentemente não está de acordo com todos os pontos claramente garantidos através destas publicações.

O maior entrave que a Comunidade Surda vem enfrentando para gozar plenamente do direito escolarizar-se em uma escola específica para surdos está principalmente ligado aos atuais discursos “inclusivistas” onde não se parte verdadeiramente do pressuposto de uma “educação para todos”, mas sim, parte-se de lugares onde há a busca do esmaecimento das identidades, onde há o “sumiço” da diferença e, principalmente, onde os resultados acabam na homogeneização dos sujeitos. Nesta linha de pensamento massificadora, os discursos encontram no desejo surdo de ter uma escola específica um terrível vilão representado pela proposta da existência destes espaços, como se estes fossem segregacionistas e excludentes.

Recentemente fora publicado um documento pela “International Desability Alliance” – IDA – que ratifica o Tratado da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, onde destaca-se o Artigo 24, com relação à educação para surdos e surdocegos, no documento “O Direito à Educação: Capacitando a Sociedade para Incluir e se Beneficiar das Habilidades de Pessoas com Deficiências”, construído durante a Reunião da Cúpula do Conselho Econômico e Social (ECOSOC), durante a Revisão Ministerial Anual, realizada entre os dias 04 a 08 de julho de 2011. Nesta ocasião, a questão da educação de surdos foi intensamente debatida, sendo que no Artigo 24 é reiterado o direito que todas as crianças, incluindo aquelas com deficiências, têm à educação. No corpo do texto são abordadas as limitações que a maioria dos programas educacionais para estudantes com deficiências vem apresentando. Um dos destaques aparece quando o texto trata do fato de que a maioria dos programas não segue um currículo regular e, portanto, limita as oportunidades de avanço para os níveis mais elevados da educação. Com estas afirmações, pode-se interpretar que tais propostas educacionais não tem conseguido preparar os estudantes para atuar de forma plena e ativa em suas comunidades. O Artigo 24 reconhece ainda as diversas necessidades dos estudantes, com vias a garantir a não discriminação na educação e a plena participação na sociedade. É reconhecida a necessária garantia de que a educação de pessoas, em especial crianças, cegas, surdas ou surdocegas, seja ministrada nas línguas e nos modos e meios de comunicação mais adequados para estes indivíduos.

Atualmente, além destes indicativos legais e dos documentos oficiais, produzidos por organizações e entidades de representatividade entre diferentes grupos sociais, dos quais a Comunidade Surda também faz parte, é crescente o número de pesquisas que constatam os baixos níveis de desenvolvimento cognitivo e social de crianças surdas, cuja situação de inclusão é tratada como uma simples colocação em uma escola regular, espaço este onde não acontece a interação significativa com seus pares, ocasionando assim uma verdadeira estimulação a sua exclusão da educação e da sociedade. Esta situação tem sido nominada por Lopes (2010) como in(ex)clusão dos alunos surdos nas escolas regulares.

Reforçando a importância da existência da Escola Bilíngue para Surdos, como defendida pela Comunidade Surda no Brasil, o documento da IDA, afirma ainda que

(...) algumas escolas para surdos permitem e tornam mais fácil o uso da língua de sinais e a abordagem bilíngue, de acordo com as necessidades dos alunos surdos. Para os estudantes surdos, elas não se constituem em “instituições de educação especial”, mesmo que existam dentro do sistema de educação especial. As escolas deveriam permitir e facilitar o uso da língua de sinais, além de utilizar uma abordagem bilíngue e orientada para as necessidades dos alunos.

Embasados nestes documentos, especialmente nos indicativos e afirmações que neles estão explicitados, a Comunidade Surda Brasileira caminha na direção de uma virada política e cultural. Partindo dos pressupostos apresentados como válidos para a ação educacional voltada ao alunado surdo e considerando as diferentes ações que vem chamando a atenção da opinião pública, as reivindicações desta Comunidade estão atravessando as “comportas do complexo parlamentar”, e alcançando meios para efetivar as ações necessárias a implementação de uma política educacional linguística para surdos.

