Quando ninguém está olhando pdf docero

Autora multipremiada, Alyssa Cole aborda racismo e tens�es sociais em thriller com ares de Hitchcock.

Sydney Green nasceu e foi criada no Brooklyn, em Nova York, mas cada vez que ela pisca os olhos seu amado bairro parece mudar. Condom�nios se espalham como erva daninha, placas de �vende-se� surgem da noite para o dia e os vizinhos que ela conhece a vida toda est�o sumindo.

Para manter de p� tanto o passado quanto o presente da comunidade, Sydney decide canalizar sua frustra��o planejando um passeio guiado em que pretende contar a verdadeira hist�ria do local. S� que, para tornar o projeto realidade, vai precisar aturar seu novo vizinho, Theo, como assistente.

A pesquisa dos dois, entretanto, logo se transforma. O que era apenas uma distra��o vira uma hist�ria de paranoia e medo. No fim das contas, talvez os vizinhos n�o tenham se mudado para outros bairros e a revitaliza��o do lugar seja mais mortal do que eles imaginaram.

Seriam apenas coincid�ncias ou sinais de uma grande conspira��o? Sydney pode confiar em Theo, ou ela tamb�m corre o risco de desaparecer? Quando ningu�m est� olhando nos conduz por um enredo hipnotizante e surpreendente, que aborda com perspic�cia a viol�ncia racial e as assimetrias sociais, em uma sequ�ncia de eventos instigantes que aos poucos d�o forma a um cen�rio de completo horror.

