Paradigmas da relação da sociedade com as pessoas com deficiência PDF

Ao decorrer do tempo a relação da sociedade com as pessoas com deficiência (PCDs) foi se modificando, tanto as definições filosóficas quanto às atitudes que permeiam as ações.

Para entender o processo de exclusão, devemos nos amparar ao contexto histórico e assim será possível entender que a exclusão não se configura como um comportamento natural da espécie humana mas, derivada de um contexto histórico complexo e permeado por muitos mitos.

1- O Paradigma da exclusão — rejeição social

Este paradigma é composto por vários momentos, uma vez que durou muito tempo, da antiguidade até o século XIX.

Neste modelo não abordarei o contexto Brasileiro, mas o contexto histórico mundial.

Na Roma Antiga, nobres e plebeus tinham permissão para sacrificar os filhos que nasciam com algum tipo de deficiência. Em Esparta, os bebês e as pessoas que adquiriram alguma deficiência eram lançados ao mar ou em precipícios.

Atenas influenciada por Aristóteles, tomou outro rumo, definiu a premissa jurídica até hoje aceita de que tratar os desiguais de maneira igual constitui-se em injustiça. Sendo assim, as pessoas com deficiência eram amparadas e protegidas pela sociedade.

De acordo com Fonseca (2000):

“Na Antiguidade remota e, entre os povos primitivos, o tratamento destinado aos portadores de deficiência* assumiu dois aspectos básicos: alguns os exterminavam por considerá-los grave empecilho à sobrevivência do grupo e, outros, os protegiam e sustentavam para buscar a simpatia dos deuses, ou como gratidão pelos esforços dos que se mutilavam na guerra” (Fonseca, 2000, p.482).

* 2006 — Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU é definido que “pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”. Em 2008, o Brasil ratificou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada pela ONU e a terminologia então utilizada “portadores de deficiência” foi substituída por “pessoas com deficiência” uma vez que, antes de qualquer coisa são pessoas.

Na Idade Média, em função da influência do Cristianismo, adotou-se, na maioria das vezes, um tratamento de amparo aos doentes e deficientes. Esta filosofia derivada das ideias cristãs, havia colocado as pessoas com deficiência entre os alvos de caridade.

Neste contexto somamos a PCDs, alvo de caridade com a exclusão social e temos a formação das práticas asilares, ou seja, as pessoas são isoladas em locais específicos destinados apenas para pessoas “não normais”.

Além do isolamento espacial, quando as pessoas eram removidas do território, pudemos observar o isolamento social, quando elas não eram consideradas membros dignos de participação plena na sociedade, isolamento físico, quando elas eram colocadas em lugares a parte, o que ajudou a preparar os próximos paradigmas. Sem dúvidas, a longa duração dessa forma de tratamento, a exclusão, deixou marcas que se arrastaram muito tempo pela história.

Somente a partir do Renascimento e da chamada Era Moderna, que se inicia depois das Revoluções Industrial na Inglaterra (1760) e Francesa (1789), é que começam a aparecer com mais frequência registros de trabalho produtivo de pessoas com deficiência.

Neste momento, foi fundamental o desenvolvimento de equipamentos assistivos como: cadeiras-de-rodas, bengalas e próteses. No início do século XIX, na França, Louis Braille cria e aperfeiçoa o código Braille, que permitiu a integração dos cegos a uma linguagem escrita.

É muito difícil visualizar um processo contínuo e homogêneo da inclusão da PCD na sociedade do ponto de vista histórico, os sentimentos e a maneira pela qual a sociedade enxergava e tratava as pessoas variam também de um país para o outro dentro do mesmo período e, por vezes, são compostos por avanços e retrocessos.

Durante o século XX, por exemplo, PCDs foram submetidas a “experiências científicas” na Alemanha nazista de Hitler. Ao mesmo tempo, mutilados de guerra eram considerados heróis em países como os EUA, recebendo honrarias e tratamento em instituições do governo.

A Igreja Católica adota comportamentos discriminatórios e de perseguição, substituindo a caridade pela rejeição por aqueles que fugiam de um “padrão de normalidade” — incapacidades físicas, problemas mentais e as malformações congênitas eram considerados, quase sempre, como sinais da ira divina, taxados como “castigo de Deus”.

