A arte só prevalece nela mesma ou seja heidegger

Considerações sobre a Metafísica e a Ontologia

Esta reflexão pretende elucidar a questão topo-ontológica1 dos filósofos Heidegger (1889-1976) e Bachelard (1884-1962), a partir, inicialmente, da ideia do que está velado sobre a terra, dessa metáfora estoica da Filosofia como uma árvore na qual, nas raízes, estaria a representação da metafísica. Desse modo, tentar revirar arqueológica ou geologicamente essa terra e encontrar nela sua relação com o Ser é o objetivo da presente investigação.

A estrutura deste artigo se subdividirá, inicialmente, numa reflexão sobre a terra, logo após o construir o habitar e, por fim, a subjetividade e a objetividade em ambos os filósofos. Em A terra e o mundo, pretende-se entender o uso desses vocábulos na direção filosófica material e imaginária representativa desses elementos. Em Construir e habitar, será investigada, moderadamente, a relação do habitar poético e técnico. E, em Entre sujeito e objeto em Heidegger e Bachelard, há uma rápida análise comparativa das fronteiras e demarcações ontológicas desses dois filósofos.

A semelhança desses dois filósofos não é só o fato de terem nascido na mesma década. Bachelard, cinco anos mais velho, viveu também numa realidade camponesa, e ambos fizeram questão de ressaltar as suas origens em todas as suas ontologias. "A metafísica completa, mencionada por Bachelard no texto inaugural das nossas reflexões, não procura só abranger a consciência e o inconsciente, mas acima de tudo deixar no interior e no exterior os privilégios de seus valores" (Lamy 166).

Bachelard inicia o seu livro O novo espírito científico falando que o ser humano não se apoia sobre um, mas sobre dois tipos de metafísicas, e essas duas são obrigatoriamente contraditórias. Por estarem embasadas nas ideias de racionalismo e de realismo, têm uma consequência direta tanto na ciência quanto na dimensão do Espírito, mas essa contradição entre o subjetivo e o objetivo, para Bachelard, é necessária, pois as leis do mundo são as que ditam as regras das leis do espírito. Nesse sentido, tal discussão sobre a dualidade metafísica levará ao fato de "substituir a metafísica discursiva para a metafísica intuitiva imediata e objetivamente retificada" (Bachelard 1975 2).

Heidegger alertou sobre declínio e superação da metafísica, já preconizado por Nietzsche com a morte de Deus, e revisto pelo filósofo alemão como a relação problemática da técnica e o Ser. A não aceitação da primazia do Ser indica o declínio da metafísica na medida em que a metafísica tradicional, principalmente por conta do tomismo, não admitia a facticidade e finitude do homem. Por isso, Heidegger designou como Dasein, o ser-aí, a tarefa do próprio homem na desconstrução da metafísica como acontecimento da história do ser, visto que ele, também associado com os métodos da fenomenologia, conseguiu esclarecer a confusão entre o ente e o ser que a metafísica tradicional empreendeu.

Desse modo, O objetivo desta investigação é aproximar o desvelamento do ser das metafísicas intuitivas e discursivas de Bachelard. Para isso, é preciso justamente voltar ao momento em que Heidegger, em A experiência do pensar (texto publicado originalmente em 1947, mas utiliza-se aqui a referência de 1969), entende o desvelamento do ser como uma experiência filosófica e poética. "O caráter Poiético do Pensar é ainda oculto. Onde ele se mostra, assemelha-se por muito Tempo à Utopia de um meio-poiético Entendimento. Mas o Poetar pensante é na verdade a Topologia do Ser" (Heidegger 1969 47).2

É importante ressaltar, como base da presente reflexão, a dita relação da superação da metafísica e da ontologia. Superar a metafísica não seria arrancá-la do solo, posto que a terra é impenetrável, como será dito adiante. Superar a metafísica é constatar que, na história da filosofia, o Ser estava esquecido, e a metafísica tradicional colocava a humanidade sob o domínio de outros mundos suprassensíveis. Logo, o filósofo chega a falar de uma destruição da História da Ontologia no sexto parágrafo de Ser e tempo (Heidegger 2005), mas essa afirmação, no presente contexto, pode ser mais bem entendida no sentido de desconstrução.

Desconstruir e superar a distinção do sensível e do insensível intemporal tira da metafísica tradicional o seu fundamento, pois este mostra a estrutura ôntica versus a ontológica. Essa é a base para a Kehre, reviravolta do pensamento heideggeriano, posto que, para que esta ocorra, é preciso também entender o contexto fenomenológico ontológico da compreensão do ser. Heidegger encontra, na própria expressão "ontologia fenomenológica", o primeiro passo para o que ele pretende reconstruir da ontologia, entendendo o ente em relação ao seu modo de ser. Por fenomenologia, Heidegger também buscou explicar o método segundo o qual a análise não impõe um modo de ser particular dos entes, mas a investigação de um modo de ser diferente. Heidegger, no entanto, dispensa essa descrição fenomenológica mais husserliana, recusando o simples aspecto fenomenal do ser, talvez porque isso o faria cair num kantismo numenológico que levaria à incapacidade de desvelamento do ser.

Nessa mesma linha de pensamento, tinha de haver uma destruição fenomenológica e ontológica.

Ao passo que a metafísica tradicional era ôntica e, por isso, acabava por entificar a relação entre substância e acidente, matéria e forma na essência do ente, para Heidegger, o ser se desvela na superação desse quadro. A ontologia fundamental deve ser baseada no Dasein, ser-aí; a compreensão tradicional do ser como substância e movimento traduz o aspecto da temporalidade do Dasein. A facticidade do ser não poderia ter compreensão na metafísica tradicional. Logo, a ontologia fundamental é a possibilidade, com o Dasein, de fundamentar a verdadeira constituição do ser. Por isso, a destruição da ontologia tradicional deve ser sempre exercida; a ontologia fundamental é uma meditação de uma procura de sentido do ser, que deve ser simultaneamente objetivo e subjetivo. Por isso, ter o ser como objeto é também a percepção de copertencimento a esse ser. Essa constatação é também a percepção de que não se trata de uma construção, mas sim de um habitar o ser; eis aí, então, a ontologia fundamental que emerge da tradição superada da metafísica.

Já Bachelard, em suas obras, não procurou fazer uma distinção tão territorializada da metafísica. O uso da metafísica e da ontologia acaba se dando como praticamente sinônimos. No entanto, a ontologia tem sido mais utilizada como vocábulo de sua tendência filosófica. Tanto que há várias referências de ontologia direta e discursiva. Bachelard também tende a questionar a ontologia tradicional sobre "o que é o ser", porém não vai identificá-la como o pensamento. Na verdade, ele vai identificar a criação de diversas ontologias entre a amplitude e a profundidade do ser. Será, então, possível ontologias da cor, sabor, espacial, poética etc. Estas seriam então as surrealidades, aquilo que transparece na superfície das coisas?

