O que se entende por novo imperativo transcultural dos direitos humanos?

O que se entende por novo imperativo transcultural dos direitos humanos?

A Declara��o dos Direitos Humanos na P�s-Modernidade

J. A. Lindgren Alves*

Sum�rio:

 

Introdu��o.
A quest�o da universidade.
A globaliza��o e as novas configura��es sociais.
A rejei��o do iluminismo.
Concilia��es poss�veis.
Os direitos humanos como valores transculturais.

1. Introdu��o

No curso de seu meio s�culo de exist�ncia, a Declara��o Universal dos Direitos Humanos, proclamada pelas Na��es Unidas em 1948, cumpriu um papel extraordin�rio na hist�ria da humanidade. Codificou as esperan�as de todos os oprimidos, fornecendo linguagem autorizada � sem�ntica de suas reivindica��es. Proporcionou base legislativa �s lutas pol�ticas pela liberdade e inspirou a maioria das Constitui��es nacionais na positiva��o dos direitos da cidadania. Modificou o sistema "westfaliano" das rela��es internacionais, que tinha como atores exclusivos os Estados soberanos, conferindo � pessoa f�sica a qualidade de sujeito do Direito al�m das jurisdi��es dom�sticas. Lan�ou os alicerces de uma nova e profusa disciplina jur�dica, o Direito Internacional dos Direitos Humanos, descartando o crit�rio da reciprocidade em favor de obriga��es erga omnes. Estabeleceu par�metros para a aferi��o da legitimidade de qualquer governo, substituindo a efic�cia da for�a pela for�a da �tica. Mobilizou consci�ncias e ag�ncias, governamentais e n�o-governamentais, para atua��es solid�rias, esbo�ando uma sociedade civil transcultural como poss�vel embri�o de uma verdadeira comunidade internacional.

� fato que nenhuma dessas conquistas se verificou sem controv�rsias e lutas. Nem mesmo os Estados redatores da Declara��o se dispuseram seriamente a cumpri-la desde o primeiro momento, conforme evidenciado nas resist�ncias � outorga de natureza obrigat�ria aos direitos nela definidos. Em contraste com os dois anos e meio transcorridos para a negocia��o e proclama��o da Declara��o, os dois principais tratados de direitos humanos � o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Pol�ticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econ�micos, Sociais e Culturais �, de car�ter compuls�rio para os respectivos Estados-partes, tamb�m negociados desde 1946, levaram vinte anos para ser aprovados na ONU (em 1966) e trinta para entrar em vigor no �mbito internacional (em 1976, ano em que obtiveram o n�mero de ratifica��es necess�rias). At� hoje n�o receberam a ades�o de todos os pa�ses.

Malgrado essas e outras dificuldades, n�o deixa de ser curioso que a Declara��o de 1948, com configura��o de manifesto, meramente recomendat�rio � simples pe�a de soft law, na terminologia anglo-sax� � tenha conseguido repercuss�o t�o generalizada quando era politicamente v�lido questionar sua universalidade. Mais paradoxal �, por�m, a situa��o em que se encontra agora.

Formalmente universalizados pela Confer�ncia de Viena de 1993, quando o fim da competi��o estrat�gica bipolar parecia propiciar-lhes a oportunidade de enorme fortalecimento, os direitos humanos se v�em atualmente amea�ados por m�ltiplos fatores. Alguns sempre existiram e, provavelmente, sempre existir�o. Decorrentes de pol�ticas de poder, do arb�trio autorit�rio, de preconceitos arraigados e da explora��o econ�mica, tais amea�as n�o s�o nem antigas, nem modernas; s�o praticamente eternas, podendo variar na intensidade e nas formas em que se manifestam. Outras, contudo, s�o � ou se apresentam como � novas, caracter�sticas do per�odo em que vivemos, sen�o exclusivas da d�cada presente, profundamente sentidas desde o fim da Guerra Fria. Mais dif�ceis de combater do que as amea�as tradicionais, os novos fatores contr�rios aos direitos humanos, insidiosos e efetivos, acham-se embutidos nos efeitos colaterais da globaliza��o econ�mica e no antiuniversalismo p�s-moderno do mundo contempor�neo. 

2. A quest�o da universalidade

Herdeira do Iluminismo, assim como a pr�pria ONU, a Declara��o de 1948 explicita, no pre�mbulo, sua doutrina. Esta se baseia no reconhecimento da "dignidade inerente a todos os membros da fam�lia humana e de seus direitos iguais e inalien�veis" como "fundamento da liberdade, da justi�a e da paz no mundo". Para que os Estados, a t�tulo individual e em coopera��o com as Na��es Unidas, cumpram plenamente o compromisso de promover o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais, assumido ao assinarem a Carta de S�o Francisco e recordado no pre�mbulo da Declara��o, "uma compreens�o comum desses direitos e liberdades" � reputada "da mais alta import�ncia".

Ao pre�mbulo se seguem trinta artigos. Nem todos s�o propriamente dispositivos. O artigo 1�, tamb�m doutrin�rio, afirma: "Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. S�o dotadas de raz�o e consci�ncia e devem agir em rela��o umas �s outras com esp�rito de fraternidade". O artigo 2� come�a por entronizar axiologicamente o princ�pio da n�o-discrimina��o de qualquer esp�cie (em fun��o de ra�a, cor, sexo, l�ngua, religi�o, opini�o pol�tica ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza ou qualquer outra condi��o), acrescentando: "Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e liberdades estabelecidos nesta Declara��o". Passando da afirma��o � linguagem imperativa, o mesmo artigo 2� determina adiante que "n�o ser� feita qualquer distin��o fundada na condi��o pol�tica, jur�dica ou internacional do pa�s ou territ�rio a que perten�a uma pessoa, quer se trate de um territ�rio independente, sob tutela, sem governo pr�prio, quer sujeito a qualquer outra limita��o de soberania". Essencial a um documento destinado a todos os seres humanos, num per�odo em que dois-ter�os da humanidade ainda viviam em regime colonial, foi essa determina��o do segundo par�grafo do artigo 2� � na verdade, uma auto-restri��o do Ocidente sobre sua atua��o nas col�nias, tantas vezes brutal � que permitiu � Declara��o de 1948 ser denominada Universal, e n�o apenas Internacional, como seria de esperar.1

Os direitos estabelecidos na Declara��o, embora freq�entemente violados, s�o hoje em dia amplamente conhecidos: � vida, � liberdade, � seguran�a pessoal; de n�o ser torturado nem escravizado; de n�o ser detido ou exilado arbitrariamente; � igualdade jur�dica e � prote��o contra a discrimina��o; a julgamento justo; �s liberdades de pensamento, express�o, religi�o, locomo��o e reuni�o; � participa��o na pol�tica e na vida cultural da comunidade; � educa��o, ao trabalho e ao repouso; a um n�vel adequado de vida, e a uma s�rie de outras necessidades naturais, sentidas por todos e intu�das como direitos pr�prios por qualquer cidad�o consciente. Controvertido, na qualidade de direito humano fundamental, o direito � propriedade, "s� ou em sociedade com outros", registrado no artigo 17, desagradava sobretudo aos pa�ses socialistas, enquanto os direitos econ�micos e sociais n�o se adequavam � ortodoxia liberal capitalista. A igualdade de direitos entre homens e mulheres, sobretudo no casamento (art. 16), assim como a proibi��o de castigo cruel (art. 5�) causavam, por sua vez, dificuldades a pa�ses mu�ulmanos de legisla��o n�o-secular. Nenhum dos dispositivos chegava, contudo, a ofender as tradi��es de qualquer cultura ou sistema sociopol�tico. Ainda assim a Declara��o dos Direitos Humanos foi submetida a voto, na Assembl�ia Geral da ONU, em 10 de dezembro de 1948, e aprovada por quarenta e seis a zero, mas com oito absten��es (�frica do Sul, Ar�bia Saudita e os pa�ses do bloco socialista).

Adotada sem consenso num foro ent�o composto de apenas 56 Estados, ocidentais ou "ocidentalizados"2, a Declara��o Universal dos Direitos Humanos n�o foi, portanto, ao nascer, "universal" sequer para os que participaram de sua gesta��o. Mais raz�o tinham, nessas condi��es, os que dela n�o participaram � a grande maioria dos Estados hoje independentes � ao rotularem o documento como "produto do Ocidente".

