Coen rōshi fábia de souza scavone

Foi em 1973, nos cinco meses e vinte dias que passou presa em uma cela solitária no presídio de Frövi, na Suécia, por traficar LSD, que a paulistana Claudia Dias Batista de Souza descobriu a meditação. Moça de classe média alta do Pacaembu, ex-aluna do colégio de freiras Sion e filha de José Soares de Souza, braço direito do ex-governador Adhemar de Barros, Claudia sentia alívio ao repetir o mantra om. ‘Aquilo me dava sensação de liberdade e trazia um pouco da transcendência que eu buscava nas drogas.’ Prima dos mutantes Sérgio Dias e Arnaldo Baptista, ela levava uma vida boêmia e já havia tentado o suicídio. Mas só viria a abandonar esse estilo de vida cinco anos depois de deixar a prisão. Em 1978, quando morava na Califórnia com um dos cinco maridos que teve – Paul Weiss, ex-iluminador de palco do roqueiro Alice Cooper -, conheceu o zen, uma das vertentes japonesas do budismo. Encantada, deixou o rapaz, mudou- se pa ra uma comunidade espiritual, raspou a cabeça e se converteu. Cinco anos depois ela se entregaria de vez à vida monástica com um novo nome: Shin Guetsu ou monja Coen.

Esse é só um trecho da novelesca biografia da budista mais popular da cidade, que acaba de ganhar uma versão romanceada. O casamento aos 14 anos com o ex-piloto de carros de corrida Antonio Carlos Scavone e o nascimento da filha Fábia, quando tinha apenas 17 anos, são outras passagens marcantes que foram citadas em Monja Coen, a Mulher nos Jardins de Buda ( Mescla Editorial; 264 páginas; R$ 53,90), com lançamento previsto para o dia 10 na Livraria Cultura do Conjunto Nacional. ‘Fiz duas entrevistas mensais com ela ao longo de um ano e criei situações e diálogos de ficção baseados na sua história real’, explica a autora, Neusa C. Steiner, que conheceu a monja durante o mestrado em ciências da religião na PUC.’Trocamos todos os nomes para preservar os envolvidos’ A estrela do livro conta, por exemplo, que sua família não era tão rica como a da obra. ‘Mas é verdade que fui molestada sexualmente quando criança’, diz.’Essa é e não é a minha história’ A própria monja foi autora de dois livros – Viva Zen e Sempre Zen, da Publifolha -, além de repórter do Jornal da Tarde por três anos e meio, no fim dos anos 60. ‘Minha primeira entrevista foi com o Clodovi’, lembra. Apesar de carregar no tom ficcional, o livro dá uma boa ideia de quão intensa foi ida de Claudia, batizada na obra como Silvia: algo como o caminho de luxúria trilhado antes da iluminação’ pelo próprio Buda. ‘São experiências que nos levam ao amadurecimento, mas não podemos estacionar nessa fase de festas’, afirma a monja.

Aos 62 anos, ela canaliza sua vitalidade para uma agenda profissional cheia, que não exclui duas aulas de ioga semanais e exercícios com um grupo de quarenta pessoas da terceira idade. Seus antigos prazeres carnais nunca foram segredo para os cerca de 120 devotos da Comunidade Zen Budista, templo que funciona na casa em que vive (e na qual passou a infância), diante do Estádio do Pacaembu. Exemplos de sua vida privada também são citados naturalmente nas palestras que faz em empresas, ao preço médio de 3.000 reais cada uma, e que respondem

por cerca de 60% da receita do centro. Na última terça (24), o balanço detalhado do mês de setembro (com 20.000 reais de despesas contra 25.000 de receitas) estava afixado no mural de cortiça do hall de entrada, onde os fiéis trocam os sapatos por havaianas antes de reverenciar a estátua de Buda no tatame da casa.