“(…) a crença generalizada nas maldições e nos feitiços, na existência das doenças e das deformidades físicas ou mentais como indícios da ira de Deus, ou como resultado da atuação de maus espíritos e do próprio demônio, sob o comando direto das bruxas, era às vezes levada a extremos. Acreditava-se, por exemplo, que a epilepsia era conseqüência de uma possessão instantânea por um espírito maligno e o remédio era o exorcismo por ritual ou pela tortura” (Silva, 1987, p.215).

O período conhecido como “Renascimento” não solucionou esta situação de maneira automática. Contudo, marca uma fase mais esclarecida da humanidade e das sociedades, em geral, com o advento de direitos reconhecidos como universais, a partir de uma filosofia humanista e com o avanço da ciência.

Identificamos que progressivamente, foi sendo percebido que essas pessoas poderiam ser incluídas na sociedade “normal” e realizar atividades de trabalho e produção o que nos leva até o começo do século XX.

OBS. Neste período de revoluções e pós guerra surgiu a Terapia Ocupacional e sua prática passou a ser oficialmente documentada. Observou-se a necessidade de um profissional para reabilitar o sujeito (aspectos físicos e psicológicos), adaptar as atividades e possibilitar a reinserção dos soldados no mercado de trabalho. Abordarei mais sobre o assunto em outro artigo.

2- O Paradigma da segregação — assistencialismo

Durante o paradigma da exclusão a ideia do isolamento se fortaleceu e foram criados locais específicos para o isolamento. A partir de 1910, esses lugares começaram a se tornar instituições oficiais onde as pessoas eram internadas.

Observamos então que a sociedade desenvolveu formas organizadas de lidar com as pessoas com deficiência ainda que, em moldes semelhantes ao isolamento, uma vez que a pessoa com deficiência era encerrada em uma instituição por toda sua vida.

Diferente da completa exclusão, o modelo social do paradigma da segregação era o assistencialismo — prática de prestar assistência e de dar auxílio. A assistência recebida era bastante incipiente, e por vezes precária.

A mudança ocorre quando o positivismo ganha destaque. Os positivistas pensam as pessoas excluídas nos asilos como pessoas que geram custo para o Estado, uma vez que recursos são direcionados para essas instituições.

Ocorre então uma mudança da ideia de que as pessoas com deficiência são objeto de caridade para a ideia de que elas precisam ser cuidadas, para serem reintegradas na cadeia produtiva e participem do campo das trocas sociais. Para o positivismo, é um desperdício essas pessoas não contribuírem com a produção.

Neste contexto também se consolida a noção de patologia, e a deficiência passa a receber a classificação médica, a CID. A deficiência passa a ser entendida como uma anomalia da natureza, portanto, como algo que não é natural ou normal.

Ocorre então a reconfiguração das internações asilares. Da intervenção de cuidado no momento histórico anterior, no século XIX as pessoas com deficiência passam por intervenções sócio científica.

Os corpos, considerados desviantes, passam a ser estudados em seus detalhes na busca de formas de consertá-los, para que eles se encaixem nos padrões de normatização da sociedade. Para os positivistas, a máxima produção de uma sociedade está diretamente relacionada a um sujeito ideal, do qual todas as pessoas devem se aproximar.

3- O paradigma da integração — modelo médico da deficiência

Saltamos para as décadas 50 a 80 do século XX, onde imperava uma visão linear de saúde e da medicina. A medicina aqui é considerada uma prática para curar doenças que acometem o organismo, práticas como a de prevenção não são consideradas ainda.

A doença contamina o indivíduo, o paciente passa por um tratamento, e esse tratamento leva à melhora ou à cura da doença. Este modelo também foi aplicado para o tratamento das pessoas com deficiência.

O indivíduo é acometido por uma deficiência, que é algo que precisa ser tratado, curado e resolvido. Ele deve passar por tratamento para reduzir os efeitos da deficiência, para que ele seja reabilitado e se torne mais adequado para a vida em sociedade.

Neste momento surgem os centros de reabilitação com o objetivo de mudar a realidade do indivíduo para que ele possa ser inserido na sociedade, escola, trabalho, etc. O problema é exclusivamente da pessoa com deficiência, ela precisa ser “consertada”.