N�o tendo tido voz nas negocia��es pertinentes, porque eram quase todos col�nias ocidentais, os pa�ses afro-asi�ticos tinham raz�o, sim, em suas obje��es � Declara��o de 1948, assim como, em menor grau, os socialistas, que se abstiveram na vota��o (apesar de terem sido os principais propugnadores dos direitos econ�micos e sociais, por ela estabelecidos). Todos, por�m, deixaram de ter raz�o aos poucos, na medida em que os direitos consagrados pelo documento entraram gradativamente nas conci�ncias de seus nacionais3, auxiliando-os, inclusive, nas lutas pela descoloniza��o4. Deixaram de ter raz�o, tamb�m, pelo constante recurso que a ela sempre fizeram para a consecu��o de seus pr�prios objetivos internacionais, como na luta pela erradica��o do apartheid e em defesa da causa palestina. Perderam a consist�ncia, ainda, na medida em que foram aderindo, seletiva mas voluntariamente, a outros instrumentos internacionais nela baseados, como os dois Pactos Internacionais e as grandes conven��es de direitos humanos5 � nesses casos instrumentos jur�dicos obrigat�rios (hard law), que exigem ratifica��o e prev�em monitoramento.

O passo mais significativo � ainda que n�o "definitivo" � no caminho da universaliza��o formal da Declara��o de 1948 foi dado na Confer�ncia Mundial dos Direitos Humanos, realizada em Viena, em junho de 1993. Maior conclave internacional jamais reunido at� ent�o para tratar da mat�ria, congregando representantes de todas as grandes culturas, religi�es e sistemas sociopol�ticos, com delega��es de todos os pa�ses (mais de 170) de um mundo j� praticamente sem col�nias, a Confer�ncia de Viena adotou por consenso � portanto, sem vota��o e sem reservas � seu documento final: a Declara��o e Programa de A��o de Viena. Este afirma, sem ambig�idades, no artigo 1�: "A natureza universal desses direitos e liberdades n�o admite d�vidas".

� ineg�vel que o consenso alcan�ado nessa confer�ncia mundial exigiu longas e dif�ceis negocia��es, como � normal em eventos cong�neres. N�o houve, por�m, propriamente, imposi��es de parte a parte vencedoras, nem o documento se prop�e violar o �mago de qualquer cultura. Como assinala o artigo 5�, depois de reafirmar a interdepend�ncia e indivisibilidade de todos os direitos humanos: "As particularidades nacionais e regionais devem ser levadas em considera��o, assim como os diversos contextos hist�ricos, culturais e religiosos, mas � dever dos Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, independentemente de seus sistemas pol�ticos, econ�micos e culturais".

Se o artigo 5� da Declara��o de Viena pode soar insuficiente para militantes maximalistas e incongruente para quem n�o participou das negocia��es, ele n�o o parece ser para a maioria dos Estados que antes rejeitavam a Declara��o de 1948. Com rar�ssimas exce��es, os governantes afro-asi�ticos n�o t�m mais recorrido ao argumento da ocidentalidade dos direitos humanos,6 como tampouco o fazem os governos socialistas de qualquer quadrante. Quando pressionados por alega��es de viola��es, tais governantes procuram agora refut�-las com argumentos outros e n�o pelo apego a tradi��es culturais: justificam-nas pragmaticamente � luz de dificuldades internas, ou, mais construtivamente, reconhecem os problemas existentes, descrevendo os esfor�os empreendidos para resolv�-los7.

N�o � mais, portanto, desde 1993, pela �tica das doutrinas jur�dicas, nem da pol�tica em sentido estrito, que o conceito de direitos humanos universais vem sendo desacreditado. A linguagem de tais direitos � hoje, ao contr�rio, parte integrante e rotineira do discurso internacional. As amea�as mais s�rias � Declara��o de 1948 encontram-se em outras esferas. E s�o potencialmente mais nefastas, porque envoltas por iniciativas "racionalistas" no campo econ�mico e argumenta��es filos�ficas "emancipat�rias" bem-intencionadas. 

3. A globaliza��o e as novas configura��es sociais

Uma das contradi��es evidentes de nossa �poca consiste no vigor com que os direitos humanos entraram no discurso contempor�neo como contrapartida natural da globaliza��o, enquanto a realidade se revela t�o diferente. N�o � necess�rio ser "de esquerda" para observar o quanto as tend�ncias econ�micas e as inova��es tecnol�gicas t�m custado em mat�ria de instabilidade, desemprego e exclus�o social. Inelut�vel ou n�o, nos termos em que est� posta, e independentemente dos ju�zos de valor que se lhe possa atribuir, a globaliza��o dos anos 90, centrada no mercado, na informa��o e na tecnologia, conquanto atingindo (quase) todos os pa�ses, abarca diretamente pouco mais de um ter�o da popula��o mundial. Os dois-ter�os restantes, em todos os continentes, dela apenas sentem, quando tanto, os reflexos negativos.

As caracter�sticas da globaliza��o deste fim de s�culo s�o bastante conhecidas, assim como reconhecidos seus efeitos colaterais. A busca obsessiva da efici�ncia faz aumentar continuamente o n�mero dos que por ela s�o marginalizados, inclusive nos pa�ses desenvolvidos.8 Assim como a mecaniza��o da agricultura provocou o �xodo rural, inflando as cidades e suas periferias, a racionaliza��o atual da produ��o empurra os pobres ainda mais para as margens da economia, que n�o coincidem necessariamente com as periferias urbanas. Com a informatiza��o crescente da ind�stria e dos servi�os, o trabalho n�o-especializado torna-se sup�rfluo e o desemprego, estrutural. A m�o-de-obra barata, ainda imprescind�vel na produ��o, � recrutada fora do espa�o nacional, pelas filiais de grandes corpora��es instaladas no exterior, ou na acolhida � politicamente relutante � de estrangeiros imigrados.9 Nas sociedades ricas ou emergentes, o desmonte da previd�ncia p�blica, alegadamente necess�rio � gest�o estatal eficaz, transforma a exclus�o em contrapartida aceit�vel da competitividade nacional. Nas sociedades pobres, a atra��o de investimentos externos � fator de vida e morte. Os atrativos n�o s�o, contudo, suficientes para garantir a perman�ncia de capitais vol�teis, que podem sair de qualquer pa�s, do dia para a noite, em fun��o de problemas observados em outras partes do mundo. Como paliativo aos efeitos colaterais da globaliza��o, transfere-se � iniciativa privada e �s organiza��es da sociedade civil a responsabilidade pela administra��o do social. Estas, n�o obstante, funcionam apenas na escala de seus meios e de seu humanitarismo. Abandona-se, assim, a concep��o dos direitos econ�mico-sociais.

Enquanto para a sociedade de classes, da "antiga" modernidade, o proletariado precisava ser mantido com um m�nimo de condi��es de subsist�ncia (da� o Welfare State), para a sociedade eficientista, da globaliza��o p�s-moderna, o pobre � responsabilizado e estigmatizado pela pr�pria pobreza. Longe de produzir sentimentos de solidariedade, � associado ideologicamente ao que h� de mais visivelmente negativo nas esferas nacionais, em escala planet�ria: superpopula��o, epidemias, destrui��o ambiental, v�cios, tr�fico de drogas, explora��o do trabalho infantil, fanatismo, terrorismo, viol�ncia urbana e criminalidade.10 As classes abastadas se isolam em sistemas de seguran�a privada. A classe m�dia (que hoje abarca os oper�rios empregados), num contexto de inseguran�a generalizada, cobra dos legisladores penas aumentadas para o criminoso comum. Ou, sentindo os empregos e as fontes de remunera��o amea�adas, recorre a "bodes expiat�rios" na intoler�ncia contra o "diferente" nacional � religioso, racial ou �tnico � ou contra o imigrante estrangeiro (�s vezes simplesmente de outra regi�o do pa�s). Anulam-se, assim, os direitos civis.