A primeira mulher a ocupar a presidência das Seitas Budistas no Brasil, no fim dos anos 90, acorda às 6 da manhã e dificilmente dorme antes da meia-noite. Quem passeia pelo Parque da Água Branca no terceiro domingo de cada mês já deve ter flagrado a senhora careca vestida de samue, o manto dos monges, liderando caminhadas meditativas. O hábito surgiu em 2001, no Parque da Aclimação, depois que a religiosa foi afastada do templo da Liberdade, por causa de um conflito com membros da comunidade japonesa tradicional. Dona de duas cadelas, a akita Tora e Endora, da raça dogue alemão, ela vai a “cãominhadas como a do último dia 4 de outubro. Dirige seu Gol cinza 2002 para participar de programas de TV e cerimônias pela paz e interreligiosas, normalmente como representante de todas as linhas budistas da cidade. Monja Coen não se incomoda com a popularidade. Pelo contrário. ‘Tem gente que me chama de exibida, e acho que sou um pouco, sim’, confessa. ‘Sei que os veículos de comunicação são uma ferramenta poderosa para que mais pessoas conheçam a doutrina de Buda’ Por isso permitiu ter sua trajetória devassada, ainda que com uma boa carga de ficção, em livro.’Quero que as pessoas saibam que podem se transformar e se guir para qual lado quiserem.’

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Coen rōshi fábia de souza scavone
 Tomas Arthuzzi/Reprodução

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A Praça Charles Miller, na capital paulista, era o quintal de brincar onde Cláudia Dias Baptista de Souza ralava os joelhos. Nas cercanias do Estádio do Pacaembu, o sobrado da infância da monja Coen Roshi mantém o aconchego de casa de mãe.

Espero por ela no portão, mas seus labradores chegam primeiro. Logo depois, a mulher baixa, de fala amorosa e pele viçosa, usando quimono preto e camiseta branca, me convida para sentar na varanda.

Conforme a conversa flui, ela se emociona, não se recusa a rever o passado, a menina que casou aos 14 anos, namorou muito, tentou o suicídio, foi presa com drogas.

Conta também das inquietações atuais, como embarcar na escolha da neta, Rafaela, 24 anos, de dar à luz em casa – o que rendeu à monja um desespero, diante de uma emergência, e uma excitação: ver o bisneto, Mahao, brotar para a vida no chão do quarto dela.

Cláudia mora nesse endereço cheio de memórias que se tornou o Templo Tenzui Zenji e onde, no dia 30 de junho, celebrará seus frutíferos 70 anos – 34 deles monásticos, dedicados a fazer do mundo um lugar com um pouco de paz.

Leia mais: O que fazer se seu filho escolher uma religião diferente da sua?

Seguida por zen-budistas e fãs dos seus 200 vídeos postados no canal Mova, no YouTube, ela lançou neste mês o sétimo livro, O Sofrimento É Opcional. Como o Zen-Budismo Pode Ajudar a Combater a Depressão (Bella Editora).

Até o aniversário, sai também um documentário sobre Coen dirigido por André Szilágyi Carvalho, marido de Rafaela. Veja trechos da entrevista:

Coen rōshi fábia de souza scavone
Tomas Arthuzzi/Reprodução

CLAUDIA: Como foi se casar tão jovem?

Monja Coen: Queria sair de casa, ser adulta. Em uma festa, aos 13 anos, dançou comigo um moço bonito, de 20 (o ex-piloto de Fórmula 3, Antônio Carlos Scavone). Começamos o namoro com a minha mãe na sala. Mas ele voltava depois para me encontrar às escondidas. Em uma noite, foi pego pela família. Cogitaram me mandar para um colégio interno.

Para esquecer o namoro, minha mãe me levou para a Europa por três meses. Mas, cabeça-dura, eu ameaçava fugir com ele. Casamos. Eu queria parecer moça, ia ao cabeleireiro todo dia, tomava injeções para engravidar. Meu marido viajava cobrindo o Mundial de Pilotos para a Globo. Teve uma namorada, me deixou ofendida. Grávida aos 17, briguei e me separei.