V - A compreensão da esfera pública, dos atores sociais e do poder comunicativo, segundo Jürgen Habermas

Compreender como acontecem as relações estabelecidas pelo Movimento Surdo em Defesa das Escolas Bilíngues para Surdos com a esfera pública política, apresenta-se como parte importante do processo de construção deste artigo, principalmente pelo fato de que a trajetória deste movimento será decisiva para a consolidação de ações capazes de resolver os empasses encontrados entre as ideias do grupo social dos surdos e dos meios públicos onde as tomadas de decisão acontecem.

Faz parte deste processo de compreensão dos fatos, em primeira instância, a compreensão de alguns conceitos, capazes de realizar esta ação descritiva do cenário onde as forças envolvidas encontram espaço para interagir. Um primeiro conceito importante neste reconhecimento de territórios e atores é o de esfera pública, que segundo Habermas (1997, p.92)

pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos,

Assim, compreende-se a esfera pública como o espaço onde as informações transitam, e onde são selecionados temas de maior relevância, exatamente por seu caráter público, para serem tratados e deliberados, em conformidade com as demandas e anseios apresentados pelo contexto geral do qual esta faz parte.

Habermas (1997, p.92) explicita ainda que a esfera pública “constitui principalmente uma estrutura comunicacional do agir orientado pelo entendimento, a qual tem a ver com o espaço social gerado no agir comunicativo”.

Trazendo este conceito para a temática do Movimento Surdo do Brasil na atualidade, a esfera pública pode ser compreendida como o cômputo dos espaços onde as demandas sociais apresentadas pelos surdos devem encontrar respaldo para que sejam encaminhadas as ações legais pertinentes a efetivação dos direitos reivindicados por estes cidadãos. O parlamento, o senado, os ministérios e demais instâncias representativas da sociedade fazem parte deste espaço que aqui define-se, pois, como esfera pública, ressaltando que outras instâncias também podem fazer parte deste cômputo.

Em uma perspectiva habermaniana, é possível acreditar que o Movimento Surdo encontrará na esfera pública o lugar onde, através da pressão social exercida, as questões reivindicadas encontrem ressonância e encaminhamentos compatíveis, pois

Para preencher sua função, que consiste em captar e tematizar os problemas da sociedade como um todo, a esfera pública política tem que se formar a partir dos contextos comunicacionais das pessoas virtualmente atingidas. [...] Os problemas tematizados na esfera pública política transparecem inicialmente na pressão social exercida pelo sofrimento que se reflete no espelho de experiências pessoais de vida. (HABERMAS, 1997, p.97)

Frente a esta compreensão de esfera pública, cabe agora compreender que papel é assumido pelo Movimento Surdo no Brasil, quando apresenta demandas a serem supridas e discussões a serem promovidas. Assim apresentado, pode-se afirmar que o conceito de sociedade civil abordado por Habermas é capaz de delinear o papel deste grupo social, no contexto em que está inserido.

A sociedade civil compõe-se de movimentos, organizações e associações, os quais captam os ecos dos problemas sociais que ressoam nas esferas privadas, condensam-nos e os transmitem, a seguir, para a esfera pública política. (HABERMAS, 1997, p.99)

Ao assumir a frente de uma manifestação permanente, buscando efetivar o direito a uma educação diferenciada na forma e no sentido, a Comunidade Surda assume para si o lugar da sociedade civil organizada, partindo de uma forma estrutural atual, que apresenta-se substancialmente muito diferente dos modelos de sociedade civil presentes até o final da primeira metade do século XX. Assim, está descrita numa perspectiva de organização social atuante, que aparece na defesa de interesses do coletivo deste grupo organizado.

O Movimento Surdo, ao apoiar-se em direitos fundamentais, anteriormente discorridos e contextualizados no corpo deste artigo, incorpora nas temáticas desta luta questões de uma organização social própria, onde trata de temas de interesse geral da população surda e representa, assim, esta parcela da população brasileira. Apresenta, ainda, a especificidade de organização das questões envolvidas, visto que o uso e a presença constante da Libras nesta convivência de militância é algo que não pode ser encontrado em outros grupos e organizações.