Bachelard e Heidegger convergem em pontos essenciais: ambos indicam um caminho para a unificação do saber, que não é apenas científico, mas também metafísico e poético. Ambos afirmam a prioridade da poiesis em relação à ciência, bem como a sua aproximação dinâmica como confissão do crescimento do saber. Ambos nos falam de uma antropologia poética, que supere os estreitos limites da razão discursiva e abra o homem a um surraacionalismo, uma surrealidade na qual o meta-humano se faz presente através da beleza. (Marcondes 75)

Bachelard, assim como Heidegger, era amante da poesia, via nos poetas justamente uma possibilidade de uma ontologia direta e se perguntava se, nessa possibilidade, o problema metafísico essencial seria realizado na concretude do mundo exterior. Se houve sempre uma oposição entre a natureza e o espírito, essa discussão necessita um eu do mundo, um ente, um Dasein? Essa parece ser então a porta de entrada para a investigação que propõe como ponte Heidegger e Bachelard. Será que ambos compartilham de uma mesma metafísica ou diferem entre metafísicas diferentes? Num sentido geral, é possível questionar se essa perspectiva, em ambos os filósofos, será um caminho de uma ontologia regional ou se realmente a poética em ambos os filósofos é permeada pelo ser.

A terra e o mundo

A terra é, em certa dimensão, o ser3 como uma de suas possibilidades de ser dito, e a "linguagem é a morada do ser" (Heidegger 2008 331). Tal afirmação tem uma importância muito grande na reflexão metafísica de ambos os filósofos, pois, para Heidegger, o ser não é substancial; logo, assim também para Bachelard, é preciso dessubstancializar o conhecimento para entender sua ex-stância,4 à medida que, para Heidegger, isso pressupõe o desafio de não entificar o ser.

O homem produz a sua morada sobre a physis, que, nesse contexto, consideramos como terra, em tudo que desabrocha da natureza, a terra está presente. O ser é uma dobra que se desdobra com o tempo na terra, na definição do próprio Heidegger (1998 39), é "[...] aquilo em que se volta a pôr a coberto o irromper de tudo aquilo que irrompe e que, com efeito, se volta a pôr a coberto enquanto tal. É aquilo no qual e sobre o qual o homem funda o seu habitar."

A terra é aquilo que, por essência, é fechado e, por isso, necessita ser laborada, trabalhada, a terra irrompe pelo mundo. Desse modo, a terra está em constante jogo com o mundo, este é o abrigo em que a terra pertence. A terra é tal qual uma natureza impenetrável, ela não precisa dos outros elementos, ela desenvolve a "teluridade" da natureza e só a arte pode tornar visível essa impenetrabilidade.

A terra (Erde), para Heidegger, não deve ser confundida com o planeta ou o globo terrestre, tampouco com a massa ou matéria. A terra é o onde o homem funda o seu habitar. Na Origem da obra de arte, o filósofo diz: "A terra é isso onde o erguer alberga (bergen) tudo o que se ergue e, claro está, enquanto tal. Naquilo que se ergue advém a terra como o que dá guarida 'Bergen significa salvar, abrigar ou recolher" (Heidegger 1998 36).

A terra é seio e solo, onde o ser humano tem sua base, é o "onde" ele encontra sua proteção. Nesse processo, na evolução da humanidade, o homem foi cada vez mais se tornando um senhor da terra (senhor do ente), no entanto, à medida que ele simplifica a sua vida, sendo um camponês, ele vai desvelando o ser da terra. Cultivando e guardando o que precisa para consumir, vai entendendo os ciclos da terra e do tempo. Retirar as coisas da terra é a melhor maneira de superar a sua impenetrabilidade e, com isso, chegar a um aspecto dimensional e ontológico dela.

A terra faz assim despedaçar em si a tentativa de intromissão nela. Leva toda a impertinência calculadora a transformar-se em destruição. Mesmo que esta se revista da aparência de um domínio e de um progresso, na forma da objetivação técnico-científica da Natureza, este domínio é, de facto, ainda uma impotência da vontade. (Heidegger 1998 37)

Nesse ponto, pode-se, desde já, traçar um paralelo com Bachelard, o qual em A terra e os devaneios da vontade ou ainda A terra e os devaneios do repouso e até mesmo em Direito de sonhar, associa-se muito o elemento terra com a noção de vontade.

Se a paisagem do poeta é um estado d'alma, a paisagem do gravador é um caráter, um ímpeto da vontade, uma ação impaciente por agir sobre o mundo. O gravador põe um mundo em andamento, suscita forças que inflam as formas, provoca forças adormecidas num universo plano. (Bachelard 1994 55-56)

Bachelard, como um bom camponês, percebe que a relação da clareira com os campos faz eminentemente das paisagens um trabalho dos camponeses. Ao olhar para os sinais, objetivando as descrições de terras e culturas, o aspecto imediato da paisagem, da beleza de um campo, de uma planta com suas raízes que colonizam as irregularidades do solo, são aspectos de sua concepção de terra.

À medida que a terra recebe o mundo, dá-se a abertura do ser, pois o mundo doa sentido, logo mundo e terra se mostram como o movimento de clareira e ocultação, ambos têm igual importância nos domínios do ser. Essa unidade apropriante mostra uma essência nadificante da terra, pois, se só pelo mundo ela manifestasse a sua essência, então isso implicaria que não houvesse oposição ser-Dasein e, por consequência, não haveria luz ao ex-sistencial.

Tudo é mundo, mas e a terra? A terra é mundo em desvelamento, a terra salva o seu porvir, por isso é um dom. Parafraseando Heidegger, pode-se lembrar que é uma gratuidade que está aí para nada, de tal modo que a terra é um reflexo do ser que se guarda como tudo aquilo que ainda não se manifestou. "O mundo funda-se na terra, no solo pátrio da iluminação, pois é deste que ele sempre exigirá o seu modo de ser como desvelamento dos entes desde a Verdade" (Heidegger 1998 38).