Fic��o / Literatura Estrangeira / Romance / Suspense e Mist�rio

Publicado: 2020-12-16

Quando ninguém está olhando pdf docero
CRUEL Bianca Ribeiro COPIDESQUE Coordenação editorial Júlia Vasques Revisão Amanda Mesquita Diagramação Renan Barros Capa Hugo Breves FICHA CATALOGRÁFICA Ribeiro, Bianca Cruel / Bianca Ribeiro 1. Ed. – Braga 16X23 cm. CDD B869.8 Agosto: Ases da Literatura, 2017. (broch.) 1. Literatura. I. Título. Capítulo 1 Meu nome é Rosie Vallahar. Tenho dezessete anos. No momento, estou sentada em um banco de espera na delegacia da minha província. Eu cheiro a queimado e minha testa arde por causa de um corte que os enfermeiros tentaram fazer parar de sangrar. Não deu muito certo. Hoje fiquei órfã. Um incêndio varreu minha casa e minha família do mapa. Só eu sobrevivi. Posso parecer fria falando dessa forma, mas já chorei nas últimas duas horas o suficiente para a vida toda. Já dei meus depoimentos à polícia sobre o acidente e comi uma rosquinha com granulado colorido. Minhas costas doem e eu estou com sono. — Querida, querida — A policial responsável por mim abre a porta de sua sala, chamando- me. Eu me levanto e vou até ela. — Aqui — Ela me estende um pacote de papel pardo. — Uma troca de roupas para você. Eram da minha filha. A policial Mac foi quem me encontrou nos escombros e permaneceu olhando por mim durante as últimas seis horas. Ela perdeu a filha mais velha há um ano. É estranho receber roupas de uma garota morta, mas estou muito grata pelo gesto. — Obrigada — sussurro, fitando o pacote. Ela afaga o topo da minha cabeça. Sou muito baixa, apesar da minha idade, o que já me rendeu confusões com professores, policiais e garotos. — Está cansada, querida? Assinto. Estou prestes a deitar no chão da delegacia. — O senhor DeVil acabou de chegar, Mac! — grita um policial no corredor. Suspiro. Collumbus DeVil tinha uma grande "dívida moral" com o meu pai e, caso algo acontecesse, ele é quem deveria ficar responsável por mim. Desde pequena fui instruída por minha mãe a dizer isso à polícia se me perdesse ou algo acontecesse aos meus pais. E foi o que eu fiz. Não tenho parentes próximos e todos os pertences da minha família viraram cinzas. Que escolha eu tenho a não ser confiar nesse estranho? — Tem certeza de que está tudo bem em ir viver com este senhor? — pergunta Mac. — Pode recorrer no tribunal ou, quem sabe, tentar uma emancipação? Faço que não. — Era isso que a minha mãe... — Um nó na garganta me impede de falar. De respirar. Ainda não parece verdade que estou completamente só. Mac me dá uns tapinhas no ombro. — Entendi, querida, entendi. Se sua mãe queria dessa maneira, então deve ser o melhor para você. Tento engolir o choro e me acalmo. Não quero mais chorar. — Vamos encontrar o senhor DeVil — A policial Mac sorri. Ela é alta, tem a pele cor de chocolate, bonita e com um ar jovem. Como a tia que eu queria ter tido. Confio nela. Seguimos pelo corredor até o hall de entrada da delegacia. Antes que eu veja o senhor DeVil em si, vejo seus casacos de pele luxuosos e volumosos. Então, meus olhos focalizam na figura dele e eu paro no meio do caminho. Ele é jovem. Mais velho do que eu, mas bem mais jovem do que pensei que seria. Que tipo de contato tinha com o meu pai? A policial Mac também hesita e me olha de esguelha, desconfortável. — Senhor... DeVil? Ele se volta em nossa direção e caminha a passos calmos e elegantes até estar diante de nós duas. Os cabelos dele são do mais escuro preto, lisos e escorridos e quase chegam aos ombros. Ele é pálido e esguio. Veste smoking por baixo das peles luxuosas. E os olhos... não sei. Não consigo encará-lo nos olhos. — Você deve ser a Rosie — ele diz. Sua voz é pegajosa e grave. Sinto vontade de me esconder atrás da policial Mac. — Siiim — sibilo. O senhor DeVil troca um brevíssimo aperto de mão com a policial Mac. — Obrigado por tomar conta dela, policial. Mas ela não está convencida. — O senhor é o senhor Collumbus DeVil? — Mac arqueia uma sobrancelha. — Se eu sou? — Ele dá um sorriso torto. — De maneira nenhuma, senhora policial. Collumbus é meu falecido pai. Quem cuida dos negócios da família agora sou eu, e isso inclui... — Ele olha para mim e eu desvio o olhar para o chão. — Isso inclui as dívidas que ele fez em vida. — Entendo — Ela assente. — E o senhor se julga apto a zelar por esta criança? — Mac enfatiza a última palavra de um modo estranho. Deixa-me preocupada. O jovem senhor DeVil arqueia uma sobrancelha. — Mas é claro. Estremeço. Não