Quais são as especiarias das Índias mais valorizadas nas Grandes Navegações?

Piperina, eugenol, miristicina, elemicina, cinamaldeído, safrol, zingerona… são moléculas que hoje até têm certa aplicação, mas nada tão relevante quanto no passado, quando eram tão desejadas e valorizadas a ponto de motivarem grandes investimentos para obtê-las e conflitos para monopolizá-las. Na verdade, as moléculas em si não eram conhecidas, mas sim o que as continham: as especiarias do oriente, no caso, a pimenta-do-reino, a noz-moscada, a canela, o cravo-da-índia e o gengibre.

Nos dias atuais, essas especiarias parecem pouco mais que uma preferência culinária, a ser adicionada “a gosto”, mas até o século XVII eram consideradas itens de luxo. A tabela a seguir mostra os valores em cidades urbanas da Inglaterra medieval (tais como Londres e Oxford) em 1438-39, bem como, para efeito de comparação, a remuneração diária de um trabalhador médio (nas mesmas cidades urbanas) e outros produtos:

Tabela com a remuneração de um trabalhador médio e preços das especiarias e de outros produtos em cidades urbanas da Inglaterra em 1438-39. (fonte)

Salário Remuneração Unidade
Carpinteiro/pedreiro 6,0 a 8,0 / dia
Especiarias Preço Unidade
Canela 20,0 a 24,1 / libra
Cravo-da-índia 35,6 a 48,0 / libra
Gengibre 12,0 a 28,0 / libra
Noz-moscada 36,0 / libra
Pimenta-do-reino 12,7 a 18,0 / libra
Outros produtos Preço Unidade
Açúcar 16,0 a 24,0 / libra
Amêndoas 3,0 / libra
Cerveja 0,7 / galão
Farinha de centeio 4,0 / libra
Frango 5,0 / unidade
Leite 1,0 / galão
Manteiga 1,0 / pint
Mel 2,5 / pint
Peixe linguado 2,5 / unidade
Sal 0,5 / pint
Vinho tinto 5,0 / galão

OBS.: as unidades de medida no período medieval variavam de acordo com a cidade e o produto, mas para se ter uma noção aproximada, a libra variava entre 330 e 470 g, o galão entre 3,8 e 4,6 litros, e o pint entre 470 e 570 ml.

O fato de as especiarias serem transportadas do Oriente para a Europa Ocidental por grandes distâncias e através de vários comerciantes intermediários era um dos motivos para os altos preços nos mercados europeus. Contudo, quando os europeus acessaram a fonte diretamente por rota marítima (que, apesar de cara, conseguia ser mais barata que a rota anterior repleta de intermediários), os preços das especiarias nos mercados europeus não caíram. Além disso, o comércio de especiarias sempre passou por monopólios, o que também impactava na elevação dos preços. Porém, mesmo um monopólio não consegue impor o preço abusivo que quiser se não houver uma demanda que aceite pagar pelo valor que está sendo cobrado. A realidade é que as especiarias eram tratadas como um item de luxo e moda gastronômica, consumidas apenas em ocasiões especiais por cidadãos comuns e com maior frequência por nobres e abastados – seria um vexame, um sinal de decadência da família, dar um jantar em que os molhos das carnes não estivessem marcados excessivamente pelos sabores característicos das luxuosas especiarias.

E aquela história de que as especiarias ajudariam a conservar os alimentos? Bom, naquelas épocas em que não existiam nem práticas higiênicas de manuseio, nem embalagens estéreis e muito menos geladeira, essa propriedade realmente era relevante, bem como a possibilidade de mascarar o sabor de alimentos com a deterioração já avançada. Entretanto, essas características não foram determinantes para explicar a demanda por elas, afinal, para essas mesmas finalidades, já se utilizavam sal, vinagre, óleos e gorduras, defumação e exposição ao sol. Ou seja, podia-se pagar muito menos se a intenção fosse unicamente a conservação. Um indício de que conservar o alimento seria um fator menos importante do que apreciar o sabor (e principalmente mostrar esse sabor para os outros, ou seja, ostentar) é o fato de haver registros nos manuais de receitas da Europa medieval de que as especiarias eram utilizadas principalmente nos molhos a serem adicionados sobre as carnes durante a refeição. Se a intenção fosse a conservação dos alimentos por dias ou meses, as especiarias seriam adicionadas em abundância durante o cozimento das carnes ou cobrindo-as totalmente (como se faz com o sal), práticas que até poderiam ser realizadas, mas seriam um “desperdício de riquezas” que poucos poderiam arcar.