Mas ele reaparecia. Na véspera de voar para uma corrida na Europa, perguntou se eu não queria ir junto. Recusei. Então, me deu um beijo como não fazia havia anos: era a despedida. O avião caiu. Ele tinha 32 anos; minha única filha, Fábia, 7.

CLAUDIA: Por que a senhora diz que o jornalismo a preparou para a vida?

Monja Coen: A rotina da redação me pôs em contato com a dor do mundo. Fui repórter no Jornal da Tarde, conheci o Nordeste, a seca, a fome, as mazelas. Morei com um colega, mas não durou porque ele bebia muito, o que é difícil de lidar. Tentei o suicídio, comecei a analisar minha vida, a das pessoas que sofriam em um casebre que pegara fogo e dos que eram tratados como reis. Contrastes fortes para uma menina de 20 anos.

CLAUDIA: A senhora usou LSD e foi presa na Suécia. O que isso lhe ensinou?

Monja Coen: Que não é preciso droga para acessar níveis profundos da consciência. Eu achava que, se alguém tomasse ácido, não tentaria se matar. Sob o efeito, você sente que é um só corpo, uma só vida com tudo que existe. Um namoradinho escocês veio para o Brasil, sem dinheiro. Teve a ideia de levar LSD para a Suécia, que mostrava alto índice de suicídio. Pensamos: “Será um bem. As pessoas vão desistir de se matar”. E ele traria grana. Seguimos para Estocolmo; fomos revistados. Ficamos presos por cinco meses.

No silêncio, acordava cedo, ouvia Pink Floyd e comecei a meditar. Comia bem, trabalhava na costura e no jardim. Era poupada nas brigas violentas – tenho uma cicatriz na orelha e mentia que havia sido uma briga de faca. Então, me respeitavam. De volta a São Paulo, minha mãe me apresentou aos primos dela, Arnaldo e Sérgio, dos Mutantes. Eu ia de moto à casa deles e da Rita Lee, na Serra da Cantareira.

Juntos, assistimos ao show do Alice Cooper e ali conheci o iluminador Paul Weiss. Ele chorou ao se despedir, me convidou para visitá-lo na Flórida. Lá, comprei alianças e perguntei: “Vamos casar?”. Paul me dava livros de meditação e eu o ajudava a produzir shows de David Bowie. Com saudades da minha filha, retornei com ele. Foram sete anos juntos.

CLAUDIA: Por que optou pela vida monástica?

Monja Coen: Em Los Angeles, encontrei o zen. Falei para um abade que queria ser monja e ele estranhou: “Você nem é budista, vem de família cristã”. Respondi que podia aprender. Vendi meu carro e fui viver o zen. Após a ordenação, estudei em um mosteiro feminino no Japão e fiz pós-graduação em outro, misto.

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Estava feliz com o celibato, mas conheci um monge japonês (Shozan Murayama). Na ordem, houve quem fosse contra, mas meu mestre calou a todos aprovando o casamento. Viemos trabalhar no Brasil. A relação durou sete anos.

CLAUDIA: Como é sua rotina no templo?

Monja Coen: Os cachorros me chamam às 6 horas. Antes, fazia duas horas de liturgias, mas em 2016 tive herpes-zóster (vírus ligado à baixa resistência, que leva a dores e erupções na pele) e reduzi a rotina. Acendo incensos nos altares, rezo, tomo café com pão. Ainda de manhã, escrevo. Uso o Facebook, assisto a Netflix, me divirto como a CNN brigando com o Trump, vejo notícias daqui.

CLAUDIA: Seu bisneto nasceu no templo. Como participou da experiência?

Monja Coen: Rafaela veio pedir apoio para um parto normal em casa – coisas da modernidade. Eu disse que podia contar com a bisa. Ela sentou no chão do meu quarto. Com o pé quebrado, em uma cadeira de rodas, participei pouco, mas a encorajava: “Você pode gritar, não precisa ter vergonha”. Uma parteira a ajudava. A cabecinha de Mahao vinha e voltava. Até que a língua da minha neta começou a roxear, e fiquei com medo. A responsabilidade era minha. A família não concordara; o médico tinha sido contra. Rezei tudo que sabia. Peguei um livro de sutras budistas, fiz orações com toda intenção. “Vai dar certo”, pensei. O bebê nasceu bem e trouxe bênçãos para nós, para a casa.