A copertença entre terra e mundo mostra que o dom deve estar ligado também à prerrogativa de que é necessário salvar a terra. A exploração sem limites da terra pela técnica acaba tirando a possibilidade de a terra ser aquilo que ela é, impenetrável tal qual o ser. Por isso, salvar a terra é franquear a sua própria essência,

Salvar la tierra implicaría desde luego, para empezar, fomentar una preocupación ecológica por el medio ambiente, pero también y sobre todo algo mucho más radical, a saber: la construcción de "totalidades de sentido", mediante la articulación de distinciones y cortaduras, de fusiones y fricciones, en suma: de elaboraciones de base técnica e intención artística que hagan surgir a la luz la resistencia e impenetrabilidad de la tierra, en lugar de pugnar por poner sin más sus recursos a disposición de los hombres [...] de modo que, em esa torsión, la tecnología se transforme en arte. Pero en habitar también. (Duque 137)

O mundo que o homem habita não deve ser simplesmente considerado o aberto originado do ser, da mesma maneira a terra não é somente ocultação e impenetrabilidade. É no combate entre os dois que surge a clareira, mas essa mesma não deve ser entendida como clareira das decisões essenciais; toda decisão, então, se funda no mundo, na preocupação e cuidado com ele.

Sem dúvida, a clareira é o combate entre mundo e terra, a verdade é a própria abertura que se dá nessa tensão. O mundo tem uma contínua exigência de manifestar os caminhos do destino, e a terra relaciona-se em conter o mundo. Tanto que essa tensão é também o equilíbrio de ambos pelo próprio Ser.

Pode o Dasein aperceber-se da desocultação como ocultação, ou seja, a partir do mundo com raízes na terra. O mundo, como senda das decisões que emerge, albergando, traz à luz, faz aparecer ("Vorschein") a terra, pois como senda é, precisamente, um caminho estreito. "Traz a lume", à manifestação, o "ainda não decidido e imenso", porque sempre inesgotável, donde surge a necessidade constante de tomar uma decisão, exigindo do fechado que também o alberga, a emergência da sua senda essencial. (Heidegger 1998 99, grifos meus)

Desse modo, o mundo cria raízes na terra, e nessa relação cada vez mais íntima o homem é ser-no-mundo (Dasein) e é ser-na-terra (Galán), e pode ser assim um ser na verdade. Claro que, o próximo passo, o habitar exigirá a vida em comunidade e o desvelar da linguagem. A terra, até então, era o não dito do discurso,5 por isso des-ocultar a palavra dita é uma própria ranhura da terra, uma fenda que abre caminho entre mundo e terra. Constitui-se no movimento do Ser que irrompe como dom do ser do homem e o Ser em simultâneo.

A poesia tem, nesse processo, uma função de doação de sentido do caminho do ser. A oferta retida entre mundo e terra tem a exata medida do seu inicial no poético, pois é ela que capta o ontológico de cada irromper histórico, "O dizer projectante é Poesia: a fábula do mundo e da terra, a fábula do espaço de jogo do seu combate e, assim, do lugar de toda a proximidade e afastamento [...]. A Poesia é a fábula da deso-cultação do ente" (Heidegger 1998 59).

A terra é a poesia do ainda dizer que se dá no próprio acontecimento. Todo acontecer depende da linguagem, que, por sua vez, é fruto de uma poiesis, de um fazer que coloca, nomeia e resguarda a beleza do momento. Na poética, o homem habita o ocultado, a terra deixa ser terra.

Nesse sentido, pode-se resgatar mais uma vez essa relação entre Heidegger e Bachelard ao relembrar, principalmente, os aspectos poéticos e técnicos ressaltados em A terra e os devaneios da vontade. Bachelard sugere, no início do livro, que, após entendermos as origens telúricas da linguagem, é interessante o debruçar sobre as matérias duras. De modo que a pedra seria esse aspecto mais propício para forjar a matéria; portanto, por meio de uma poética das técnicas da ferramenta, Bachelard tenta formar uma autoanálise ou, quem sabe, até mesmo uma daseinanálise.

A propriedade da terra é a de um elemento imediato e familiar da experiência humana. Para Bachelard, a terra provê uma resistência imediata e constante, "Ela [a terra] especificamente participava, em especial num contexto de sociedade ainda artesanal, atividades corporais elementares pelo gesto, mão e trabalho físico" (Bachelard 2001 25). Ela provocava o movimento da vontade em relação à abstenção do movimento. A terra é um elemento que reforça a ideia de luta e técnica do imaginário. Ela altera a substancialidade primitiva, gerando devaneios animistas paradoxais em que sua materialidade acaba por desmaterializar um vitalismo animista que anima a matéria terrestre.

Ele chama de "litocronos" o tempo da dureza das pedras e da terra; esse dinamismo das forças que mostra os esquemas temporais da vontade, assim como da paciência. Bachelard está interessado no valor do trabalho sobre a terra e, por isso, evoca as imagens do ferreiro e do oleiro, para manifestar a poética do operário que subentende a elasticidade do mundo. A mão e a matéria se unem para desatar o "nó mesmo do dualismo energético" separado pela terra. "No labor, no trabalho do artesão, mas também o cozinheiro ou o faz-tudo, a Terra é a ocasião de uma verdadeira rematerialização" (Wunenburger 92).6

A solidão humana que faz brotar a vontade de cavar, furar, talhar e transformar a terra diante do universo e da substância das coisas e contra eles é o que importa ao filósofo. Para Bachelard, a terra, por meio da vontade, é justamente a propulsão de lidar com o nada e superá-lo. As qualidades negativas e repousantes da terra tender a ser, para Bachelard, uma revelação dos extremos entre uma terra impura e uma terra celestial, essa dialética, no plano ontológico, levando a entender a "prefiguração da vertigem, do abismo e do não ser" (Wunenbuerger 101). A terra se renova também, com isso, o encontro com o fogo, mostrando sua fundição com o metal e a transformação mesmo das formas mais duras.

O mundo resistente tem uma personalidade tal qual a psicanálise do ferreiro e do oleiro, ambos têm visões do universo e da criação. Eles desfrutam a solidez íntima da terra e a sua maleabilidade. O ferreiro, que trabalha com a bigorna e as batidas incessantes sobre o metal, desfruta do ritmo tonal do metal e os harmônicos provenientes do ímpeto em moldar a sua dureza. O oleiro, com o moldar do barro e da argila, trabalha com a forma e a geometrização do mundo. Por isso, os artesãos têm uma vantagem no imaginário ao lidar com os frutos das matérias terrestres, da transformação do exterior pela energia da mão que toca as tonalidades do ser da terra, o animus do espelhamento dessa matéria com o ser humano.

Resistência, consistência, dureza, a terra é que tem o aspecto mais profundo dos elementos, sua energia se dá na dinamologia da vontade, entendida por Bachelard como a faculdade de negar e de afirmar. Bachelard atenta que essa atividade da vontade, contra a matéria da terra, necessita de ferramentas. "Uma ferramenta tem um coeficiente de valentia e um coeficiente de inteligência. É um valor para um operário valoroso. Os verdadeiros devaneios da vontade são então devaneios apetrechados" (Bachelard 2001 30).