Atualmente, todos os estados brasileiros estão envolvidos nesta mobilização nacional. Há um grande sentimento de pertencimento à causa, expresso publicamente através da troca e da divulgação de vídeos, cartas, links e outros dados relevantes, utilizando para isso as possibilidades das tecnologias da comunicação e as redes sociais da internet. Estas características ficaram evidentes durante as manifestações políticas e nos atos públicos realizados pelo Movimento Surdo em Brasília, durante os dias 19 e 20 de maio de 2011, quando cerca de 10 mil surdos e apoiadores da causa participaram das ações promovidas.

O contexto virtual merece especial destaque neste movimento e em suas diferentes articulações, visto que é através deste espaço que as interrelações se fortalecem e fazem com que os atores tome posições de protagonistas conscientes de seu papel transformador. Esta consciência da importância do papel assumido frente ao coletivo, nas organizações sociais atuais, aparece pontuada por duas características principais e, até certa medida, um pouco controversas entre si.

Os atores conscientes de que, através de suas diferenças de opinião e de sua luta por influência, estão envolvidos no empreendimento comum de reconstituição e de manutenção das estruturas da esfera pública, distinguem-se dos atores que se contentam em utilizar os foros existentes, através de uma dupla orientação de sua política, ou seja, através de seus programas, eles exercem uma influência direta no sistema político, porém, ao mesmo tempo, estão interessados reflexivamente na estabilização e ampliação da sociedade civil e da esfera pública, bem como em assegurar sua própria identidade e sua capacidade de ação. (HABERMAS, 1997. P.103)

O conceito de dualidade, presente nos movimentos sociais da atualidade, é explicitado por Habermas, apoiado em outros autores, ao afirmar que estes “perseguem objetivos “ofensivos” e “defensivos” ao mesmo tempo” (1997, p.103). O movimento social dos surdos, em seu comportamento ofensivo, lança para a sociedade em geral questões de grande relevância social para estes sujeitos, problematizando estas questões e apresentando novas informações e possíveis encaminhamentos de solução. Desta maneira, busca formar o consenso público à temática da educação de surdos e, consequentemente, ampliar a força da tensão gerada na direção da esfera pública.

Por outro lado, complementando a dualidade expressa por Habermas, e contextualizada aqui através do Movimento Surdo, encontramos os objetivos defensivos que compõem o “front” deste campo de lutas. Aparecem, então, ações e intenções onde esta organização social busca defender e preservar certos aspectos natos deste grupo, tornando mais sólidas identidades coletivas, garantindo direitos de maneira mais ampla, principalmente através da reformulação de instituições e de situações dadas como prontas.

Os aspectos “defensivos” são considerados, na teoria de Habermas, como fundamentais a mudança e, assim, apontados como propulsores para que as reivindicações sirvam de base para que ocorram alterações conceituais e práticas significativas ao grupo social.

Nesta descrição, o aspecto ‘defensivo’ desses movimentos inclui a preservação e o desenvolvimento da estrutura comunicativa própria ao mundo da vida. Esta formulação leva em conta, não somente aspectos paralelos discutidos por Alain Tourraine, mas também a ideia de Jürgen Habermas, segundo a qual esse movimentos podem ser os suportes dos potenciais da modernidade cultural. Esta é uma condição indispensável, sem a qual não se pode empreender nenhum esforço promissor para redefinir as identidades, reinterpretar as normas e desenvolver formas de associação igualitárias e democráticas. (COHEN, ARATO, 1992, p.531 apud HABERMAS, 1997, p.103)

Ao compreender o movimento surdo sob esta ótica, pode-se afirmar que este configura-se como um agente de grande importância no cenário social brasileiro, pois na medida em que seus argumentos sejam claros e plausíveis, também as mudanças na estruturação educacional para receber estes sujeitos podem ser consideradas positivas e passíveis de tornar-se reais.

Segundo os pressupostos de Habermas, a formação da opinião pública aparece neste contexto como um dos fatores mais relevantes, pois será através da disseminação das informações e da capacidade apresentada pelo movimento social de explicitar suas questões, justificando as demandas e necessidades, que um número maior de atores e movimentos poderá unir forças no sentido de fazer valer os direitos reivindicados. A pressão da opinião pública pode determinar a forma como a esfera pública política irá encaminhar as soluções para os impasses apresentados pelo coletivo.