O Estado, antes portador de mensagens idealmente igualit�rias e emancipat�rias, no socialismo e no liberalismo, al�m de garantidor confi�vel da conviv�ncia social, torna-se, p�s-modernamente, simples gestor da competitividade econ�mica, interna e internacional. Sem sentido de progresso humano, a pol�tica, desacreditada porque ineficaz, passa a ser vista com maus olhos, pois abriga "em sua natureza" distor��es deliberadas ou involunt�rias, assim como a possibilidade de corrup��o. A indiferen�a popular resultante leva ao absente�smo eleitoral, quando legalmente fact�vel,11 ou � compreens�vel falta de entusiasmo, em sistemas de voto obrigat�rio. Perdem o valor, dessa forma, os direitos pol�ticos, arduamente conquistado nas lutas da modernidade.

Desprovido de capacidade unificadora, tanto em decorr�ncia de abusos na instrumentaliza��o de "metanarrativas", quanto pela consci�ncia contempor�nea da "capilaridade do poder",12 o Estado nacional, como locus moderno da realiza��o social, perde gradativamente at� mesmo a fun��o identit�ria. O indiv�duo, muitas vezes discriminado dentro do territ�rio nacional pela parcialidade da implementa��o dos direitos humanos e liberdades fundamentais, vai buscar outros tipos de "comunidade" preferenciais como �ncoras de autoprote��o � ou, como se diz atualmente, para sua pr�pria autoconstru��o. Sem deixar de considerar-se nacional do pa�s de nascen�a, o negro dos Estados Unidos � sobretudo african american, o �ndio � native american, os homossexuais s�o gays and lesbians (alguns se identificam como membros de uma queer nation, diferenciada da "na��o" heterossexual), todos, justificadamente, assertivos e reivindicat�rios.13 A identifica��o prim�ria e "guetizada" tamb�m ocorre pela ascend�ncia heredit�ria cultural, como indiano, paquistan�s ou �rabe nas sociedades europ�ias e norte-americana, como meridional na It�lia do Norte, como mu�ulmano no mundo crist�o, como tibetano na China.

� claro que tais identifica��es s�o positivas e plenamente condizentes com a antidiscrimina��o prevista na Declara��o Universal dos Direitos Humanos. O problema se apresenta quando se transformam em fundamentalismos. Esses, uma vez exacerbados, levam � limpeza �tnica da B�snia, ao genoc�dio de Ruanda, � brutalidade dos "islamistas"14 argelinos, ao arca�smo desvairado e antifeminino dos talib�s do Afeganist�o. Podem, inclusive, "legitimar", em sentido contr�rio, o radicalismo "WASP" nos Estados Unidos, o anti-arabismo da direita francesa, o separatismo da Lega Lombarda, a xenofobia europ�ia, o ultranacionalismo fascist�ide, o isolacionismo reacion�rio, o antifeminismo masculino � hoje em dia bastante controlado em quase todo o Ocidente �, o anti-homossexualismo virulento, ainda presente em quase todo o planeta.

Grande parte das lutas identit�rias se deve, sem d�vida, na origem, ao princ�pio basilar da n�o-discrimina��o, e muitas das novas reivindica��es comunit�rias ainda se fundamentam an Declara��o Universal de 1948.15 Talvez por essa raz�o, nenhum dos grandes te�ricos da p�s-modernidade se tenha proposto negar a import�ncia do documento, embora seja fac�limo "desconstruir" seu texto.16 � ineg�vel, por�m, que a pr�pria no��o de p�s-modernidade, em qualquer sentido que se lhe d�, tende a enfraquecer seus objetivos. 

4. A rejei��o do iluminismo

Menos popularizada no Brasil do que a da "globaliza��o", mas amplamente difundida nas sociedades economicamente avan�adas, a no��o de uma "p�s-modernidade", complexa e utilizada para os fins mais d�spares, � outra que parece haver-se implantado solidamente na �poca contempor�nea. Desenvolvida em discuss�es acad�micas e pouco verbalizada no quotidiano da cidadania, a p�s-modernidade �, n�o obstante, detect�vel em pr�ticas pol�ticas e reivindica��es atuais.

Enquanto na modernidade os embates sociais se desenrolavam em nome da comunidade nacional, da afirma��o do "Homem" gen�rico e universal ou no contexto das lutas de classe, na p�s-modernidade as batalhas da cidadania s�o, muitas vezes, empreendidas em nome de uma comunidade de identifica��o menor do que o Estado nacional e diferente da classe social.17 Os Governos, por sua vez, de todos os quadrantes, assemelham-se a administradores de empresas, preocupados, sobretudo, ou apenas, com a efici�ncia da gest�o econ�mica � objetivo aparentemente imposs�vel enquanto perdurar a inexist�ncia de controle supranacional para as flutua��es do capital especulativo (de montante superior ao PIB de maioria esmagadora dos pa�ses).

Tal como o Poder "capilar" na interpreta��o de Foucault, a p�s-modernidade � algo que n�o se auto-anuncia, nem se personifica, e de que ningu�m propriamente se investe: ambos simplesmente se exercem, de maneira assumida ou sub-rept�cia. Para entend�-la, na acep��o aqui utilizada, basta compar�-la, em linhas muito gerais, � modernidade, que ela se prop�e superar.

Impulsionada pelo Iluminismo europeu, que atingiu seu �pice no pensamento de Kant, a modernidade cl�ssica se propunha racional, secular, democr�tica e universalista. A Raz�o era atributo da natureza humana. Ela emanciparia o Homem da subjuga��o pol�tica e social a que ele se auto-submetia pelo desconhecimento da Verdade.18 As sociedades, na medida em que rejeitassem seu substrato religioso, derrubariam o absolutismo desp�tico e alcan�ariam, com o Direito, o progresso e a liberdade. O Homem era, pois sujeito da Hist�ria. E os direitos humanos, conforme definidos por Locke � para a Revolu��o Americana � e com aportes de Rousseau � para a Revolu��o Francesa � eram, e s�o ainda, instrumentos important�ssimos para a consecu��o da liberdade, da igualdade e da fraternidade, herdados do "S�culo das Luzes".

As qualifica��es dessa trajet�ria humanista fulgurante come�aram cedo, dentro do pr�prio Iluminismo, com Hegel, Herder e muitos outros pensadores. Para Marx, no s�culo passado (e grande parte do s�culo presente), o Homem fazia sua Hist�ria, mas n�o em circunst�ncias por ele pr�prio escolhidas.19 Marx foi o primeiro a recorrer claramente � no��o de estrutura � econ�mica � como fator limitativo da liberdade humana (a ser conquistada pela Revolu��o). F�-lo, por�m, dentro da l�gica do racionalismo universalista � no caso, materialista � de que foi herdeiro assumido e propulsor. J� Nietzche, pela �tica da cultura, com recurso � genealogia da moral e a an�lises epistemol�gicas diversas, abriu o caminho para o p�s-modernismo filos�fico, desmontando, de maneira assistem�tica mas firme, o racionalismo iluminista e a �tica (alegadamente mesquinha e ilus�ria) que este disseminava.

Enquanto tais desenvolvimentos de longo curso ocorriam mais sensivelmente no pensamento social, Freud, na passagem do S�culo XIX para o atual, demonstrou, com o estudo do inconsciente, que o Homem n�o era uno nem aut�nomo, modificando substantivamente a compreens�o da personalidade individual. Saussure, por sua vez, ao estudar a ling��stica, identificou as rela��es de signos e estruturas de linguagem que condicionam o conhecimento. Lan�avam-se, assim, as bases para a "desconstru��o do sujeito".

N�o � preciso fazer invent�rio das contribui��es dos diversos te�ricos influentes � estruturalistas, modernos e p�s-modernos � para se chegar a um entendimento elementar da no��o de p�s-modernidade que hoje se faz presente nas pr�ticas sociais. Nem tampouco relacionar todas as formas hist�ricas de instrumentaliza��o e manipula��o distorcidas da racionalidade iluminista, particularmente em nosso s�culo, para se compreender seu questionamento. Vale a pena, sim, recordar que Jean-Fran�ois Lyotard, em 1979, deu ao termo "p�s-modernidade" sua aplica��o mais corrente, ao diagnosticar o fim das Grandes Narrativas � da Raz�o, da Emancipa��o e do Progresso humanos � como meios necess�rios de legitima��o do conhecimento, passando este a ter objetivos meramente "perform�ticos", dentro de uma realidade sist�mica.20 Por menos agrad�vel que o seja, a observa��o das caracter�sticas atuais da globaliza��o tende a confirmar esse diagn�stico.