Bachelard chama esse ritmo de trabalho contra a matéria de "percussão". Pode ser uma percussão assentada (a faca sobre a madeira -que exige a precisão), a percussão lançada (tal como os golpes da foice ou do martelo -que exige a força). Nessa lapidação, a tendência geométrica se torna um fator de autoanálise, pois, à medida que o buraco vai ser tornando círculo, seu aspecto libidinoso e primário vai se esvaindo.

Ainda assim, nos cantos de cada forma lapidada, ainda sobrevém um não ser onde o imaginário ainda prevalece.

Quanto mais dura é a pedra, maior a velocidade e o ritmo para sua modelação. Nesse labor, muitas vezes, a vontade tenta superar a imaginação, mas só quando ambas estão juntas e equilibradas que se penetram no ser da terra, pois, senão, a geometria elementar se tornará uma má vontade. O homo faber desgasta sua força ao empenhar uma grande vontade de transformar a matéria, porém ele resgata sua força ao ouvir o som do labor, o produto rítmico, já que são precisos o ritmo, a temporalidade e o gesto percussivo para que a inteligência de suas ferramentas estejam em harmonia com a dinâmica da matéria.

O construir e o habitar

Assim como se constata que, em Bachelard, o real é um racionalismo aplicado e um materialismo técnico relacional, é possível dizer que toda relação depende das localizações entre os entes. Em Heidegger, o sentido das relações se liga à ideia de pertencimento, de modo que, muitas vezes, os entes estão interligados na sua relação de abrigar um ao outro, como a água e o copo em sua relação espacial.

Entender o espaço como extensão pode ser não só objetificante, mas também um obstáculo epistemológico, o qual Bachelard já denunciava como geometrização das ciências. O espaço fenomenológico deve se abrir para o contato, como o encontro espacial dos entes tido também nas ideias de proximidade e distância. Com isso, o distanciamento e o movimento se orientam numa região, num novo sentido espacial dos entes. Quando se fala na existência do termo "região", é justamente pela necessidade do movimento do ente "para onde", ou seja, para um lócus espacial onde ele possa estar, ser localizado ou aproximadamente indicado.

A Região é tanto amplidão livre (freie Weite) quanto morada (Weile), de modo que nela o aberto se mantenha e se sustente, deixando cada coisa abrir-se no seu repouso próprio. E, por isso, a Região menos vem ao nosso encontro do que se retira, dando abrigo a todas as coisas, de tal maneira que nela já não possuem o caráter de objetos diante de nós, senão que jazem, descansando no repouso de seu próprio ser. (Bauchwitz 2006 111)

A região, no entanto, não é preestabelecida para um movimento do ente. Na verdade, as regiões se formam pelo que há nelas estabelecido. É preciso de fato entender que, nessas relações espaciais, o distante é uma forma de compreender a proximidade, de medir a partir da distinção e da separação.

Ironicamente, essas relações conceituais no espaço ainda fazem permanecer velado o que é o espaço? As relações particionam o espaço em conceitos e lugares. É interessante que Heidegger deixa de lado os conceitos de objetividade e subjetividade, por isso compreender o espaço sem essas noções é complexo. É mais um tipo de distanciamento que faz a espacia-lidade do Dasein, o qual estaria, então, do lado de fora, circunscrevendo a realidade. Nesse sentido, enquanto o Dasein não vê imediatamente o "aqui" de seu lugar, ele acaba caindo na angústia. Contudo, o Dasein não se situa de um lugar para outro, não sabe a sua orientação e direcionamento, e, por isso, a espacialidade que revela o Ser.

Quando o Dasein se aproxima de algo, numa interpretação espacial, ele se abre para a responsabilidade de se identificar e se diferenciar do que encontra. Esse processo, também considerado de singularização, é também uma busca pelo habitar, de se familiarizar com o outro tranquilamente. Com isso, pode-se aceitar que não pertence imediatamente ao espaço, mas que está no mundo e que este, por sua vez, está no espaço. Mas a pergunta é: como o espaço surge no mundo do Dasein?

O ser do espaço depende de estar no mundo, pois, sem isso, ele não tem extensão.

Embora o espaço possa ser tomado, no mundo, como um ente à mão -como um "instrumento de habitação" ou ainda como algo simplesmente dado -o espaço objetivado e desmundanizado da geometria, por exemplo-, ele não precisa, necessariamente, assumir uma destas duas variantes. (Pádua 115)

Quando Heidegger, na seção 70 de Ser e tempo, sugere com o título "A temporalidade da espacialidade inerente ao Dasein", ele ainda entende que o espaço esteja contido no tempo. Ora, sabe-se que dizer o totalmente inverso é também plausível, ou seja, dizer que o tempo está também contido no espaço e que ambos sejam a chave para a compreensão da quarta dimensão, que é o tempo, é constatar que espaço e tempo são unos e contidos ou abarcados um no outro. É a relação de pertencimento de ambos.

O espaço está um pouco além das formas de manifestação do ser, pois ele contém também de certa forma o não ser. Essa simultaneidade complexa tende a exigir novas formas de racionalidade para ser compreendida. Ora, talvez por isso Bachelard seja um filósofo complexo que abarque essa ocasião, pois, por não ser claramente oposto ao racionalismo tanto quanto ao empirismo, designando-se um racionalista aplicado e não cartesiano, que busca pensar com as mãos, tateando o espaço, ele tem uma potencialidade instantaneamente possível para essa busca ontológica e fenomenológica.

Seguindo a tradução de Pádua sobre o comentário de Jeff Malpas: O fracasso da tentativa de mostrar o caráter derivado do espaço é importante não apenas para que se chegue a uma compreensão da problemática de Ser e Tempo, como as razões por trás da impossibilidade de tal derivação proporcionam os meios para a compreensão da forma pela qual a espacialidade terá, ao final, um papel a desempenhar no desenco-brimento das coisas. (Malpas cit. en Pádua 119)

Dentro dessa polêmica das derivações, é possível então suspendê-lo na própria irresolução da questão. Logo, ontologicamente, não é possível dizer quem veio primeiro, o espaço ou o tempo, o ovo ou a galinha? Mas, de acordo com a própria física num contexto ontológico, certamente as consequências de ambos enquanto processo de expansão do universo, espaço-tempo, são analisáveis à medida que o Dasein toma o espaço, preenchendo-o com seu corpo. A temporalidade pode até dizer o sentido do ser, mas o espaço, no sentido do pertencimento, é o próprio abrigo do ser.

Por isso, como sustentará o próprio Heidegger em textos posteriores, reduzir a espacialidade à temporalidade torna-se insustentável. Ao que parece, o espaço tem algum poder específico no modo de ser do Dasein. As representações espaciais são significativas na linguagem. Um exemplo disso é o conceito de lugar, que acaba por ser delimitado dentro de um tempo. Podemos explicitar como ideia de lugar um país; ora, o Brasil ou muitos países da América são lugares que, antes de 1500, não tinham nem nome, nem limites, mas não podemos dizer que simplesmente não eram.