me sinto segura. A tensão no hall é quase palpável. A policial Mac e o senhor DeVil permanecem encarando um ao outro pelo que parece uma eternidade. Então ela suspira, olha para mim e sorri. — Você deve ir agora, querida. Não quero. — Você ficará bem. Não ficarei. Mac me abraça e sorrateiramente enfia algo no bolso da frente da minha calça jeans. — Até logo. Fico olhando para ela quando ela se afasta. Minhas mãos estão frias, mas algo ainda mais frio toca meu ombro. Congelo. — Venha, Rosie Vallahar — murmura o senhor DeVil —, vamos para casa. Tudo no jovem senhor DeVil é enigmático. Desde a maneira como ele caminha, até o modo como me olha de canto do olho. Eu sabia que ele era rico, mas me surpreendo quando vejo um carro vermelho e chique — daqueles antigos e caros — diante da delegacia, com direito a motorista particular. Abraço o meu pacote. Meus únicos pertences. Tenho frio. Já passa da meia-noite e tanto o asfalto negro como a calçada brilham. Deve ter chovido. Conduzida pelo ombro pelo senhor DeVil, aproximo-me do carro. O motorista se adianta e abre a porta para mim. É um homem bem alto e magro, de bigode grisalho e rosto sem expressão. Se eu não estivesse vendo-o se mexer, podia jurar que estava morto. — Senhor, senhorita — ele resmunga, respeitosamente. Atrás de mim, o senhor DeVil ronrona: — Primeiro as damas. Olho para ele rapidamente. Está sorrindo de um jeito debochado. Tropeço nos meus próprios pés, mas entro no carro. Os bancos são de couro bege e o veículo é forrado de veludo vermelho. Sinto cheiro de menta e algo que não sei nomear. Espremo-me contra a porta para a abrir a maior distância possível entre mim e o senhor DeVil. Ele entra depois de mim e o motorista fecha a porta. O trajeto é longo. Muito. Vejo casas e estabelecimentos rarearem conforme o carro corre pela estrada. Com certeza já estamos fora da cidade. Ao meu lado, o senhor DeVil acende um cigarro. Fico olhando para ele, fitando seu rosto ser iluminado pela pequena chama alaranjada. Seus olhos são azul-gelo e suas maçãs do rosto são salientes. Ele me flagra olhando. Desvio os olhos para a janela. Meu coração falha por um segundo. Tenho medo de olhar diretamente para os olhos dele. Muito medo. — Quer um, Rosie? — ele pergunta, mostrando-me o cigarro aceso. Faço que não com a cabeça, olhando para o vidro escuro. — Ah, é mesmo — Ele ri. —, você é somente uma criança. Uma boa criança, por sinal. E boas crianças não fumam, estou certo? Concordo. Ele espera. — Não sabe falar, Rosie? Sinto um nó formar-se em minha garganta. — Sei — respondo, de uma maneira mais rude do que gostaria. Olho de canto de olho e pego-o olhando fixamente para mim. Com maldade. Como se eu fosse um brinquedo novo que ele está ansioso para quebrar. Armo-me de toda a minha coragem e digo: — Agradeço se o senhor parar de olhar para mim desse jeito, senhor DeVil. Suas sobrancelhas têm um leve sobressalto. Ou, talvez, seja a minha imaginação inventando coisas. Ele ri. — Desse jeito — ronrona, olhando para o cigarro aceso entre seus dedos. — Pergunto-me... que jeito seria esse? Prendo a respiração. Ele está zombando de mim. Que infantil. Ninguém diz mais nada durante a meia hora seguinte. Estou a ponto de ficar apavorada quando vejo uma construção enorme e cinzenta cercada por muros negros e cobertos de hera. Parece um castelo, mas não tem torres. É gigante e antigo. É aqui que vou morar de agora em diante? Nesse lugar assustador? O motorista usa um controle automático para abrir o portão de ferro principal, que não parece nada eletrônico, mas é. Ouço o som de correntes. Então, entramos. O jardim da frente tem uma fonte com uma estátua de mulher derrubando um fio de água de seu jarro. Há plantas bem podadas por toda parte, mas nada de flores. Bem, ainda nem é primavera mesmo. O carro contorna a fonte e para diante das portas de madeira enormes. Dois homens de uniforme se aproximam. — Senhor DeVil — Um deles abre a porta para o senhor DeVil. — Senhorita — O outro abre a porta para mim. Salto do carro chique e antigo sem olhar para o empregado que abriu a porta para mim. Não sei para onde ir ou ficar, por isso permaneço parada ao lado do carro, fitando o chão. — Ei — o senhor DeVil chama, sobressaltando-me. Olho para ele, parado diante da porta. Está irritado, impaciente. — Venha, entre logo. Abraço meu pacote e corro até ele. Meus sapatos fazer um som engraçado quando batem nos degraus brancos e eu tenho que me frear para não trombar na figura esguia e imponente