Uma vez aceito o entendimento, hoje em dia generalizado, de que o homem e a mulher, em sua realidade mental e corp�rea, s�o seres constru�dos dentro da cultura � ou, no dizer de Foucault, da episteme � em que vivem, n�o tendo uma natureza universal, e de que o conhecimento � inelutavelmente determinado pelas estruturas (econ�micas, sociais, culturais e ling��sticas), nenhuma das quais � comum a todos os indiv�duos, a verdade se relativiza. A Raz�o do Iluminismo �, assim, substitu�da, no m�ximo, por "raz�es" espec�ficas. O poder, sendo mais do que o atributo da pol�tica e tendo uma microf�sica que o distribui em pr�ticas disciplinares rotineiras, n�o � e n�o pode ser exercido com finalidade emancipat�ria. Sem Grandes Narrativas, explicativas ou justificat�rias, a Hist�ria tamb�m deixa de existir como totalidade, com sentido de progresso, sendo substitu�da por "hist�rias" localizadas.

O ser humano "desconstru�do" pela psican�lise, pela ling��stica e pela etnologia � as tr�s "contraci�ncias" apontadas por Foucault �, pelos diferentes jogos de linguagem e "micronarrativas" simult�neas � identificados por Lyotard �, pelos "textos" em que se insere, dentro de uma intertextualidade sem fim � na interpreta��o de Derrida � n�o pode ipso facto ser sujeito. Para se autoconstituir como indiv�duo, necessita recorrer a identidades v�rias. A identifica��o vai privilegiar a "comunidade", real ou imagin�ria, imposta ou selecionada, como espa�o de realiza��o. Este n�o corresponde ao Estado nacional, outra heran�a ideol�gica do Iluminismo, com seu poder/saber disciplinador, nem �s classes sociais do marxismo, modificadas na composi��o ou seduzidas pelo capitalismo "de consumo". Mas se, por um lado, a comunidade nacional � atualmente inconsistente, a classe social um elemento fluido e as comunidades transnacionais espec�ficas simplesmente embrion�rias, por outro lado uma comunidade internacional abrangente, al�m de ut�pica, estaria em contradi��o com os particularismos de cada um. O local se sobrep�e, assim, ao geral, e os interesses se particularizam.

Na p�s-modernidade, o eterno passa a ser contingente; o universal, ilus�rio e a metaf�sica, uma inven��o sem sentido. Esboroa-se, portanto, a id�ia de fundamentos para a pol�tica, o Direito e a �tica. Tudo passa a ser relativo, localizado e ef�mero. � nessa situa��o que se desenvolvem � ou se esmaecem � os confrontos pol�tico-sociais, tendo por pano-de-fundo uma tecnologia "perform�tica", um conhecimento elusivo e uma globaliza��o excludente.

Como justificar, nessas condi��es, a atualidade da Declara��o Universal dos Direitos Humanos, erigida sobre fundamentos iluministas, racionais e humanistas, num somat�rio (desequilibrado) de insumos das correntes liberal e socialista da modernidade? Como defender a id�ia de "direitos iguais e inalien�veis como fundamento da liberdade e da paz no mundo"? Como insistir da afirma��o de que "todas as pessoas s�o dotadas de raz�o e consci�ncia e devem agir em rela��o umas �s outras em esp�rito de fraternidade"? Como universalizar tais direitos, constru�dos historicamente na tradi��o ocidental, sem conferir-lhes fei��es imperialistas? Tais perguntas, atual�ssimas, n�o comportam respostas f�ceis. J� ocasionaram in�meros estudos, nenhum dos quais definitivo.21 O que se procurar� em seguida � fazer um breve esbo�o, superficial e apenas ilustrativo, das concilia��es tentadas, para sugerir um curso de a��o mais intuitivo do que "cient�fico", mais pragm�tico do que "fundamentado". E, por isso mesmo, talvez, rotul�vel at� de "p�s-moderno". 

5. Concilia��es poss�veis

Nos dias de hoje, embora a maior parte das rejei��es categ�ricas � Declara��o Universal dos Direitos Humanos ainda parta de l�deres pol�ticos nacionais � em contradi��o com o texto da Declara��o de Viena por eles pr�prios subscrita em 1993 � com o claro objetivo de justificar viola��es deliberadas em a��es governamentais, o anti-universalismo vigente no pensamento social contempor�neo tamb�m p�e, muitas vezes, em quest�o, a validade desse documento. E o faz com objetivos alegadamente emancipat�rios, ciente ou inconciente de que o particularismo "de esquerda" acaba fortalecendo a brutalidade antidemocr�tica da direita mais reacion�ria. Radicaliza��es desse tipo de atitude supostamente libert�ria podem ser vistos seja entre etn�logos ocidentais demasiado apaixonados pelas culturas n�o-europ�ias estudadas,22 seja entre ativistas sociais "de base" que rejeitam o Estado nacional pelos malef�cios provocados junto a popula��es "colonizadas" em nome da cidadania moderna,23 seja entre militantes maximalistas de movimentos identit�rios que, na busca de aperfei�oamentos leg�timos para a Declara��o de 1948, naturalmente imperfeita, involuntariamente abrem o caminho para sua destrui��o.24

Mais prudentes e mais construtivas t�m sido as variadas tentativas de compatibiliza��o entre o particularismo das culturas diversas e o que h� de efetivamente universal na id�ia dos direitos fundamentais. Essa tarefa intelectual � complexa, na medida em que a pr�pria no��o de direitos, assim como a de indiv�duo, � oriunda do Ocidente. As culturas n�o-ocidentais, como � sabido, sempre acentuaram os deveres, privilegiando o coletivo sobre o pessoal, fosse em prol da "harmonia" social, fosse em defesa da ordem e da autoridade, religiosa ou secular, n�o importando sua arbitrariedade ou o grau de sofrimento exigido na vida de cada um.

As tentativas de concilia��o entre os direitos humanos e as tradi��es "pr�-modernas" t�m sido desenvolvida h� tempos, por pensadores de todos os continentes, propondo-se solu��es variadas: assimila��o dos direitos individuais aos ensinamentos crist�os sobre a dignidade e a fraternidade humanas; interpreta��o atualizada e reforma da sharia isl�mica; incorpora��o dos direitos humanos no dharma da tradi��o hindu; ado��o de uma "hermen�utica diat�pica", que, atrav�s do auto-reconhecimento da incompletude de toda e qualquer cultura, preencha reciprocamente as lacunas encontradas em cada uma com complementos alheios (proposta por Boaventura de Sousa Santos25); a��o intercultural comunicativa em busca de consensos �ticos (conforme a teoria de Habermas) e uma infinidade de outras id�ias centradas no multiculturalismo.

A aceita��o do multiculturalismo, como contrapartida � rejei��o do humanismo universalista, �, ali�s, sen�o o "fundamento", o objetivo essencial do pensamento p�s-moderno. Este, como se sabe, deve-se em grande parte � autocr�tica da cultura ocidental feita por alguns de seus filhos mais l�cidos, conhecidos como p�s-estruturalistas, todos impulsionados, em princ�pio, por aquilo que Foucault identificava como sua pr�pria "impaci�ncia pela liberdade".26 O problema com esse processo de auto-esclarecimento cr�tico, em continuidade com a ilustra��o emancipat�ria dos S�culos XVIII e XIX, � que o af� denunciador das distor��es do racionalismo ocidental terminou por desacreditar o Iluminismo como um todo, os fundamentos igualit�rios do humanismo universalista, assim como o sentido de progresso que inspirava as lutas pol�ticas e sociais da Idade Moderna, no Ocidente como no Oriente, no Norte como no Sul.27