Levando-se em conta que Heidegger, em Ser e tempo, ainda não estava preocupado com o lugar como aquilo que se habita, assegurando repouso, sua ontologia até então ainda era um jogo do ser enquanto ser na sua diferenciação e esclarecimento em relação ao ente. Será o ente a manifestação do lugar? Será mais uma confusão também da relação espaço e tempo?

Talvez a resolução dessa questão só possa ser respondida por meio do nada. "O ar imóvel, é então o vazio intuitivo. Não há ação alguma, não é o sinal de nada, a causa evidente de nada" (Bachelard 1933 160). O nada é como um espaço vazio, o espaço da vivência do Dasein só se abre com o nada. Na pergunta fundamental da metafísica "por que o ente e não antes o nada?", podemos entender a relação do espaço pelo fato de não ser entificado.

Certamente que é necessária uma topografia do niilismo, da forma como se processa e da sua superação. Contudo, a topografia tem de ser antecedida de uma topologia: uma discussão que localize o lugar onde o ser e o nada se reúnem na sua essência, determinando a essência do niilismo e deixando-nos, assim, identificar rumos onde surgem formas possíveis de superar o niilismo. (Heidegger 1988 311-12)

Nesse sentido, o espaço se dá em relação ao ser, na medida heideggeriana que o nada deve ser discutido quanto a similitudes e divergências entre vazio, não ser e infinito. O espaço, em Heidegger, está mais ligado à ideia de devir, vir a ser, pois os gregos mesmos não tinham uma palavra para descrever o espaço; eles tinham para o lugar (topos), logo o via a ser se torna espaço da manifestação do ser.

Para Heidegger, os gregos não pensaram o espaço como extensão, e sim como lugares particulares. No entanto, a palavra "região" (Chôra) se aproxima de uma ideia de um "onde" compreendido espacialmente. Logo, Chôra pode ser entendido de certas formas como terra, área, assim como um receptáculo do devir, pois as representações precisam de um suporte que as retenha. O espaço não pode ser apreendido pelos sentidos, mas sim por uma razão intermediária entre o sensível e o inteligível.

O lugar tem um peras, um perímetro, força circundante que limita; por isso, os limites do ser têm um fim não entendido como negativo, mas como uma conclusão da sua plenitude. O Ser do ente precisa de um limite, mas o espaço não: ele abarca e acolhe o início e o fim de todo ser do ente.

O peras, como limite da região, ou contréa apresenta para a noção de região um novo contexto topológico; a dimensão do pensamento como uma relação não entificadora do espaço e do logos. A Chôra se torna um receptáculo, uma amplitude que resguarda o habitar. Em sua relação com o Peras, torna-se uma realidade arrodeada e delimitada a todos lugares. A região faz com que as realidades tenham uma convergência, a clareira, região aberta que tudo abarca e resguarda; dessa clareira, nasce o horizonte, a possibilidade de ver além da floresta negra.

Essa possibilidade aberta de ver os entes como mundo, aí a noção de serenidade se desvela como pensar o caminho do pensamento, mostra que a representação é, na verdade, vontade. Para Bachelard, serenidade é repouso. Ele habitou, em boa parte da sua vida, no território camponês de Bar-sur-Aube à Dijon, e ficava extremamente irritado com os apartamentos em Paris. Para sua filosofia, era poeticamente habitável desde a caverna até a casa onírica.

A serenidade é, para Heidegger, tal como o repouso é para Bachelard, uma forma que escapa da vontade e mostra um pensamento não representacional, uma fenomenologia ou ontologia dos objetos e dos instrumentos e de suas relações. Heidegger dirá que essa serenidade é uma vastidão livre e uma permanência que se demora em seu repouso. É o voltar-se livre para si, o que torna a região um verbo que vai se debruçando sobre seu entorno, mas como seria esse pensamento sem representação nem vontade? É uma espera serena pelo que se abre. Ora, será que isso é o nada? Por isso, o que regionaliza é considerado a proximidade da distância, pois está sempre paradoxalmente próximo do que habitamos.

Em Construir, habitar, pensar (publicado originalmente em 1954), Heidegger (2002) alerta que nem toda construção é uma habitação; tal recurso racional se dá pelo caráter da técnica. A técnica faz pontes para levarem de um lugar ao outro, mas quem está em casa na ponte?7 Certamente aquele que vive dessa técnica, o engenheiro ou o operador de pontes estaiadas, mesmo que nem ali seja sua residência, o habitar significa a familiaridade com o lugar.

Num sentido mais amplo, Heidegger sugere que, de alguma forma, construir já é um habitar e faz uma aproximação entre as palavras alemãs "Baueri" (construir) e "bin" (ser). Logo, o ser enquanto identidade, singularidade e individualidade, não deixa de ser uma construção e, à medida que ele habita, cresce. Habitar é, então, saber deixar a terra livre do perigo, deixando a natureza cumprir o seu ser e dever.

Heidegger pergunta "em que medida o construir pertence ao habitar?" (2002 125), quando essa construção tem como essência tornar os lugares habitáveis. A ponte faz com que reconheçamos as suas margens; da ponte, é possível entender a distância com que as margens se separam e a sua topografia. A ponte une margens, céu e terra, por isso mostra o habitar como uma quadratura, um equilíbrio entre o mortal e o imortal.

Essa quadratura que denomina as estâncias das construções e demonstra suas circunstâncias que ao fazê-las produzir suas finalidades, mostram que são os lugares que permitem essa arrumação, combinação ou mesmo arranjo espacial.

Heidegger relembra que, dentro dessa perspectiva ontológica, Espaço é, essencialmente, o fruto de uma arrumação, de um espaçamento, o que foi deixado em seu limite. O espaçado é o que, a cada vez, se propicia e, com isso, se articula, ou seja, o que se reúne de forma integradora através de um lugar, ou seja, através de uma coisa do tipo da ponte. Por isso os espaços recebem sua essência dos lugares e não "do" espaço. (Heidegger 2002 134)

Ora, a ponte é um lugar, um espaço-entre, por isso sua proximidade e distância são a chave para entender a relação espacial entre as coisas. Do espaço-entre estão as relações de altura, largura, profundidade, pois o espaço por si não tem pontes ou lugares.

Nisso Heidegger faz uma reflexão importante sobre a Física, que Bachelard pode auxiliar a elucidar: "a física moderna viu-se também obrigada pelos próprios fatos a representar o meio espacial do espaço cósmico como a unidade de um campo, determinado pelo corpo enquanto centro dinâmico" (Heidegger 2002 135).