que me espera. Olho para ele. Parece ainda mais irritado. — Tsc. Acompanhe-me. Os dois empregados abrem as portas e recolhem as roupas de pele e o paletó do senhor DeVil. Dentro da casa está quente, agradável. As paredes e o chão são de bonitos tons de branco e pastel e a mobília é escura. Um lustre incrível ilumina o hall e uma escadaria belíssima estende-se ao andar superior. O senhor DeVil parece mais relaxado e arregaça as mangas de sua camisa branca. Seus braços parecem firmes e capazes, mas não muito musculosos. Não parece ser muito mais velho do que eu. Ele me flagra olhando. — Sabe — diz entre dentes —, agradeço se a senhorita parar de olhar para mim desse jeito. Sinto meu rosto arder e fito o chão branco. Ele está bravo. Mas, por quê? O que foi que eu fiz? — Desculpe — acabo sussurrando. Ouço-o suspirar alto. — Agatha! — grita ele, assustando-me. Uma mulher baixinha e de meia idade chega apressada. Veste um uniforme de empregada bastante tradicional. — Senhor? O senhor DeVil enfia as mãos no bolso da calça social. Há uma tira de couro vermelha em seu pulso. — Cuide das acomodações da... — ele hesita, olha para mim e coça a testa. —, dessa garota. Estarei ocupado, então dê um jeito nela. E então ele desaparece por um corredor sem dizer mais nada. Minhas mãos estão tremendo. Frio ou medo?, eu me pergunto. — Qual o seu nome, senhorita? — pergunta a empregada, Agatha. Pigarreio. — Rosie, senhora. — Oh, não me chame assim. O patrão vai brigar com nós duas — ela diz e me olha da cabeça aos pés. — A senhorita é uma jovem realmente muito bonita. Bonita demais para o próprio bem. É mesmo uma pena. Estremeço. — Uma pena... por quê? — indago. Agatha suspira. — É uma pena que tenha caído nas mãos dele. Capítulo 2 Meu quarto é bonito. Não sei se eu esperava que me dessem um sótão ou um armário de vassouras para viver, mas minhas acomodações realmente me impressionaram. Há uma cama grande de madeira com um dossel e edredons brancos. Três travesseiros fofos. Uma penteadeira e um guarda-roupa branco. Janelas grandes. Uma poltrona de leitura e uma estante cheia de livros. — E aqui fica o banheiro — Agatha gesticula para uma porta branca no fundo do quarto. — Eu tenho meu próprio banheiro? — indago baixinho, para mim mesma. É um banheiro pequeno, mas muito bem arrumado. Todo branco e bege. Aliás, tudo em meu quarto tem cores neutras e suaves. Faz-me sentir que estou num hospital de luxo ou algo assim. Mas não posso reclamar. Sou sortuda por ter todo esse luxo enquanto garotas da minha idade vão para abrigos até completarem dezoito anos e, depois, rua. — O que é isso que a senhorita tem aí? — pergunta Agatha, quando deixamos o banheiro. Dou-me conta de que ainda seguro o pacote da policial Mac com força contra o peito. — Uma... uma amiga me deu. São roupas. — Oh, pode me dar isso aqui — Ela estende as mãos. — Você terá roupas novas e dignas assim que... — Não. — Abraço o pacote com mais força. — Eu quero ficar com isso, Agatha. É meu. — Mas o senhor DeVil lhe dará roupas novinhas e de marca. Pense só nesse guarda-roupa cheio de vestidos e saias maravilhosos. Olho para o guarda-roupa. — Eu aceito as roupas que ele quiser me dar. Mas isso foi um presente. Não me livrarei dele. Agatha suspira. — Que teimosia. Isso é mau, senhorita Rosie. Franzo a testa. — Por favor, me chame só de Rosie. Agatha revira os olhos e apoia as mãos na cintura. — Isso será complicado — ela resmunga. — Sente-se, menina. Sento-me na beirada da cama. É menos fofa do que eu pensei que seria. Agatha puxa o banco da penteadeira e senta-se de frente para mim. — Escute, as coisas por aqui são sempre exatamente como o senhor DeVil quer que sejam. Ele é dono de toda a propriedade e é nosso dono, menina. Se você for uma boa garota obediente e ficar fora do caminho dele, tudo ficará bem. Meu estômago se agita. — Por quê? — pergunto. — Por que o quê? Meus dedos tremem. Não gosto dessa história de pertencer àquele homem. — Ele... ele tem apenas a minha guarda temporária, Agatha. Em nove meses, farei dezoito anos e não precisarei mais de um guardião legal. Então, irei embora. Agatha faz uma expressão estranha. De pena. Como se... — Se é assim que a senhori... que você quer pensar... — Ela coloca-se de pé. — Achei mais seguro adverti-la. O senhor DeVil é severo e não admite ser contrariado. Mantenha isso em mente. Agatha vira-se e caminha até a porta. — Eu... — digo, e ela para e olha para mim por cima do ombro. — Eu não tenho medo dele. Agatha dá um