Mas, de fato, um ponto em comum entre essas moléculas citadas lá no começo é a função que elas exercem de proteger os vegetais nos quais são produzidos, por serem antifúngicas, antibacterianas e algumas serem repelentes e tóxicas para insetos. Quando as especiarias que carregam tais substâncias são aplicadas em alimentos, essas propriedades colaboram para reduzir a atividade de microrganismos e evitar a ação de insetos, o que faz o alimento durar algumas horas ou dias a mais.

Outra função importante que se dava para as especiarias na sociedade europeia medieval era seu uso como medicamento (mesmo quando utilizado em alimentos). Como exemplo de aplicação medicinal, podemos citar o fato de as especiarias serem consideradas quentes (devido à sensação no paladar), o que ajudaria a reestabelecer o equilíbrio de humores (ou fluidos) corporais no caso de uma doença ser associada a um suposto excesso dos humores frios, conforme o conceito vigente na Europa desde a Antiguidade de que a saúde dependia do equilíbrio dos humores. Pelo mesmo motivo, o consumo de especiarias no inverno ajudaria a evitar o desequilíbrio e manter o corpo quente e sadio. E era constante, segundo livros de cozinha francesa, a utilização das especiarias em conjunto com ácidos (vinagre e/ou suco de frutas), que se acreditava terem a propriedade de atingir todas as partes do corpo, inclusive as mais estreitas, e assim o ácido conduziria com mais eficiência as propriedades curativas das especiarias para todo o corpo. Especiarias, em especial a pimenta, eram ainda recomendadas como cura para perda do vigor sexual.

Havia também a teoria de que as especiarias ajudariam na digestão devido ao entendimento da época de que a digestão ocorria tal qual o cozimento em um caldeirão, sendo que a suposta fonte de calor desse cozimento interno seria o próprio calor corporal (conceito relacionado à essência da vida), e, nesse contexto, as especiarias, por serem “quentes”, ajudariam nesse cozimento interno do processo de digestão. Não é raro encontrar ainda hoje em dia a crença de que temperos ajudam na digestão e no metabolismo justamente por serem “quentes”.

Para entender essa sensação de “quentura” (apesar de não estarem em temperatura elevada) e o porquê de as especiarias realmente ajudarem na digestão, vejamos os efeitos da piperina (substância ativa da pimenta-do-reino, compondo de 5 a 10% da especiaria seca) no nosso organismo. A molécula da piperina é capaz de acionar tanto os receptores de dor quanto os de calor (os receptores são acionados por fatores tanto físicos, como temperatura e pressão, quanto químicos, como acidez extrema e certas substâncias como a piperina). Por isso, ela causa a sensação de dor e calor e, como consequência disso, o organismo estimula as produções de saliva na nossa boca e de suco gástrico no nosso estômago. O balanço final é uma digestão facilitada devido à liberação aumentada das enzimas digestivas presentes nessas secreções. Existe ainda uma relação entre moléculas picantes e a produção de endorfinas, que são hormônios opioides que causam alívio, bem-estar e euforia e são produzidos pelo nosso corpo em resposta à dor, à extenuação física e, nesse caso, à “agressão” que a substância picante causa nos terminais nervosos da língua. Outra molécula que também causa esse efeito é a capsaicina, que é o composto ativo de outro grupo de pimentas que inclui a malagueta e a dedo-de-moça.

Vamos agora conhecer melhor as substâncias presentes nas outras especiarias.

Uma das utilizações tradicionais do óleo essencial do cravo-da-índia é a aplicação bucal para alívio de dores de dente. Essa eficácia se deve às propriedades anestésicas do eugenol, que compõe 60 a 90 % do óleo extraído do cravo-da-índia e está presente também, em menor escala, na noz-moscada e canela. Na planta do cravo-da-índia, essa substância tem a importância de atrair certos insetos polinizadores para suas flores.