Heidegger percebe, assim como Bachelard, que a designação onto-lógica de lugar precisa de uma técnica ou de uma afetividade. Homem e espaço não estão em lugares diferentes; a dificuldade está justamente na não representação do espaço, pois só o que podemos fazer do espaço é habitar, ali está sua abertura. Visto que o ser dos homens está de acordo com os espaços, daí vêm a cultura e a história. Ao longo da travessia dos espaços, acabamos por pensar nos fins, na saída, mas, na verdade, estamos sempre no centro do universo, nesse espaço infinito.

Habitar, para Heidegger, exige pensar e construir, numa técnica de deixar aparecer algo novo. Para isso, é preciso pôr a "mão na massa", pois, se o ser humano não buscar a essência do habitar, aprender a se desenraizar, desvelar suas raízes metafísicas do espaço, então ele não sairá da sua condição, pois estará habituado à terra e não saberá como habitar dignamente o seu espaço.

No que concerne ao espaço, as duas possibilidades disponibilizadas pelo "mundo" de Ser e tempo reduziam toda a sua problemática ao seu ser à mão, como "instrumento de habitação", ou ao espaço abstrato, simplesmente dado, da geometria.

A relação entre espaço e espaço em si mesmo é retomada como genealogia do espaço numa ontologia de que o "espaço essencial" (Weseraum) é justamente o espaço poético, ou pelo menos projetado poeticamente. Esse espaço se faz para que a poesia tenha lugar e forma. Não é um simples lugar físico, mas um espaço de abertura para o indizível, essa afinidade entre espaço e linguagem, que, num primeiro momento, pode parecer distante. Quanto mais aproximada, mais se torna um dizer projetante em que um incorpora o outro. Tal reflexão, que foi presente principalmente em A origem da obra de arte (publicada originalmente em 1950), deu-se como a projeção da arte como acontecimento de seu centro irradiador. Nela, Heidegger (1998) caracterizou a imagem como desdobramento do jogo espaço-tempo, a imagem oculta que desoculta a verdade (Aléthea), que é a sua própria beleza. Bachelard dirá que tudo é beleza (pancalismo), a imagem é o lugar onde aparece a beleza e aí está justamente, no espaço-tempo, o jogo do lugar e do acontecimento.

Tema recorrente na poética bachelardiana é o habitar. Mesmo antes da célebre obra A poética do espaço, imediatamente lembrada quando se fala no tema, a poética dos elementos de Bachelard não deixou de perguntar "Onde?" Onde o homem se situa? "Onde se situam nossos sonhos?" "Por que o homem precisa de abrigo e onde encontrá-lo?" Em alguns textos nosso filósofo provoca os "metafísicos", debochando da idéia de "ser lançado no mundo", a eles tão cara e comum. Para Bachelard, o mundo dito real, este mundo de nossa experiência diária, é muito grande para servir de abrigo, para cumprir as funções exigidas de um verdadeiro habitat. Não habitamos no mundo, habitamos no nosso mundo, no micro-mundo de nossos devaneios. (Vieira 213)

Nesse caminho, verdade, sentido e lugar são passos que podem ser considerados marcos no caminho heideggeriano. Essa trindade alcança uma plenitude quando entendida a Kehre ou viragem do pensamento hei-deggeriano, enquanto um habitar que passa a ser um elo, ponte entre os aspectos sugeridos acima. A ideia da região e sua relação com o horizonte desenvolve a possibilidade de habitação poética, já que é no horizonte ontológico que o homem habitará poeticamente.

Para entender melhor o significado desta "fenomenologia da alma", é necessário estabelecer uma comparação entre Bachelard e Husserl, assim também como Heidegger. Curiosamente, encontramos mais referência a estes dois filósofos alemães, mas no montante prodigioso das literaturas há referências filosóficas importantes de Bachelard. No entanto, lendo seus escritos, temos impressão muito frequente que ele justifica seu pensamento face a face com seus rivais invisíveis, cujas filosofias já eram muito famosas no espaço da filosofia europeia. Vamos descobrir, em conexão com o nosso objeto de estudo, a originalidade que Bachelard e Heidegger tiveram em comum, a maioria de suas pesquisas é interessada pela poesia assim quanto pela espacialidade ontológica do ser humano. (Kim 38)

Um exemplo da ponte fenomenológica é que, após Husserl afirmar que o mundo não precisaria mais de idealidade geométricas, o mundo se revelava na realidade a ser habitada. Tem-se, assim, com Bachelard e o espaço da casa, elucidado o sentido do mundo habitado. Nada se encontra nas idealidades geométricas, nem no espaço-tempo como pura forma matemática.

Desse modo, é possível questionar se a casa é mais um pequeno espaço geométrico do mundo? Mesmo que Heidegger não tenha tratado a casa como espaço geométrico, ainda assim, considerava que, nesse espaço, era possível encontrar a interioridade. Portanto, se é no ser-no-mundo que ele estava preocupado, então a própria casa é também um desses seres do mundo. Já que ela também tem vida, por ser habitada, talvez esse seja justamente um movimento de esclarecimento de uma pré-ocupação, no sentido de um movimento teórico de entender a sua produção, de cuidar dela na reverberação do cuidar de si. A concepção geométrica de espaço tirava a possibilidade de espaços ambientais onde o Dasein encontrava as dimensões puras.

Há uma relação espacial do Dasein e o mundo das ferramentas. Heidegger também falou da condição da vida humana em comunidade, observando como uma ferramenta funciona a partir do encontro com outros produtores que a utilizam. É óbvio, para ele, que Dasein, como um mundo, está em, é um ser com (Mitsein) em comum com outro: "Heidegger temia, o 'a gente' do espaço que abandona qualquer responsabilidade ontológica para seu próprio ser como ser-no-mundo, nosso espaço ético-político" (Kim 2011 36). Por isso, no sentido comum, uma ferramenta utilizada pelo Dasein não é um simples utensílio como objeto de prazer: é o espaço necessariamente utilizado como vida em que cada Dasein se responsabiliza pela sua ação sobre o meio ambiente. A habitação do Dasein permite ontologicamente o uso ilimitado da possibilidade quotidiana de sustentar a vida na intimidade do mundo comum da família.

A intimidade é assim um contorno do mundo, que não é algo pequeno. O mundo é habitado devido ao homem que repousa na sua imensidão. Habitar, em Bachelard e Heidegger, é encontrar a correspondência harmônica do si mesmo com o mundo. Não se consegue habitar estando fora do que somos.