Cientes do desafio que suas an�lises "superadoras" do Iluminismo cl�ssico representam para a pr�tica pol�tica e intuitivamente conscientes da for�a liberadora da luta pelos direitos humanos, os p�s-estruturalistas conseq�entes, "pais" quase sempre relutantes da p�s-modernidade te�rica, esfor�am-se por demonstrar, com maior ou menor vigor, o car�ter n�o-niilista de suas interpreta��es. Procuram apontar sa�das para as camisas de for�a por eles identificadas nas metanarrativas do Iluminismo e para os impasses a que levam suas cr�ticas arrasadoras. Tentam, assim, conciliar o fim do universalismo, por eles incriminado, com a id�ia de justi�a, a irredutibilidade particularista das estruturas de consci�ncia com a no��o de direitos humanos, a capilaridade do poder/saber com a luta pela identidade aut�noma, a aceita��o do contingente como meio para a obten��o de progresso, a substitui��o das Grandes Narrativas por microdiscursos capazes de levar � liberdade aut�ntica. Para Derrida, por exemplo, "inventor" da desconstru��o dos textos iluministas (e da afirma��o de que tudo � "texto"), "nada parece menos obsoleto do que o ideal cl�ssico emancipat�rio" (sic).28 A justi�a, "se alguma coisa desse tipo existe, fora e al�m do direito, n�o � desconstrut�vel". O Direito, sim, pode e deve ser desconstru�do, pois "a desconstru��o � a justi�a"29. A Justi�a n�o � por�m uma categoria universal, e sim uma constru��o das diversas culturas. Na mesma dire��o, Lyotard afirma a import�ncia das micronarrativas, no lugar do "metadiscurso" universalizante da Justi�a, como �nica maneira de se evitar a imposi��o "terrorista" de um jogo de linguagem majorit�rio sobre a voz das minorias oprimidas.30 O fundamental � sempre respeitar "o outro", e "a comunidade nele presente como capacidade e promessa".31 Mais diretamente incidentes sobre a no��o de Justi�a, al�m de mais eficazes na realidade social, as an�lises de Foucault, movidas por sua �nsia liberat�ria, sobre a capilaridade do poder com sua microf�sica disciplinar e sobre o car�ter repressivo do Direito e do Estado modernos oferecem, sem d�vida, respaldos importantes para a constitui��o das novas "comunidades" infra e transnacionais antes referidas, assim como para a afirma��o de direitos identit�rios � ou do "direito � diferen�a" � como contrapartida assertiva �s discrimina��es sofridas.

Outros te�ricos autodeclarados p�s-modernos t�m, n�o obstante, entendimento distinto de toda essa evolu��o. Conforme explicita Terry Eagleton (sem com isso necessariamente concordar), a pr�pria express�o "direitos humanos" causa embara�o duplo, com cada uma das duas palavras, ambas pertencentes a um horizonte superado de "humanismo metaf�sico, estrategicamente utiliz�vel, mas ontologicamente sem fundamento".32 Talvez um pouco por isso, por concordar com a cr�tica de Derrida ao logocentrismo masculino � ou "falogocentrismo" � do Iluminismo ocidental, o american�ssimo Richard Rorty prop�e pragmaticamente uma abordagem por ele denominada "feminina", afetiva e n�o-racionalista, � educa��o para os direitos humanos. Segundo Rorty, na medida em que nenhuma pessoa imune aos ensinamentos kantianos se reconhece apenas como ser humano, de valor igual ao do diferente, e sim como integrante de um grupo melhor do que os outros, ao inv�s de se apelar para fundamentos humanistas na persuas�o contra as discrimina��es, mais �til � apelar-se para os sentimentos individuais: devo tratar bem o estrangeiro, n�o por ser ele moralmente igual a mim, mas porque ele ou ela est� longe de sua gente, porque sua m�e est� sofrendo ou porque pode um dia vir a tornar-se meu genro ou minha nora.33

Dessas tentativas te�ricas � assim como de outras cong�neres � � dif�cil extrair justificativas concretas para a atualidade da Declara��o Universal dos Direitos Humanos. O pragmatismo de Rorty pode ser eficaz em certas situa��es espec�ficas, mas aniquila a no��o de direitos. Se o pragmatismo � importante para que os direitos humanos deixem de ser somente uma utopia, outras possibilidades igualmente pragm�ticas existem. E v�m, h� muito, sendo tentadas, com resultados vis�veis. 

6. Os direitos humanos como valores transculturais

Muito antes da emerg�ncia das teorias p�s-estruturalistas e p�s-modernas, a doutrina jusnaturalista, com a postula��o de "direitos naturais", j� havia perdido sua antiga preemin�ncia. Os direitos, todos, no Direito Interno e no Direito Internacional, s�o reconhecidos, h� d�cadas, como conquistas hist�ricas, que extrapolam fundamenta��es metaf�sicas, religiosas ou seculares, e se adaptam �s necessidades dos tempos. Por isso, e somente no sentido de uma progress�o temporal n�o-valorativa, � poss�vel falar-se nas diferentes gera��es de direitos humanos, em que os direitos econ�micos e sociais, de segunda gera��o, consagrados na doutrina jur�dica posteriormente aos direitos "lockeanos", mas devidamente inclu�dos na Declara��o Universal dos Direitos Humanos, igualam-se em import�ncia aos direitos civis e pol�ticos, de primeira gera��o.34 Sem perder de vista essa conhecida evolu��o doutrin�ria do Direito e tendo-se em conta as transforma��es hist�ricas ocorridas no mundo desde 1948, o fato de que a Declara��o proclamada como Universal pelas Na��es Unidas tenha resistido inc�lume, por meio s�culo, com ades�o crescente at� agora, � algo a ser seriamente considerado.

Como j� assinalava Bobbio em 1964: "O problema fundamental em rela��o aos direitos do homem, hoje, n�o � tanto o de justific�-los, mas o de proteg�-los. Trata-se de um problema n�o-filos�fico, mas pol�tico".35 N�o h� d�vida de que Bobbio tinha raz�o ao fazer tal afirma��o. Afinal, s�o os pol�ticos que decidem, motu proprio ou sob press�o, promover � ou n�o � o respeito pelos direitos humanos. O problema que se colocou com a modernidade � que os argumentos dos fil�sofos, longe de justificar os direitos fundamentais consagrados na Declara��o, podem representar, nas m�os de l�deres pol�ticos e religiosos a eles contr�rios, instrumentos legitimantes para sua rejei��o. Se os direitos s�o uma inven��o intransfer�vel da cultura ocidental, ela pr�pria injusta e apenas dissimuladamente libert�ria, como se pode coerentemente impedir os talib�s de enclausurarem as mulheres afeg�s? Como exigir dos aiatol�s iranianos que aceitem a comunidade bahai, proscrita em sua Constitui��o? Como exigir a revoga��o da fatwa de execu��o contra o escritor Salman Rushdie, se uma fatwa religiosa � irrevog�vel por defini��o?36 Como promover a liberdade de cren�a e de express�o se a sharia isl�mica fundamentalista prev�, at� mesmo, a crucifica��o de ap�statas? Como condenar a repress�o aos dissidentes chineses e norte-coreanos, quando o confucionismo, muito mais do que qualquer tipo de "socialismo", imp�e como valor crucial a obedi�ncia � autoridade? A resposta n�o necessita ser metaf�sica, nem necessariamente "imperialista". Ela pode ser hist�rica e condizente com o Direito Internacional.

A persist�ncia da Declara��o Universal ao longo de cinq�enta anos comprova de per si que, independentemente de suas origens, os valores positivos de uma cultura podem, sim, ser transferidos de boa-f�, sem viola��o dos c�nones essenciais de cada civiliza��o (os valores negativos, como "as hist�rias" demonstram, s�o assimilados com enorme facilidade). A maioria esmagadora dos pa�ses que acederam � independ�ncia ap�s a proclama��o da Declara��o Universal dos Direitos Humanos n�o teve dificuldades para aceitar seus dispositivos, incorporando-os, inclusive, na legisla��o dom�stica. N�o o fizeram por imposi��o imperialista. Fizeram-no porque reconheciam a import�ncia da Declara��o Universal na luta anticolonialista. Fizeram-no porque queriam alcan�ar n�o somente a autonomia pol�tica, mas tamb�m a modernidade. A observ�ncia efetiva dos direitos humanos nas pol�ticas e pr�ticas desses e de todos os demais Estados � uma outra quest�o.