A noz-moscada possui efeitos psicoativos, podendo causar alucinações e convulsões se ingerido em grandes quantidades. As responsáveis por essa neurotoxicidade são a miristicina e a elemicina, as principais substâncias que caracterizam a noz-moscada (compõem cerca de 1% e 0,3% da noz bruta, respectivamente). Os primeiros sintomas no sistema nervoso podem ocorrer com um consumo de 1 a 2 mg de noz-moscada por kg da pessoa (significa 0,075 a 0,150 g de noz-moscada ingerida por uma pessoa de 75 kg), sendo considerado overdose o consumo de 5 g da noz. No século XIX, acreditava-se que a noz-moscada possuía propriedades abortivas, tanto que se registrou grande número de intoxicação em mulheres, embora, hoje, é conhecido que a noz-moscada e suas substâncias são seguras para gravidez, tendo efeito apenas no sistema nervoso da mãe. No século 14, durante a pandemia da peste negra na Europa, foi comum carregar noz-moscada como amuleto de proteção contra a doença. Hoje é fácil perceber que a correlação entre a peste e a noz faz sentido, uma vez que temos o conhecimento de que o vetor da doença eram pulgas e de que a miristicina e a elemicina são eficientes repelentes de insetos.

O aroma característico da canela é determinado pela substância cinamaldeído, que compõe de 50 a 90% do óleo essencial extraído da casca interna da planta (que é a parte que consumimos da canela). Já o aroma adocicado tanto da canela quanto da noz-moscada possui colaboração da substância safrol. No rizoma do gengibre encontra-se a substância zingerona, que caracteriza o sabor pungente dessa especiaria e é reconhecida atualmente como antioxidante (por captar radicais livre para si) e ativo contra certas bactérias.

Quais são as especiarias das Índias mais valorizadas nas Grandes Navegações?

As moléculas de piperina, eugenol, elemicina, miristicina, cinamaldeído, safrol e zingerona (modelos feito no aplicativo Edumol). Observa-se estruturas químicas similares nelas, o que revela que os mecanismos bioquímicos de produção dessas moléculas são similares nas diferentes plantas. Ainda assim, apesar de tantas semelhanças, a percepção no paladar e olfato são bastante distintos, tendo cada molécula seu odor e sabor muito bem específico.

As propriedades antifúngicas e antibacterianas das especiarias ainda possibilitam que, quando secas, elas durem por muitos meses, o que foi essencial para que suportassem, sem serem deterioradas nem tomadas por mofos e pragas, as longas viagens de mais de 10.000 km do oriente da Ásia até o ocidente da Europa. No próximo texto, veremos como se davam o transporte e o comércio desses itens luxuosos e definidores de status social durante o período que chamamos de Idade Média.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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PINTO, Eugénia; VALE-SILVA, Luís; CAVALEIRO, Carlos; SALGUEIRO, Lígia. Antifungal activity of the clove essential oil from Syzygium aromaticum on Candida, Aspergillus and dermatophyte species. Porto e Coimbra, Portugal, 2009

RODRIGUES, Ronaldo da Silva; DA SILVA, Roberto Ribeiro. A História sob o Olhar da Química: As Especiarias e sua Importância na Alimentação Humana. Brasília, 2009. Publicado na Química Nova Escola, Vol. 32, N° 2, 2010

SAVAGE, Jessica. The Index of Medieval Art – “Winter Spices in the Middle Ages”, 2017

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Rodrigo Braga. Engenheiro químico de formação, gosta de dar pitacos em química dos alimentos. Curte os bons e velhos RPG e jogos de tabuleiro com a galera. E tem uma paixão inexplicável por produção teatral!

Quais eram as especiarias das Índias mais?

Desde aquela época, a Índia é origem das especiarias mais usadas, como o gengibre, pimenta-do-reino, cravo-da-índia, açafrão, cúrcuma e cardamomo.

Quais eram as especiarias nas Grandes Navegações?

As especiarias são temperos (condimentos) usados na culinária para proporcionar sabores diferentes nas comidas. Algumas especiarias também eram, e ainda são, utilizadas na fabricação de cosméticos, óleos e medicamentos. As principais são: pimenta, gengibre, cravo, canela, noz moscada, açafrão, e ervas aromáticas.

O que são especiarias das Índias?

Os principais elementos que caracterizam os pratos da Índia, são gengibre, noz-moscada, canela, cúrcuma, cravo, cominho e por último, o ingrediente que nunca pode faltar em seus banquetes, a pimenta.

Quais foram as especiarias trazidas pelos portugueses da Índia?

As seis mais importantes - pimenta, gengibre, canela, cravo, maça e noz-moscada -, vinham de muito longe e davam lucros generosos. Também por isso, os portugueses foram à Índia.