O habitar, em Bachelard, é refúgio e solidão. Nos níveis topológicos da casa, os níveis do ser e do porão, sótão se mostram como a afirmação da casa ante a terra e o ar. O porão é instinto, uma oscilação entre um sentido e outro. Nesses horizontes da casa, que fazem dela um lugar feliz, faz-se essa ligação entre uma topoanálise8 e uma daseinálise.

A imagem da casa é a da sustentação da subjetividade. O porão representa aspectos indecifráveis do eu, seu inconsciente, medo. A dimensão de uma presença concreta e necessária para a sustentação do eu. A casa de um indivíduo pode ser construída e reconstruída durante a existência, principalmente com o papel do sótão que se conforma com a intimidade originária. Acolher a condição fixada inicialmente em um lugar, numa família, numa época. A habitação acaba sendo anterior à nossa escolha; ao mesmo tempo, não há esgotamento de sentidos, pois, na obscuridade onírica da casa, se contrapõem as imagens do porão e do sótão; neste último, todo iluminado pelo sol, com a possibilidade da plena compreensão alcançada na intimidade. O sótão é a superação da angústia do porão. E todas as casas do devaneio são assim. A integração de sótão, porão e térreo é uma verticalidade do que é satisfatório, uma vida integralmente habitada no mundo.

Entre sujeito e objeto em Heidegger e Bachelard

"Bachelard examinando um espaço feliz de uma casa aconchegante na dimensão do espaço, como Heidegger, insistia na contrariedade da dimensão de um ser lançado para fora, exposto ao desenraizamento como a ansiedade" (Lamy 141). O encontro do sujeito e do mundo, numa perspectiva metafórica, sugere diferenças substanciais entre esses dois filósofos. A perspectiva de que o conhecimento se dá como abertura da imagem ocorre como um desdobramento do conceito grego de aletheia. Como num poema que desvela, desoculta o Ser, no qual a percepção do mundo visual, por exemplo, é uma perspectiva que abre as estruturas ontológicas.

Contudo, o objetivo da imaginação em Bachelard parece estar voltado principalmente para o aspecto epistemológico e poético da inovação das imagens e realidades. Já segundo Heidegger, o desvelamento designa cada ponto em que está presente e manifestada a região onde os seres humanos fazem o acontecimento do habitar. Porém, isso pode mostrar, tanto para Heidegger como para Bachelard, um impasse entre realismo e antirrealismo na construção da percepção.

Com um realismo metafísico, os limites da razão selam o objeto dentro de "seu próprio espaço" e vão isolá-lo a partir de qualquer determinação subjetiva, enquanto para Heidegger, esses limites incluem o processo de percepção, porquanto, segundo algumas interpretações, objetos não podem existir para além das operações ontológicas que lhes trazem. Para a fenomenologia de Bachelard, a distinção entre sujeito e objeto acaba sendo insatisfatória para a base de uma epistemologia; nesse sentido, a abertura ontológica é criada para compreender as intervenções na natureza. Além disso, é na poética materialista que a natureza dá a base elementar das imagens.

Se Heidegger via a arte como forma da verdade, então o conflito entre mundo e homem só poderia ser resolvido pela natureza da arte como poética. A verdade é poética, a linguagem ordinária é projeção. Quando os poetas falam as palavras, arranjam-se numa maneira que permite a verdade ser desvelada e acontecer.

A poesia fala em imagens. A imagem é como uma aparência externa ou imitação; contudo, Bachelard não coloca o conceito de abertura como uma construção arquitetônica da poesia. Para alguns, isso significou uma traição da epistemologia; essa diferença, no entanto, não significa uma total contradição. A poética do espaço ocorre como interesse na distinção da motivação do estudo poético. Os filósofos estavam sofrendo com a própria geometrização da linguagem. Os pensamentos filosóficos entre interior e exterior estavam sendo discutidos em termos de ser e não ser. E a crítica foi voltada principalmente para a aglutinação da linguagem, no sentido de que o uso de prefixos e sufixos sugere aspectos geométricos que se mostravam no pensamento heideggeriano.

Há diferenças entre os ambientes de Heidegger e das posições de Bachelard, este mesmo constrói sua ontologia poética como uma resposta à linguagem da aglutinação de Heidegger, como a rede de prefixos e sufixos no qual seu vocabulário, na interpretação de Bachelard, só serve para reforçar a própria ontologia que Heidegger afirma derrubar. (Cazeaux 10)

Logo, Heidegger está, de certo modo, no foco da crítica bachelar-diana da geometrização, já que, ao invés de pensar o ser e o não ser como interior e exterior, o ser em Bachelard é tido como as superfícies que separam uma região da outra. Esse é o contraste das imagens geométricas que dividem a superfície em binárias em termos recíprocos ou opostos. A imagem como superfície se dá como ondas que fluem e, entre elas, se abrem e fecham. E o ser humano é um ser entreaberto que, na abertura poética, pode expressar a sua porta.

As amplificações ontológicas desse tema se dão pela ideia de que Bachelard mescla a deformação com a formação; nisso, a novidade da imagem traz uma reverberação da criação de seres; o filósofo francês não nos dá uma ontologia explícita como Heidegger o fez. Apesar de ambos terem tido uma ontologia que dialogou espacialmente com a poética, como mecanismo de abertura, a reciprocidade entre ciência e poética no pensamento de Bachelard é um pouco polêmica. Para alguns comentadores, que alegam que a descontinuidade e ruptura almejada por Bachelard não poderia ser continuada entre as faces diurnas e noturnas do filósofo, felizmente, a própria noção fenomenológica da porta nos dá uma pista de que a força de deformação das imagens poéticas e epistemológicas reverte as dimensões de dentro e fora, de modo que cada projeto poético mostra que a imaginação é parte da natureza; esta, por sua vez, é a base e o sentido da ciência.

Uma das principais considerações sobre o pertencimento epistemológico em Bachelard envolve, então, a relação de superação da dicotomia sujeito e objeto. Ainda que, para ambos os pensadores, isso pareça ser uma contrastante ortodoxia epistemológica que precisa de uma solução ontológica para a inovação de ontologias regionais.

Heidegger e Bachelard apresentam ontologias em que não são tão fáceis de demarcar entre o que pertence ao sujeito e o que pertence ao objeto. Isso ocorre porque o sujeito se encontra com o mundo como uma abertura, o que quer dizer que tanto sujeito e mundo aberto são antes um e outro como parte da mesma ação. (Cazeaux 172)

Para Bachelard, a mente está no mundo por meio de aberturas cognitivas ou mesmo de lacunas criadas pela intervenção fenômenotécnica9 das duas áreas de conhecimento reunidas. A independência ou autenticidade dessa ruptura com a tradição é, então, em termos espaciais, a criação de novos lugares no mundo em que há externalidade de compartilhamento com outras experiências. Ou seja, a relação entre espaços ontológicos e epistemológicos geram, pela relação do ser e do não ser, novos lugares em que o próprio binarismo dos conceitos de dentro e fora, que em Heidegger e Bachelard estiveram contrapondo-se, agora envolve coerência e predeterminações ontológicas.