sorriso fraco que evidencia suas rugas. — Que bom. O café da manhã estará à mesa assim que o sol nascer. Há petiscos ali em sua mesa de leitura. Fique à vontade e... bem-vinda. A porta é fechada. Estou só. Deixo o pacote sobre a cama e devoro os biscoitos e as fatias de torta deixadas ali para mim. Estava com mais fome do que pensei. Decido abrir o pacote que a policial Mac me deu. Há uma blusa de moletom com estampa florida, um par de meias azuis e uma calça moletom cinza. Eram da filha dela. Sinto um aperto no peito, mas quero muito ficar com essas roupas. Por alguma razão, me lembram da sensação de perder alguém importante, e Mac e eu perdemos. Quero me lembrar disso, já que não tenho recordações de família. Perdi tudo. Olho de esguelha para o banheiro e cheiro meu cabelo. Argh. Preciso de um banho. Encontro um roupão, shampoo e sabonete. Ligo o chuveiro chique e deixo a água me lavar. Choro. Não queria, mas choro muito. Daquele jeito em que as caretas são inevitáveis e os soluços sacodem o corpo todo. Então, começo a me ensaboar e lavo meus cabelos. São muito louros, como os da minha mãe. E os meus olhos verde-escuros são como os do meu pai. Quem disse que não tenho nada para me lembrar deles, mesmo? Quando termino de me enxugar, visto o roupão e olho-me no espelho grande do banheiro. Meus olhos e nariz estão vermelhos e enormes de tanto chorar. Respiro fundo três vezes antes de voltar ao quarto. E sou surpreendida. Ele está aqui, no meio do quarto, com as mãos nos bolsos da calça. Seus olhos quase perfuram os meus. Fico paralisada, consciente de que estou apenas de roupão, cabelos molhados e que meu rosto está uma bola vermelha. Flagro seus olhos me avaliando. Eu tenho medo dele, sim. Não consigo me mover. Nem respirar direito. Nem pensar. O senhor DeVil também não faz movimento algum. Apenas me olha. Talvez esteja esperando que eu faça algo ou diga algo, não sei. Meu estômago está congelado. — E-eu... — gaguejo. — Não pensei que você já estaria tão à vontade — ele ronrona, crispando os olhos. — Eu estava cheirando a fumaça — digo, sem olhá-lo direto nos olhos. — É mesmo? E agora? Franzo a testa. — Agora? Ele se aproxima calmamente, pega uma mecha de meu cabelo molhado e cheira. Fico ainda mais congelada. Nem sinto meu sangue correr. O senhor DeVil cheira a menta e ele... ele é quente. — Hum... rosas — ele suspira, de olhos fechados. Então os abre e me encara. Está muito perto de mim. Perto demais. — Que cheiro de criança, Rosie — zomba. — Combina bastante com você. Ele se afasta um pouco, com um sorriso sarcástico e torto nos lábios pálidos. Levanta o indicador e dá um peteleco doído em minha testa. — Você está muito vermelha, sabia? Espero que não esteja tendo ideias. Toco o local que ele atingiu. — Ideias? — repito, atraindo sua atenção. Vou tentar entrar no jogo dele. — Pergunto-me... que tipo de ideias seriam. Se eu sou só uma criança, não tenho essas ideias. Não é mesmo, senhor? Seu sorriso vacila por um momento tão breve que me pergunto se não é minha imaginação. Cruzo os braços, fazendo força para não tremer na frente dele. — Eu... só vim ditar algumas regras — o senhor DeVil diz, após um longo segundo. Engulo em seco. — Estou ouvindo. — E decido acrescentar: — Senhor. — Bem, você mora aqui agora. Esta é sua casa, mas não quer dizer que pode fazer o que quiser. Não quero ter que ver você por aí, entendeu? Meus olhos correm para o rosto dele. Não é brincadeira. Ele parece irritado outra vez. — Sim — assinto. — Você continuará com seus estudos, seja lá onde você estude, mas sempre terá um dos meus homens com você, entendeu? Franzo a testa. — Por quê? — Minha voz soa indignada. Ele trinca os dentes. — Por que você está vivendo sob o meu teto agora e eu não quero que faça burrices quando estiver lá fora. Isso pode pegar muito mal para mim, pois parece que a sua cidade inteira ficou sabendo sobre seus pais. É uma questão de tempo até que saibam que está vivendo aqui. — Mas... mas eu não faço burrices — argumento, sacudindo a cabeça. — Sei bem como me comportar em lugares com mais gente. Eu não... O senhor DeVil ri com maldade, me interrompendo. Suas mãos voltam aos bolsos da calça. — Ah, isso não é divertido, você é muito previsível, Rosie. Previsível demais. Que patético. Ele vira as costas e começa a caminhar para fora do quarto tranquilamente. Eu sinto meu peito queimar. Ele... me chamou de patética? — Olha... senhor... — eu digo, aproximando-me dele. — Desculpe se você não foi com a minha