A justa valoriza��o do dharma hindu�sta por Gandhi n�o impediu seus seguidores de adotarem na �ndia independente o sistema democr�tico, de abolirem legalmente as castas e de estimularem o conceito dos direitos humanos. Com exce��o da Ar�bia Saudita, praticamente todos os pa�ses mu�ulmanos adotaram, no passado recente, sem maiores problemas, c�digos penais e civis n�o-estritamente vinculados � sharia � corpo doutrin�rio de regras oriundo de interpreta��es cor�nicas dos primeiros s�culos do Isl�, mas n�o procedente de Maom�. A reinstaura��o obsessiva da sharia "sagrada" como c�digo legal � com a inferioriza��o jur�dica da mulher e os castigos corporais contr�rios, em princ�pio, ao artigo 5� da Declara��o � � fen�meno recente, estimulado pela revolu��o iraniana de 1979 e acelerado na d�cada presente com o fortalecimento dos movimentos fundamentalistas. Mas estes n�o s�o exclusividade das culturas mu�ulmanas. Podem ser detectados, nas esferas religiosas e profanas, em praticamente todo o mundo, inclusive nas sociedades ocidentais desenvolvidas. Mas do que um acidente de percurso, uma regress�o incidental � pr�-modernidade arcaica, eles representam uma compensa��o ideol�gica "p�s-moderna" para o fim dos metadiscursos seculares e para o fundamentalismo econ�mico do culto do mercado.

Ademais de inspirar, ainda, a maioria das legisla��es dom�sticas e as lutas reivindicat�rias de todos os oprimidos, a Declara��o Universal dos Direitos Humanos serve de base a um expressivo corpus de tratados e mecanismos internacionais a que os Estados aderem volitivamente. Na medida em que se imp�e por op��o volunt�ria das diferentes culturas, nada tem ela de efetivamente "imperialista". Como observa o Embaixador Gilberto Sab�ia, que coordenou as negocia��es da Confer�ncia Mundial sobre Direitos Humanos de 1993: "O consenso obtido em Viena, em toda a sua fragilidade, torna poss�vel esperar a supera��o das resist�ncias e a afirma��o da realizabilidade dos direitos humanos".37

Enquanto os direitos humanos se apresentam hoje, ap�s a Confer�ncia de Viena, "universalizados" pelo consenso de todos os Estados, eles se afiguram ainda mais como valores transculturais atual�ssimos ao se observar o procedimento, nacional e internacional, das ONGs a eles dedicadas. � com base na Declara��o Universal de 1948 e nos tratados e declara��es por ela propiciados que todas essas organiza��es privadas das mais diversas origens � fen�meno tamb�m planet�rio do mundo contempor�neo � procuram promover seus objetivos p�blicos, na �rea dos direitos individuais dentro de cada Estado, ou na defesa dos direitos coletivos de grupos espec�ficos.

Se, conforme ensina Foucault, o Direito foi inventado como uma forma de legitima��o do poder estatal na "Idade Cl�ssica", deixariam os direitos humanos de ser uma afirma��o do indiv�duo contra esse mesmo poder? Talvez sim, talvez n�o, dentro do contexto da Revolu��o Francesa, em sua fase napole�nica. Mas n�o numa �poca como a nossa, em que tais direitos s�o reconhecidos internacionalmente e se tornam pass�veis de cobran�as internas e interestatais, limitando significativamente o arb�trio do poder constitu�do. Mas ainda, com as interpreta��es a eles conferidas pelas Declara��es de Viena de 1993 e de Beijing de 1995, deixariam de ser dirigidos apenas contra o Estado. Ao proteger mais claramente os direitos da mulher, das crian�as, dos ind�genas e das minorias oprimidas dentro das sociedades nacionais, os direitos humanos tornaram-se tamb�m instrumentos contra a "capilaridade do poder", exercido por agentes n�o-estatais. E cabe n�o somente ao Estado, mas � sociedade como um todo, a obriga��o de evitar a viola��o difusa desses direitos espec�ficos.

Se, conforme Derrida, a Justi�a � uma refer�ncia indefinida para a aplica��o do Direito e uma aporia que se imp�e mas n�o pode ser legalmente prescrita na forma de direitos e deveres,38 a Declara��o de 1948, com seu formato de manifesto, pode, ao menos, oferecer algum tipo de baliza. Afinal, nela se banham, atualmente, em maior ou menor grau, praticamente todas as civiliza��es. Da mesma forma, tendo em conta as preocupa��es de Lyotard, a Declara��o pode ser vista, desde sua "universaliza��o" pela Confer�ncia de Viena e pelo recurso que a ela fazem as minorias "sem voz", como um instrumento aceit�vel de converg�ncia de todas as micronarrativas e jogos de linguagem.

At� mesmo, portanto, para os p�s-estruturalistas convictos ou p�s-modernos exigentes, a Declara��o Universal dos Direitos Humanos abre caminhos inestim�veis. Na mesma medida em que o p�s-estruturalismo se prop�e emancipat�rio, o multiculturalismo que ele justificadamente endossa n�o pode ser indiferente �s opress�es de culturas extra-ocidentais. Nem pode a p�s-modernidade, como continua��o ou supera��o do racionalismo humanista, tornar-se fundamentalista, aceitando como inelut�veis as crueldades aberrantes de qualquer comunidade, ou do integrismo eficientista do mercado globalizado.

A cinq�enten�ria Declara��o Universal dos Direitos Humanos n�o � uma f�rmula m�gica, nem um dec�logo sacrossanto. Seu pre�mbulo e seu artigo 1� soam hoje, em d�vida, demasiado metaf�sicos. Segundo os ensinamentos dominantes no pensamento contempor�neo, as pessoas n�o nascem "livres e iguais" em nenhuma parte do planeta, nem comp�em propriamente uma "fam�lia humana". A realidade demonstra tamb�m que os direitos nela entronizados n�o s�o consistentemente respeitados em nenhuma comunidade, nacional ou eletiva, real ou imagin�ria. Mas o Direito �, afinal, um discurso normativo que apenas aspira a conformar a realidade. Dada a for�a persuasiva e liberat�ria que ela tem demonstrado, ao longo de cinco d�cadas, para indiv�duos e coletividades, a Declara��o de 1948 precisa ser mantida como est�. Rediscuti-la seria abrir uma caixa de Pandora, em momento prop�cio para todos os dem�nios.

Sem manipula��es esdr�xulas, a Declara��o dos Direitos Humanos precisa, sim, ser fortalecida, como o foi nas grandes confer�ncias desta d�cada, de Viena (sobre direitos humanos), Cairo (sobre popula��o), Copenhague (sobre desenvolvimento social), Beijing (sobre a mulher) e Istambul (sobre assentamentos humanos),39 naquilo que ela procura ser: um m�nimo denominador comum para um universo cultural variado, um par�metro bem preciso para o comportamento de todos, um crit�rio de progresso para as contig�ncias desiguais de um modo reconhecidamente injusto, um instrumento para a consecu��o dos demais objetivos societ�rios sem que estes desconsiderem a dimens�o humana.

Apesar de seu tamanho limitado, A Declara��o Universal dos Direitos Humanos �, ainda, e deve permanecer, uma Grande Narrativa. Na condi��o p�s-moderna deste final de mil�nio, ela parece ser a �nica que resta.

_________

* Jos� Augusto Lindgren Alves � diplomata, C�nsul Geral do Brasil em S�o Francisco, Estados Unidos, ex-Diretor Geral do Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais do Minist�rio das Rela��es Exteriores.

1. Conforme proposi��o de Ren� Cassim (v. M. Glen Johnson, Writing the Universal Declaration of Human Rights, In: The Universal Declaration of Human Rights: 45th anniversary 1948-1993, UNESCO, 1994, p. 67-68). A Declara��o de 1948 � o �nico instrumento de direitos humanos que se autoproclama "universal"; todos os demais s�o intitulados "internacionais".

2. O Movimento dos N�o-Alinhados n�o existia; a China presente era a Rep�blica insular de Chang Kai-chek; o L�bano era governado por crist�os; a �ndia acabava de tornar-se independente e a Am�rica Latina n�o tinha ainda qualquer posi��o terceiro-mundista (a pr�pria no��o de "Terceiro Mundo" n�o existia).