Considerações finais

O ponto de chegada da presente reflexão é o entendimento que a metafísica concreta de Bachelard é uma relação poética e ontológica do não ser ao ser. Mas que ela se funda como uma meontologia, já que, nesse sentido, entre o nada e o não ser, como já comenta Pierre Quillet:

A ideia de vazio [em Bachelard] não supõe mais a ideia de vazar do que a ideia de cheio a de encher. [...] tudo parte do nada. É ilusório pensar na criação e liberdade na intuição da continuidade. [...] Método e história nos levam ao sentido meontológico. (Quillet 1977 50)

Ora, a topologia do ser heideggeriana ou a topoanálise bachelar-diana acabam justamente na condição de entendimento do que o nada vem primeiro que o ente; nesse estudo do preenchimento do espaço, como ideia de perceber a sua natureza ontológica, essa percepção passa pela superação do historicismo (tempo), rumo a uma historicidade que abarque o nada, e isso é a poética como a de Rilke. Como já diz o poeta no Soneto à Orfeu 11 "Permutação entre espaço infinito e o ser, onde em ritmos me habito" (Rilke 1994 69).

A implicação da ideia da familiaridade natural do ser com e o espaço acolhedor leva às dispersões da hospitalidade e à familiaridade que só podem se encontrar convergindo no habitar. Tanto Heidegger como Bachelard pensam, com a inspiração poética, a forma de entender o mundo do espaço e o ser que se desenvolve na intuição de que o mundo (mitsein) elogia a preservação e o cuidado com todo lugar.

A crítica feita por Bachelard nos remete a uma metafísica de consciência confrontada com a hostilidade do mundo exterior e do universo, que não parece estar de acordo com a mesma letra do texto de Heidegger, não só porque não inclui o Dasein, no sentido de um assunto principal ou uma consciência fenomenológica, mas porque o ser-no-mundo que caracteriza o Dasein como é entendido como um ser-com envolvendo uma familiaridade com o mundo. (Lamy 157)

Ora, se a temática de ser jogado ou lançado no mundo parece se referir diretamente à terminologia do estilo heideggeriano de habitação, a conclusão que pode ser assumida dessa tendência de Heidegger provavelmente está mais ligada à recepção do pensamento existencialista do salto. Este, por sua vez, ainda está muito ligado à religiosidade, já que o salto da finitude para a infinitude ainda preconiza um salto da fé, copertencente entre as esferas da quaternidade entre céu e terra, e não se integrando a uma perspectiva de ruptura tal qual a bachelardiana. Por sua vez,

Se a hermenêutica da espacialidade de Ser e tempo estendeu espaço e tempo (especialmente no § 70), como sendo não menos que, com Tempo e Ser ou Arte e espaço, uma irredutibilidade da espacialidade à temporalidade. O espaço deve, portanto, ser entendido como um fenômeno in-diferenciável do que pode ser estendido para algo diferente de si mesmo. (Lamy 162)

Por fim, é preciso esclarecer a relação final entre a fenomenologia e ontologia em ambos os filósofos. Para ambos, a fenomenologia tem um papel fundamental, Bachelard entenderá como fenomenologia justamente a parte ontológica que dá conta do movimento do ser, é graças a fenomenologia que podem ser criados novas ontologias.

Quando um existencialista célebre nos confessa tranquilamente "O Movimento é uma doença do ser", respondo-lhe: o ser é uma obstrução do movimento, uma paragem, uma vagatura, um vazio. E veio a necessidade de uma inversão radical da fenomenologia do ser humano, de modo a descrever o ser humano como promoção de ser, na sua tensão essencial, substituindo sistematicamente toda a ontologia por uma dinamologia. (Bachelard 2010 22)

Nesse empreendimento topo-ontológico, o ser é enérgico, potência, e o método ou meio para chegar a ele acaba tendo igual valor que o próprio ser. Para Heidegger, o movimento do ser com o Dasein já traça os limites espaciais de sua ontologia do Ser com o mundo e, por conse-quência, levam ao pensar da terra. Por mais que ambos partam de um mesmo contexto metafísico, dada a semelhança de tempos e inovações tecnológicas que viveram, ainda assim, chegam a resultados diferentes. No entanto, esses resultados podem sim ser complementares e pode-se dizer assim que Heidegger fornece uma grande base ontológica para compreender a solitude e a ruptura metafísica de Bachelard.

G. Bachelard não está longe do modo do pensamento de M. Heidegger, para quem a experiência poética das coisas inclui a recolha de tudo o que levado e soldado juntos no visível e o invisível. Nós podíamos dizer que o espaço do sótão constitui uma "região" onde tudo é realizada no mesmo acordo. O espaço concentra em um mesmo todas as coisas, gestos e horizonte de um mundo à imagem de um cosmos em miniatura. (Wunenburger 60)

Por fim, os devaneios da casa e a poética do habitar são convites a investigar a topografia e a topologia do mundo e do ser. A terra revela o impenetrável que só poeticamente mostra a ontologia que nutre o ser. E, no desejo de repousar, o homem habita na sua linguagem artística, como um escultor que conhece os entornos e dá limites ao espaço reconciliando o espaço-tempo como espelho do mundo na verdade do ser.

O que é arte para Heidegger?

arte não é tida nem como campo de realização da cultura, nem como aparição do espírito, mas pertence ao acontecimento da apropriação unicamente a partir do qual se determina o sentido do ser (Heidegger, 1998, p. 92).

O que Heidegger buscou entender em sua obra Ser e Tempo?

Foi na obra Ser e Tempo, então, que Heidegger propôs tratar o problema da história a partir da ontologia fenomenológica, isto é, a pergunta sobre o modo de ser da história por meio da explicitação da constituição do Dasein como ente que compreende a si e o mundo por ser constituído pela compreensão de ser.

É correto afirmar que o filósofo Heidegger pensa assim o homem é um ser abstrato ou uma substância por isso uma existência presente?

Heidegger afirma que o homem é sempre um ser-no-mundo, ou seja, um ser-em-situação. Porém, que ele não está preso à situação em que se encontra; mas sim, sempre aberto para tornar-se algo novo. O segundo traço existencial / fundamental característico de ser é a existência (conceito citado anteriormente).

O que é o nada em Heidegger?

O nada é a possibilitação da revelação do ente enquanto tal para o ser- aí humano. O nada não é um conceito oposto ao ente, mas pertence originariamente à essência mesma (do ser). No ser do ente acontece o nadificar do nada. (HEIDEGGER, 1983, p.