cara, mas eu também não estou nem um pouco feliz com essa situação. Puxa, meus... meus pais morreram e eu... — Ah, você quer consolo? — Ele ergue uma sobrancelha. — Não, eu só... Ele abre a porta e olha para mim por cima do ombro com tanto desdém que sinto vergonha de mim mesma. — Como eu disse — resmunga —, é patético. E vai embora. Eu permaneço parada, mordendo o lábio com força. Não vou chorar. Não vou. Não por isso. Não por ele. Como... como vou viver assim? Serei vigiada o tempo todo por um cara que me considera uma vergonha em potencial e alguém patética? Teria sido melhor viver num abrigo. Meu aniversário não está tão longe. Teria sido melhor ouvir a policial Mac e entrar com um pedido de emancipação. Teria sido melhor esquecer o que minha mãe disse sobre o senhor Collumbus. O que eu esperava, afinal? Receber cuidados de alguém como ele? Gentileza porque fiquei órfã? É. Eu esperava por acolhimento. Que idiota. Enxugo as lágrimas que teimam em vir. Visto a roupa que ganhei da policial Mac e me enfio debaixo das cobertas. Nem me incomodo em apagar as luzes. Talvez eu tenha pesadelos se o fizer. Amanhã será um dia melhor, diria minha mãe em situações como esta. Ela sempre me dizia essas frases motivacionais e sempre esteve certa. Segundo meu pai, assim que eu nasci ela jurou que me criaria de maneira diferente das outras crianças. Ela me fez prometer que faríamos de você uma pessoa genuinamente gentil. Gentil e forte, ele disse. E aqui estou eu, chorando por um homem desprezível que se comporta como um menino mimado. Sim, é isso que ele é. A criança aqui não sou eu, definitivamente. Reviro-me na cama enorme até ser vencida pelo cansaço. Apago. Sonho que sou arrastada por correntes ao longo de um corredor sujo. Uso apenas o roupão e estou imunda dos pés até a cabeça. Ouço uma risada alta e maldosa, e procuro pelo seu dono. Mesmo sem ver, eu sei. É ele. — Venha, minha linda cadelinha — ele cantarola. — Quero fazer um casaco bem lindo com essa sua pele bonita. Eu grito. Acordo. E grito novamente. Capítulo 3 Agatha entra correndo, acompanhada de dois empregados. Estou sem fôlego, abraçada ao travesseiro. Fico repetindo para mim mesma que aquilo tudo foi só um pesadelo. Que está tudo bem. Que ninguém arrancará minha pele. Mas não paro de tremer. — Puxa vida, senhorita Rosie! Está ferida? Olho para Agatha. — Não. Foi só... um sonho bobo. Ela crispa os olhos. Então dispensa os empregados com um gesto e se aproxima da minha cama enquanto eles saem. Respiro fundo e paro de tremer. — Estou bem. — Rosie... — Agatha me encara, preocupada. Ao menos tenho ela para ser gentil comigo. Sacudo a cabeça. — Foi uma bobeira, estou bem. Ela suspira alto. — O patrão está bravo. Irado, na verdade. — Ela ri com sarcasmo. — Quem diria que Cruel DeVil tem tão pouca paciência com garotas... Arqueio as sobrancelhas. O nome... O nome dele é... — Você está brincando, Agatha? O nome dele é... Cruel? Ela arregala os olhos e cobre a boca. Então me dá um tapa na mão. — Nunca mais repita isso! — sibila. — Ele... ele não gosta do nome. Ninguém o chama assim. Franzo a testa. — Nem mesmo os pais? Os amigos? Agatha revira os olhos, como se estivesse entediada. — Que pais? Que amigos? — ela devolve minha pergunta, irritada. — O senhor DeVil não tem nada disso e é melhor que a senhorita nunca use essa informação contra ele porque são pouquíssimas as pessoas que sabem disso e eu não tenho permissão para sair contando a qualquer um... Então, ele é como eu. Toda aquela postura de superioridade esconde um cara solitário? É isso? Meu estômago ronca alto. Agatha faz cara feia. — Você perdeu o café da manhã, menina. Por isso o senhor DeVil está irritado. — Ele queria que eu comesse com ele? — Lógico que não. Ele reservou o nascer do sol para o seu café da manhã — Ela aponta para mim. — Agora a sala de jantar é só dele e de seus visitantes. Suspiro. Quero sumir. Que problemático! — Eu estava cansada — digo. — E posso muito bem tomar café da manhã na cozinha, não posso? Agatha arqueia as sobrancelhas. — Na cozinha? De jeito nenhum! Eu seria esfolada se permitisse isso. — Então, onde? — Vou trazer o seu café para cá, não se preocupe. Antes que eu possa protestar, ela sai e fecha a porta. Desço da cama e vou ao banheiro escovar os dentes. Encontro uma caixa fechada de escovas de dente cor-de-rosa novinhas, prontas para mim. — Que coisa ridícula. — Abro a caixa e pego uma escova. Enquanto escovo os dentes, penso que não quero ficar trancada no quarto — mesmo que tenha nele muita coisa para explorar. A casa DeVil é enorme e eu não vi quase nada dela. Além disso, qual seria a probabilidade do senhor DeVil topar comigo num castelo como este? Serei cuidadosa. Darei uma olhada em tudo e retornarei ao meu quarto sem que ele sequer sonhe que eu saí. Calço um par de pantufas brancas que encontrei ao lado da cama e prendo meus cabelos num rabo de cavalo alto. Tenho que sair antes que Agatha volte com a comida. Se ela me vir, me impedirá. Abro a porta e coloco a cabeça para fora. O corredor de quartos imenso está vazio. Deixo o quarto e fecho a porta atrás de mim silenciosamente, e então minha exploração começa. Caminho pelo corredor de portas brancas e tapete vermelho até topar com uma bifurcação à minha frente e com o topo da linda escadaria à minha esquerda. Não posso descer agora. Todo mundo deve estar lá embaixo, incluindo o senhor DeVil. Olho para a bifurcação e escolho abrir as portas duplas da direita. Elas dão para outro corredor, com um aparador em um canto e alguns quadro nas paredes. Sigo em frente e faço uma curva. Então, deparo-me com uma grande sala. Há um piano coberto num canto e algumas partituras debaixo dele. As janelas ocupam toda a parede principal e, se as cortinas escuras não estivessem fechadas, com certeza dariam para uma vista incrível. Há mais instrumentos, alguns que nunca vi e outros dos quais não lembro o nome. Vejo uma estante de livros cheia do chão ao teto e outra com caixas de papelão branco e porta-retratos. Uma vitrolinha empoeirada. Um divã de veludo vermelho. Uma mesa comprida e vazia. É um lugar desarrumado e bonito. Eu poderia passar horas aqui, fuçando em tudo. E é o que decido fazer. Escolho um livro persa de grandes gravuras e abro-o na mesa vazia. É enorme, cheio de mapas e desenhos coloridos tradicionais do país. Depois de ler um pouco, vou até o piano e descubro-o. Tem muita poeira. Toco uma tecla e um som agudo ecoa pela sala. Toco outra e sorrio. Eu sempre quis aprender a tocar piano. Talvez possa aprender a tocar sozinha, em segredo. Cubro o piano. Há mais na casa para explorar, mas preciso comer alguma coisa. Agatha já deve estar furiosa comigo, me procurando. Saio e fecho a sala, fazendo uma promessa a mim mesma de que voltarei o mais rápido possível. Refaço o caminho pelo qual vim, procurando pela escadaria e pelo corredor do meu quarto. Dobro duas esquinas. Não encontro. Retorno à porta da sala e refaço o caminho outra vez. Acabo indo parar em um banheiro. Essa não. Tento voltar à sala, mas outra vez tomo uma curva errada e acabo em outro corredor. E pronto. Estou completamente perdida. Você precisa manter a calma, é o que repito a mim mesma, incansavelmente, enquanto perambulo pelos corredores e curvas das entranhas da casa DeVil. Tudo é tão igual que nem mesmo um ou outro quadro ou aparador serve de referência. Estou ficando cansada e não tenho ideia de quanto tempo se passou desde que escapuli. Isso não pode estar acontecendo. Ele ficará furioso se descobrir que saí. Lembro-me de meu sonho. Das risadas do senhor DeVil. Não quero topar com ele por aí, tão desprevenida. Decido que na frente dele serei um iceberg. Ele não vai mais ter o gostinho de me causar medo ou constrangimento. Então preciso voltar, de algum jeito. Refaço o caminho até a sala do piano novamente, tentando me lembrar do lado para o qual virei. Paro diante da porta. Está aberta. Tenho quase certeza de que a fechei ao sair. Aproximo- me e dou uma olhada na sala, que parece exatamente como deixei. Devo mesmo ter esquecido a porta aberta. Viro-me para sair e bato com a testa em algo. Ou melhor dizendo, alguém. Olho para cima e vejo o senhor DeVil com os olhos azuis frios fixados em mim. Furioso. Sua mandíbula está rígida e seus dentes trincados. Sua expressão me lembra aquele momento agourento antes de uma tempestade: nuvens negras que cobrem tudo e sons distantes de relâmpagos rasgando o céu. Não sei o que dizer, por isso apenas olho para ele, consciente de quão mais alto e forte que eu ele é. Ouço meu coração martelar em meus ouvidos. Ele crispa os olhos e levanta a mão com a palma virada para mim. Encolho-me. E então sinto seus dedos na minha nuca, ele me puxa para mais perto. — O que... — Calada — ele rosna. Puxa-me pela nuca e tira-me da sala de uma maneira que poderia ser considerada abrupta. Mas não dói. Quase não presto atenção ao trajeto de volta ao meu quarto, tamanha a minha consciência daquela mão em minha pele. Estou