3. Para se aquilatar, ainda que de maneira imprecisa, o grau de absor��o da no��o de direitos humanos pelas popula��es n�o-ocidentais basta observar a quantidade de ONGs afro-asi�ticas que atualmente acompanhavam as delibera��es da Comiss�o dos Direitos Humanos das Na��es Unidas, sua atua��o nos foros paralelos das grandes confer�ncias internacionais e as den�ncias de viola��es em pa�ses pr�prios ou alheios encaminhadas por elas, regularmente, ao Secretariado da Alta Comiss�ria para os Direitos Humanos, em Genebra.

4. O direito dos povos � autodetermina��o, com que se abrem os dois Pactos Internacionais de Direitos Humanos, foi o primeiro "direito de terceira gera��o" acolhido no Direito Internacional. Isso se explica porque a autodetermina��o da respectiva comunidade era, e ainda �, reputada essencial � vig�ncia efetiva dos demais direitos.

5. No caso da Conven��o Internacional sobre a Elimina��o de Todas as Formas de Discrimina��o Racial, os pa�ses afro-asi�ticos, foram, de fato, os iniciadores. Nas demais, o grau de ades�o � vari�vel, embora tenham participado da elabora��o de todas, entusiasticamente ou a contragosto. A Conven��o sobre os Direitos da Crian�a, de 1989, � a �nica que j� obteve ratifica��o praticamente universal: faltam apenas as da Som�lia, pa�s esfacelado por guerras intestinas, e dos Estados Unidos.

6. A exce��o mais insistente � do Primeiro Ministro da Mal�sia Mahathir Mohamad, que em 1997 ainda propunha a elabora��o de uma nova Declara��o.

7. Um exemplo not�vel desse tipo de atua��o construtiva tem sido o das campanhas hoje realizadas por pa�ses africanos para a erradica��o da pr�tica "cultural" da clitoridectomia. O exemplo � tanto mais significativo quando se leva em conta que personalidades hist�ricas da estrutura de um Jomo Kenyata e outros her�is da luta anticolonial inclu�am tal tradi��o no ativo cultural de sua gente � assim como o fazem ainda hoje im�s "integristas" do mundo mu�ulmano.

8. Os pr�prios Estados Unidos, em fase de expans�o econ�mica e desemprego decrescente, ostentam hoje um n�mero de mendigos incomum nas d�cadas passadas, al�m de uma popula��o carcer�ria de mais de um milh�o e meio (a maior do mundo).

9. Na verdade, n�o � apenas a ind�stria tradicional que se extraterritorializa em busca de m�o-de-obra barata. A da inform�tica tamb�m o faz, quando isso lhe � vantajoso, seja exportando f�bricas de hardware, seja importando quadros especializados ou especializ�veis. A maior batalha do Vale do Sil�cio californiano com o Congresso norte-americano tem sido para aumentar a quota de imigra��o de especialistas, particularmente indianos, capazes de suprir suas necessidades a custos baixos.

10. Os estere�tipos s�o recorrentes. A superpopula��o � sempre asi�tica ou latino-americana. A origem da AIDS tinha que ser africana. O garimpeiro brasileiro � mais daninho ao meio-ambiente do que as ind�strias e o consumo dos pa�ses superindustrializados. O negro e o asi�tico fumam, bebem e se drogam mais do que o branco. A responsabilidade pelo narcotr�fico � a produ��o do Terceiro Mundo, n�o a demanda universal. Os pais de fam�lias miser�veis que p�em os filhos para trabalhar ou se prostituir fazem-no, provavelmente, porque s�o malvados. O fanatismo religioso � particularidade de povos primitivos, fora da civiliza��o judaico-crist�, pois os integrismos protestantes, cat�lico e israelita s�o, com certeza, sadios. O terrorismo � fen�meno quase sempre mu�ulmano, enquanto a Ku-Klux-Klan, as "mil�cias" norte-americanas e o neonazismo europeu s�o tolerados e legais. O Rio de Janeiro, com sua popula��o favelada, �, naturalmente, a cidade mais violenta do mundo.

A criminalidade comum realmente n�o tem estere�tipos de localiza��o privilegiada. Mas tanto nas sociedades ricas, como nas emergentes, � vista de forma reducionista como "coisa de pobres", desconsiderando-se como irrelevante o fato de serem eles tamb�m as v�timas mais numerosas. Desconsideram-se, tamb�m, como menos amea�adores os crimes "de colarinho branco", n�o obstante o raio incomparavelmente maior de seu alcance.

11. Nas elei��es prim�rias estaduais para o Senado dos Estados Unidos, em setembro de 1998, apenas 17% do eleitorado do Estado de Nova York compareceram �s urnas; 20% de Minnesota e 30% do estado de Washington, segundo dados publicados no San Francisco Examiner, edi��o de 17.9.1998, em mat�ria intitulada Primaries find U.S. voters no more apathetic than usual ("n�o menos ap�ticos" apesar dos esc�ndalos amorosos envolvendo o Presidente da Rep�blica).

12. Os dois temas ser�o retomados adiante. Por ora basta atentar para os absurdos praticados pelos Estados nacionais em nome da metanarrativa do progresso (os exemplos parox�sticos foram o nazismo e o stalinismo), assim como para a aceita��o negligente � ou conivente � pelas autoridades estatais das discrimina��es e agress�es internas, inclusive contra a mulher.

13. Esse fen�meno � apenas incipiente no Brasil, cuja sociedade nacional, felizmente, ainda funciona como verdadeiro melting pot, apesar das aberra��es hist�ricas n�o-resolvidas em mat�ria de distribui��o de renda e da persist�ncia de preconceitos v�rios, mais ou menos velados.

14. N�o confundir com os islamitas, sin�nimo vernacular de mu�ulmano. Os islamistas, com o segundo s, na terminologia corrente, s�o os fundamentalistas isl�micos que se prop�em conquistar o poder pol�tico, pela for�a ou em elei��es.

15. � significativo, por exemplo, o esfor�o � bem sucedido � do movimento internacional de mulheres para que as Confer�ncias de Viena e de Beijing reconhecessem os direitos espec�ficos da mulher como parte integrante dos direitos humanos (art. 18 da Declara��o de Viena e art. 14 da Declara��o de Beijing).

16. N�o � preciso ter, ali�s, a sofistica��o de um Derrida para faz�-lo. Este, por sinal, embora j� tenha at� esbo�ado uma "desconstru��o", confusa mas positiva, da Declara��o de Independ�ncia dos Estados Unidos (Jacques Derrida, Desclarations of independence, trad. Tom Keenan & Tom Pepper, New Political Science, Nova York: Columbia University, Summer 1986), parece haver optado por deixar a Declara��o Universal de 1948 em paz. Ter� tido sobejas raz�es para isso.

17. Conforme j� assinalado na nota 13 supra, este n�o � ainda, nem precisa ser no futuro, o caso do Brasil. N�o � improv�vel, por�m, que tal venha a ocorrer tamb�m na sociedade brasileira, seja por evolu��o aut�noma, seja pela contamina��o que os fen�menos do Primeiro Mundo costumam provocar em praticamente todo o planeta.

18. Da� a m�xima kantiana: "Sapere aude! Tem coragem de te servires de teu pr�prio entendimento!" (Agapito Maestre, ed. e trad., Qu� es ilustraci�n?, Madri: Tecnos, 1988, p. 17).

19. A frase, c�lebre, � do texto "O Dezoito Brum�rio de Louis Bonaparte" (David Mclellan, ed, Karl Marx, Selected Writing, Nova York: Oxford University Press, 1977, p. 300).

20. Jean-Fran�ois Lyotard, La condition postmoderne: rapport sur le savoir, Paris: Les Editions de Minuit, 1979, p. 7-11. A express�o empregada por Lyotard � "metadiscurso", generalizadamente interpretada como as "grandes narrativas" totalizantes.

21. Colet�neas significativas podem ser encontradas, por exemplo, em dois volumes de palestras e estudos organizados pela Anistia Internacional e publicados em Nova York pela Basic Books, em 1993: (a) Barbara Johnson, ed, Freedom and interpretation: the Oxford Amnesty Lectures 1992; (b) Stephen Shute & Susan Hartley, ed, On Human Rights: the Oxford Amnesty Lectures 1993.

