Por Stênio Justino da Costa
A atividade empresarial é composta de riscos econômicos e jurídicos que exigem a atenção de sócios e acionistas[i] na proteção de seu patrimônio pessoal. Em muitos casos, a partir do momento em que o empreendimento societário se torna malquisto, seus empreendedores simplesmente abandonam a sociedade acreditando que a mera cessação das atividades será suficiente para o encerramento de sua personalidade jurídica e de suas obrigações civis e tributárias. Trata-se, na verdade, de um encerramento irregular que pode irradiar efeitos jurídicos indesejáveis sobre o até então protegido patrimônio pessoal dos sócios.
Para evitá-los, a dissolução da sociedade empresária[2] deve se submeter a um procedimento formal, que compreende, ordinariamente, (i) o ato de dissolução, encartado pelo distrato; (ii) a liquidação do patrimônio social, através da apuração do ativo e do passivo da empresa; (iii) a partilha do acervo social restante entre os sócios, caso o resultado da liquidação seja positivo; e (iv) a extinção da personalidade jurídica, mediante a respectiva baixa no órgão competente, que no caso de uma sociedade empresária é a Junta Comercial.
Por outro lado, durante a vida da empresa, os credores e outros stakeholders devem ter a garantia de que sócios, acionistas e administradores estão atuando em prol da empresa e da atividade negocial por ela desenvolvida, com ética, honestidade e transparência. Nesse contexto, um dos institutos jurídicos criados para assegurar a lisura empresarial é a chamada Desconsideração da Personalidade Jurídica.
O instituto da disregard doctrine visa tornar possível a superação da figura da personalidade jurídica para alcançar o patrimônio dos sócios, para combater a gestão fraudulenta, abusos, desvios de finalidade ou o uso da pessoa jurídica para fins ilegais. Em outras palavras, a medida se mostra oportuna quando o sócio se vale da pessoa jurídica como escudo para cometer ilicitudes. Na sua grande maioria, os motivos para a aplicação do instituto surgem por oportunidade do encerramento irregular da sociedade empresária.
Por isso, para pensarmos em personalidade jurídica, imperioso ter em mente o disposto no art. 45, do Código Civil, que dispõe:
Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.
Observada essa regra, as pessoas jurídicas passam a ter existência distinta da dos seus membros, o que pode justificar, casuisticamente, a desconsideração da personalidade jurídica, a partir, especialmente, do disposto no art. 50, do Código Civil, que dispõe, in verbis:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
Com efeito, a dissolução irregular por encerramento das atividades da empresa sem o devido pagamento a seus credores pode ser indício de uso abusivo da personalidade jurídica e de má administração da sociedade com a prática de atos lesivos ao seu patrimônio ou de terceiros. A dicção processual do incidente da desconsideração da personalidade jurídica está regulada a partir do art. 133 e seguintes do Código de Processo Civil (CPC), sendo possível extrair o cabimento de tal instrumento em todas as fases do processo, podendo, inclusive, ser requerida na petição inicial, hipótese em que ficará dispensada a instauração do incidente, conforme previsão do artigo 134 e de seu § 2º, do CPC, abaixo transcritos:
Art. 134. O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial.
(…) § 2º Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica.
Os pressupostos da desconsideração, nesses casos, deverão ser demonstrados mediante contraditório[3], não sendo suficiente a simples dissolução irregular para ensejar a responsabilidade dos sócios, pois equivaleria à responsabilização destes por mero inadimplemento. Assim, ficam resguardados os interesses dos sócios com a garantia de que somente será atingido seu patrimônio pessoal se praticar algum ato ilícito lesivo a sociedade ou a terceiros (ex.: credores e outros stakeholders), devidamente comprovado no incidente processual[4].
Em suma, a dissolução irregular pode embasar o pedido de desconsideração jurídica quando comprovada a existência dos demais pressupostos previstos em lei, como o abuso da personalidade jurídica, o desvio de finalidade, a confusão patrimonial, a prática de atos ilícitos, a violação dos estatutos ou contrato social, sendo de suma importância que os dois lados da relação jurídica, tanto o sócio quanto o credor, estejam cientes das referidas regulamentações legais para assegurarem os direitos e interesses aqui descritos.
A equipe do CSFR Advogados está à disposição para prestar os esclarecimentos necessários acerca desse tema.
Stênio Justino da Costa é advogado da área cível do Costa da Silva & Fernandes Rocha Advogados
[1] Sócios, acionistas, titulares de EIRELI e demais detentores de participação em pessoas jurídicas de responsabilidade limitada. Quando utilizarmos a palavra “sócios”, referimo-nos a totalidade desses indivíduos.
[2] Existem regras específicas para a dissolução de qualquer pessoa jurídica, tenha fins econômicos ou não.
[3] Art. 135, CPC – Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias.
[4] A partilha do acervo social entre os sócios na persistência de dívidas inadimplidas pela sociedade é uma hipótese que pode ensejar a desconsideração da personalidade jurídica.