formigando. Estou assustada e inquieta. Quero ver que tipo de expressão ele está fazendo, mas quando tento olhar, o senhor DeVil simplesmente me obriga a permanecer olhando para frente. Chegamos ao meu quarto. Agatha está parada à porta, fitando o chão. — Senhor... Ele a interrompe com um rosnado. — Vá — ordena. Agatha olha de soslaio para mim, preocupada. Arregalo os olhos. O que... ele...? — Agatha, vá — o senhor DeVil repete. Ela assente e nos deixa. Meu coração dispara. Agatha, não me deixe sozinha com ele! O senhor DeVil abre a porta do meu quarto e me empurra para dentro. Tropeço, mas permaneço de pé. Ele apoia os dois braços nos batentes da porta, como se estivesse me impedindo de sair. — Esta — ele começa a dizer, entre dentes —, é a minha casa e aqui as coisas são feitas do meu jeito. Se eu pegá-la perambulando pelos meus corredores outra vez, vou coloca-la para dormir com os cães! Arquejo. Eu não fiz nada errado. Sei disso. Mas por que ele age como se eu tivesse cometido um crime? — Por... — Minha voz sai em um fio. Pigarreio. — Por que eu não posso sair? Ele range os dentes. — Porque eu não quero ver você! — explode, aproximando-se de mim como uma onda gigante e raivosa. — Não quero que o que aconteceu hoje se repita, entendeu? Eu não quero ter absolutamente nada a ver com uma criancinha repugnante como você. Então, fique aqui e não saia até que eu diga que pode! Ele se vira para sair. Sinto meu peito esquentar. Minha respiração está acelerada. Pego um dos meus tênis do chão e, impulsivamente, atiro contra o senhor DeVil. O calçado acerta suas costas, pegando-o de surpresa. Ele olha para mim por cima do ombro, completamente perplexo. — Você... — eu digo, sentindo meus olhos encherem-se de água. — Qual é o seu problema? Por que você tem que ser tão cruel comigo? Antes que eu possa perceber, já disse. Aquilo soa como um trocadilho maldoso com o nome dele e eu vejo seus olhos acenderem em fúria. Um silêncio pesado invade o quarto. Droga. — Sua pequena... — ele rosna e dá um passo em minha direção. Como a covarde que sou, corro para o banheiro e me tranco. Cubro a boca com as duas mãos. Estou assustada comigo mesma. Esse tipo de atitude... não sou eu. Eu não sou agressiva, não costumo levantar a voz para ninguém. Então, por quê? Bem, então culpa é do senhor Devil. A culpa é de Cruel. Talvez, por estar exposta a arrogância e agressividade dele, eu esteja sendo contagiada. Gentil e forte. É o que meus pais queriam que eu fosse. Não importa o que aconteça, não posso deixar que essa convivência temporária com esse cara me mude. Não vou. Por isso não posso deixar ele me tirar do sério. Olho-me no espelho. Achei que estaria chorando, mas não estou. Devagar, abro a porta do banheiro e vasculho o quarto com os olhos. Ele foi embora. Sinto-me um pouquinho culpada por chama-lo de cruel sabendo que é o nome dele. Uma parte de mim lembra do que Agatha disse sobre ele não ter pais e amigos e odiar o próprio nome. Eu sei que é maldade fazer uso de algo tão pessoal contra ele. No entanto, minha outra parte me dá um tapinha nas costas e diz que Cruel mereceu. Agatha surge minutos depois com uma bandeja prateada e cheia de comida. Enquanto como na mesa de leitura, ela fica me enca...

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Comentarios a: Cruel - Bianca Ribeiro

Quem é você quando ninguém está olhando?

Procuramos sempre agir de forma correta quando nosso nome e nossa imagem estão em jogo. Mas quando ninguém está olhando, qual é a nossa atitude? Coragem, disciplina, visão, perseverança, amor virtudes de caráter em risco de extinção.

Quando ninguém está olhando sinopse?

Para manter de pé tanto o passado quanto o presente da comunidade, Sydney decide canalizar sua frustração planejando um passeio guiado em que pretende contar a verdadeira história do local. Só que, para tornar o projeto realidade, vai precisar aturar seu novo vizinho, Theo, como assistente.

Quantas páginas tem o livro quando ninguém está olhando?

No entanto, é muito mais profundo do que parece, carrega uma mensagem extremamente forte do que é o racismo e me tirou de uma baita ressaca literária: em um dia li 200 páginas e não estou fazendo charminho.

Quando ninguém está olhando Skoob?

Quando ninguém está olhando nos conduz por um enredo hipnotizante e surpreendente, que aborda com perspicácia a violência racial e as assimetrias sociais, em uma sequência de eventos instigantes que aos poucos dão forma a um cenário de completo horror.