Habermas apresenta ainda três modelos onde a influência exercida pela sociedade civil, através de seus atores, acaba por ser decisiva na readequação e na reestruturação da esfera pública, de acordo com as reivindicações dos grupos sociais, determinando o “fluxo da comunicação. Contrastando a teoria apresentada e o Movimento Surdo, este último apresenta-se encaixado no terceiro caso, denominado modelo de iniciativa externa, apresentado pelo autor.

Somente no terceiro caso a iniciativa pertence às forças que se encontram fora do sistema político, as quais impõem o tratamento formal utilizando-se da esfera pública mobilizada, isto é, da pressão da opinião pública: “O modelo da iniciativa externa aplica-se à situação na qual um grupo que se encontra fora da estrutura governamental: 1) articula uma demanda, 2) tenta propagar em outros grupos da população o interesse nessa questão, a fim de ganhar espaço na agenda pública, o que permite 3) uma pressão suficiente nos que têm poder de decisão, obrigando-os a inscrever a matéria na agenda formal, para que seja tratada seriamente. Esse modelo de formação de uma agenda pode predominar em sociedades mais igualitárias. (COBB, ROSS e ROSS, 1976, p.132 apud HABERMAS, 1997, p.114)

Esta é uma realidade que pode ser facilmente transposta para a organização da esfera pública política do sistema de governo brasileiro, uma vez que este apresenta-se, até certo ponto, “aberto” e receptivo as demandas sociais.

Nesta concepção, onde o papel da organização social ganha força frente a possibilidade de mudanças na organização política e administrativa das leis e normatizações, Habermas aponta ainda para a pluralidade de concepções e de movimentos da diferença que surgem em nossos tempos, onde os problemas sociais são abordados e acabam por alcançar a um grande número de pessoas, exatamente por estarem tão enraizados às necessidades da população de forma genérica. Mesmo considerando que a debilitada capacidade de ação e as “desvantagens estruturais” das organizações da sociedade civil, os atores que compõem esta organizações são capazes de assumir papéis extremamente “ativos e plenos de consequências”, na medida em que tomam consciência das situações de crise. São exatamente nestas situações em que propostas de solução aparecem de maneira satisfatória, normalmente ligadas ao stress da própria situação problema.

VI - Considerações finais

Embasados em todas as prerrogativas legais e, principalmente, fortalecidos por suas experiências educacionais ao longo da vida, os surdos brasileiros organizaram um movimento naci

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THOMA, Adriana da Silva e LOPES, Maura Corcini. (orgs.). A invenção da surdez: Cultura, Alteridade, Identidade e Diferença no Campo da Educação. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2005.

Quais os objetivos e lutas do movimento surdo?

Para o movimento surdo, contam as instâncias que afirmam a busca do direito do indivíduo surdo ser diferente nas questões sociais, políticas e econômicas que envolvem o mundo do trabalho, da saúde, da educação, do bemestar social (Perlin, 1998: 71).

Qual a importância dos movimentos dos surdos?

Foi ao longo dos anos 1990 que o movimento surdo convergiu no sentido de promover uma campanha para a oficialização dessa forma de comunicação sinalizada, tendo por objetivo buscar, por força da lei, o reconhecimento social e jurídico que lhe havia sido historicamente negado (SOUZA, 1998; BRITO, 2013).

O que as comunidades surdas defendem?

A própria comunidade surda, desde o século XIX, defende que a única maneira de promover a inclusão social de forma mais igualitária possível era por meio do ensino a partir de métodos manualistas, e com a participação de professores surdos na organização das escolas e das instituições de surdos.

Quais são as ações da comunidade surda?

Evangelização de surdos em igrejas através de intérpretes. Ampliar o ensino da Libras nas escolas públicas e particulares, fazendo que logo nos primeiros anos de alfabetização as crianças surdas possam aprender a Língua Brasileira de Sinais como principal recurso para se comunicar.