22. Na Subcomiss�o das Na��es Unidas para a Preven��o da Discrimina��o e Prote��o �s Minorias, em 1996, quando da considera��o do anteprojeto de Declara��o sobre os Direitos dos Povos Ind�genas a ser encaminhado � Comiss�o dos Direitos Humanos, chamei a aten��o dos colegas redatores do texto para a falta de aten��o para com os direitos das mulheres ind�genas, freq�entemente massacradas ou maltratadas pelas tradi��es tribais. Minha observa��o, provocada por chamamento que me fizeram ind�genas centro-americanas presentes � reuni�o, caiu em ouvidos moucos. De um colega latino-americano escutei a afirma��o de que as culturas aut�ctones t�m que ser preservadas em sua integralidade, inclusive quando praticam o infantic�dio. Esse mesmo "perito" da Subcomiss�o n�o hesitava, por�m, em patrocinar resolu��es condenando pa�ses mu�ulmanos pela discrimina��o contra as mulheres, o Ir� pela persegui��o aos bahais, a Arg�lia pelas brutalidades do Governo e dos fundamentalistas ou a Turquia por excessos no combate � insurg�ncia curda.

23. � o caso, entre outros, de Gustavo Esteva e Madhu Suri Prakash (Grassroots post-modernism: remaking the soil of cultures/i>, Londres e Nova York: Zed Books, 1998), que rejeitam o Estado nacional como um todo e os direitos humanos como "cavalo de Tr�ia da recoloniza��o", em defesa de culturas tradicionais do Terceiro Mundo, como �nica esperan�a contra o "Projeto Global" de domina��o do mundo pelo Ocidente capitalista. Em seu af� anti-imperialista, criticam at� mesmo os direitos econ�micos e sociais (no que se identificam �s posturas do liberalismo ocidental mais radical) e justificam, quando tradi��o aut�ctone, a pr�tica da tortura.

24. O caderno Mais! da Folha de S�o Paulo trouxe, na edi��o de 23.8.1998, mat�ria de Marcos Nobre, sob o t�tulo "Mulheres rev�em direitos da humanidade", na qual se reproduz entrevista com a militante italiana Gabriella Bonachi, assim como trechos de anteprojeto "p�s-moderno" de uma nova Declara��o Universal dos Direitos Humanos. O texto � muito bem redigido e foi apresentado � Comiss�o dos Direitos Humanos das Na��es Unidas como uma contribui��o �s comemora��es do cinq�enten�rio da Declara��o Universal (Documento E/CN. 4/1998/3). Temo, por�m, que possa ser confundido com uma proposta de reforma da Declara��o de 1948. Ou manipulado pelos defensores dos chamados "valores asi�ticos" como "mais uma evid�ncia" de que a Declara��o Universal precisa ser refeita. Depois da verdadeira "batalha" havida na Confer�ncia de Beijing, em 1995, para o reconhecimento dos direitos das mulheres como parte integrante dos direitos humanos universais, nesta �poca de fundamentalismos exacerbados, qualquer renegocia��o da Declara��o de 1948 pode representar o fim da base legal do Direito Internacional dos Direitos Humanos e da luta planet�ria pelos direitos fundamentais de todos os seres humanos, e das mulheres em particular.

25. Uma concep��o multicultural de direitos humanos. Lua Nova, S�o Paulo, CEDEC, n. 39,

p. 115-122, 1997.

26. Michel Foucault, What is Enlightenment? Trad. Catherine Porter. In: Paul Rabinow, ed. The Foucault Reader. New York: Pantheon Books, 1984. p. 50.

27. Da� o r�tulo de neoconservadores que os p�s-estruturalistas receberam de Habermas, a rejei��o de suas id�ias pela esquerda tradicional, tamb�m sem d�vida, o entusiasmo com que elas foram acolhidas nos meios acad�micos defensores do status quo. O que n�o invalida, por outro lado, a contribui��o que trouxeram �s lutas identit�rias contempor�neas das minorias oprimidas e a uma compreens�o desmistificada da pr�pria modernidade.

28. Jacques Derrida, Force de loi: le fondement mystique de l�autorit�. In:Deconstrucion and thepossibility of justice, Cardozo Law Review, v. 11, n. 5-6, jul./ago. 1990. p. 972.

29. Id., ibid., p. 944.

30. Para uma an�lise pormenorizada dos poss�veis efeitos do pensamento de Derrida, Lyotard, Foucault, Nietzche e Rorty na aplica��o do Direito. (v. Douglas E. Litowitz, Postmodern Philosophy & Law, University Press of Kansas, 1997).

31. Jean-Fran�ois Lyotard, The Other�s Rights, trad. Chris Miller & Robert Smith, On human rights: the Oxford Amnesty Lectures 1993 (v. nota 21 supra).

32. Deconstruction and human rights. In: Freedom and interpretation: the Oxford Amnesty Lectures 1992 (v. nota 21 supra), p. 122.

33. Human rights, rationality and sentimentality. In: On human rights: the Oxford Amnesty Lectures 1993 (v. nota 21 supra), p. 111-134.

34. Os direitos de terceira gera��o, ou direitos de solidariedade (como o direito � autodetermina��o e o direito ao desenvolvimento), podem ser encarados como complementa��o explicativa do campo de aplica��o das duas primeiras, j� que n�o alteram em nada a subst�ncia dos direitos civis, pol�ticos, econ�micos, sociais e culturais.

35. Norberto Bobbio, A era dos direitos, trad. Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro: Campus, 1992,

p. 24. A vers�o original do ensaio "Sobre o fundamento dos direitos humanos" foi apresentada em simp�sio italiano realizado em 1964. A terminologia (seja italiana em geral, seja de Bobbio em particular, ou de seu tradutor para o portugu�s) "direitos do homem" acha-se defasada em rela��o � express�o hoje em dia consagrada nos documentos da ONU (human rights, derechos humanos), com exce��o dos "droits de l`homme" ainda mantidos nas vers�es em franc�s.

36. O aceno ao Ocidente feito pelo Presidente Khatami sobre a mat�ria em setembro de 1998, por ocasi�o de abertura da Assembl�ia Geral da ONU, e que levou ao restabelecimento de rela��es entre a Gr�-Bretanha e o Ir�, dizia apenas que o Governo n�o iria execut�-la. N�o houve revoga��o da senten�a "sagrada" de morte, determinada por aiatol� falecido, irrevog�vel e pass�vel de execu��o por qualquer fiel, como logo esclareceram os doutores da ortodoxia xiita.

37. Gilberto Sab�ia, O Brasil e o sistema internacional dos direitos humanos. In: Textos do Brasil, Edi��o Especial, v. 2, n. 6, Bras�lia, Pal�cio Itamaraty, maio/agosto, 1998.

Qual a proposta de Boaventura de Sousa Santos no texto direitos humanos?

Direitos Humanos, Democracia, Multiculturalismo. Boaventura de Sousa Santos busca uma visão histórico-social complexa, intercultural, racional e de resistência, caracterizada pela polifonia discursiva sem o ideal de alcançar uma síntese universal de direitos, reconhecendo as diferenças.

O que significa afirmar que os direitos humanos devem respeitar as diferenças culturais?

Sendo a cultura não apenas um aspecto da existência humana, mas uma condição essencial para ela, pois não é possível uma natureza humana sem manifestação cultural, fez-se necessário uma proteção do direito a diversidade cultural.

Qual a conclusão que o autor chega sobre a concepção multicultural de direitos humanos?

Evidenciar as condições culturais para que os direitos humanos se apresentem como globalização contra-hegemônica é o objetivo do autor, já que os direitos humanos universais tendem ao localismo globalizado e a um choque de civilizações, pois o conceito citado é predominantemente ocidental.

O que dizer sobre multiculturalismo e direitos humanos?

O multiculturalismo também pode ser universalista, ou seja, permitir a propagação e convívio de diferentes idéias, desde que esteja estabelecido um denominador mínimo, comum entre as partes para o início do diálogo (valores universais). Esse mínimo a ser respeitado são os direitos humanos.