CLAUDIA: Ele entrou de Super-Homem em uma palestra sua. Foi espontâneo?

Monja Coen: Fiquei feliz ao vê-lo no palco. Mahao tem 3 anos. Estava à vontade, na delícia de usar a capinha de super-herói, voando. Ser bisavó é muito louco e lindo!

CLAUDIA: Como percebeu a chegada dos 70 anos? É difícil envelhecer?

Monja Coen: Até o zóster, corria 10 quilômetros com frequência. Dei uma parada. Ando exausta: sou solicitada por empresas e universidades, viajo. Em 2016, estive no Japão e na Colômbia. Deveria ter mais cuidado comigo: em hotéis como mal; engordei 10 quilos. Mas tento manter o corpo em ação. Envelhecer não é fácil nem difícil; a gente não escolhe. Há coisas mudando e devo me adaptar à realidade da idade. Sinto tontura em locais com gente falando alto. Ficamos frágeis: se pegamos algo com força, a veia arrebenta.

CLAUDIA: Como vê a viralização das suas palestras no YouTube?

Monja Coen: Saio na rua e as pessoas me agradecem pela ajuda. Um dia, no mercado, duas mulheres comentaram: “Ela é a supermonja”. A internet me fez mais conhecida; atinge todas as idades e classes sociais. Tento basear os ensinamentos de Buda no que acontece no mundo, no dia a dia conturbado.

CLAUDIA:  Vivemos com medo da rua, do outro… É cabível tanto medo assim?

Monja Coen: Medo não faz mal. Ele protege. Mas não pode me parar. Nem devo imaginar: “Ando em qualquer lugar porque Buda me ajuda”. Não é assim. Perguntaram ao papa se ele não sentiu medo na visita a uma comunidade pobre brasileira. Ele respondeu: “A gente pode morrer em qualquer lugar; aqui, na cama”. Não ter medo da morte e da dor é o mais importante. O zen trabalha isso: você está livre para o que a vida trouxer. Ela nos dá flechadas de sofrimento. Tem gente que enfia outra flecha em cima e fica causando mais dor. Para quê?

CLAUDIA: As mulheres pedem, nas ruas, direito ao aborto e denunciam relações abusivas. Como vê isso?

Monja Coen: Acho bom! Viviam com um tampãozinho na boca, com medo de apanhar mais, perder o emprego. Buscamos a equidade. O aborto deve ser a última opção, mas tem de ser legalizado. Evitará a morte de muitas. Mulheres, homens e crianças não merecem o abuso. E há mulheres que abusam. Destroem moralmente o parceiro, põem os filhos contra o pai.

CLAUDIA: Dá para ser sereno na vida atual?

Monja Coen: Com respiração consciente. Um vizinho faz obras há meses. Os ruídos são a música que ouço. Não adianta reclamar. As coisas não são como eu gostaria.

CLAUDIA: Como aquietar o coração com o fim de um caso de amor difícil?

Monja Coen: Não se deve esquivar de outro com receio de novo fracasso. Só será assim se você repetir o personagem. Quando fui para o zen, me queixei: “Estou cansada de viver um amor bonito e, logo depois, vê-lo deteriorar como o anterior”. Eu punha a culpa no parceiro. Depois, entendi: sou eu. Devo ver o que faço para chegar àquele ponto e como mudo isso. É preciso se conhecer, alterar a maneira de ser em relação à pessoa amada.

CLAUDIA: Vai ter festa nos seus 70 anos?

Monja Coen: Acho que convidarei alguns alunos para apresentar suas artes. Uma é bailarina de butô; outra, de dança indiana. Será uma reunião para a minha sanga (comunidade budista).

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