Como a proposta de reabilitação está extremamente associada ao corpo físico e suas relações orgânicas e funcionais, a intervenção sobre esse corpo desconsidera quaisquer elementos históricos, sociais e culturais que estejam relacionados à vivência daquele corpo e à experiência da pessoa no conjunto das diferentes relações sociais.

Assim se configura a noção de patologia vinculada à deficiência no século XIX e caberá à medicina o estudo da deficiência.

Acompanhando o desenvolvimento e o avanço das ciências médicas e suas tecnologias, haverá uma especialização crescente do estudo de cada deficiência, a classificação científica das deficiências acompanhará prioritariamente as divisões e organizações das áreas médicas, considerando a parte do corpo e a experiência da pessoa com a deficiência.

Esta especialização leva ao surgimento (fim do século XIX e início do século XX) de instituições especializadas por tipo de deficiência (Ex. AACD — deficiência física, APAE — deficiência intelectual e, ADEVA — deficiência visual).

Também surgem as especialidades na área da reabilitação, por exemplo, fonoaudiologia, terapia ocupacional, psicologia, fisioterapia, entre outras. Observamos também o surgimento de profissionais da reabilitação especialistas em cada segmento/parte do corpo da pessoa.

Por exemplo, eu sou formada em Terapia Ocupacional e sou especialista em reabilitação do membro superior — ombro, braços, cotovelos, antebraços, punhos, mãos e dedos em lesões neurológicas, ortopédicas e reumáticas.

Na época da minha formação (2009–2013) o modelo social da deficiência já imperava, e a ideia sempre foi entender o individuo no seu contexto biopsicosocial, não apenas (re) habilitar (curar/consertar) a mão.

Já no contexto histórico que estamos abordando, diferente da minha experiência formativa, a intervenção destes profissionais tem finalidade corretiva, e é bastante pautada na aquisição e no treinamento de habilidades para que a pessoa com deficiência possa se adequar à sociedade.

4- Paradigma da inclusão — modelo social da deficiência

Este modelo social surge quando o modelo médico não consegue avançar no tratamento das pessoas com deficiência. Entende-se que as características do tratamento não abordam todas as questões, exemplo, um soldado que sofre um ferimento na guerra, tratar o ferimento se mostra ineficiente por não compreender as questões que vão além do corpo, como os aspectos psicológicos do trauma desencadeado no campo de batalha.

Desta forma, o pensamento do cuidado vai além do corpo físico e a saúde mental passa a ser uma preocupação e as práticas de reabilitação e intervenção tomam novos rumos.

Este movimento de mudança da visão da pessoa com deficiência não é exclusiva da área da saúde, mas o mercado começa a enxergar a pessoa com deficiência como consumidores, como um nicho de mercado e assim avançamos para a compreensão de que o problema não está na pessoa com deficiência, mas sim no ambiente que apresenta barreiras de acesso.

O problema deixa de estar na pessoa com deficiência, ela não precisa ser consertada e que a exclusão está na sociedade, nas barreiras que impedem o acesso da pessoa com deficiência a ambientes comuns, que existe uma relação entre as características pessoais e o ambiente em que a pessoa se encontra, trabalha, estuda, vive.

Os impedimentos que as pessoas com deficiência podem enfrentar são derivados da relação entre a deficiência e as barreiras existentes no ambiente, entendido aqui de maneira ampla uma vez que, as barreiras que a pessoa vai enfrentar são diferentes em cada local e em cada situação.

PCDs são impedidas de participar plenamente da sociedade por barreiras que se encontram na arquitetura das ruas da cidade e dos edifícios, na comunicação e na atitude das pessoas, no transporte, nas metodologias de ensino e de trabalho. Enfim, a fonte de dificuldade são as barreiras que estão na sociedade, portanto, é a sociedade que deve se adequar às pessoas com deficiência, e não o contrário.

Tabela comparativa entre o modelo médico e o modelo social da deficiência:

* Independência X Autonomia:

  • Independência: relação com a habilidade de realizar alguma atividade sem suporte de outras pessoas, as tarefas do dia a dia, por exemplo.
  • Autonomia: relação com escolha, com a capacidade de tomar decisões. Escolher onde será a sua próxima viagem de férias, por exemplo.

Estes são os 4 principais paradigmas de atenção à pessoa com deficiência. A partir desta evolução histórica podemos atender melhor às necessidades das PCDs e empoderá-las para realizar as atividades com maior independência e autonomia promovendo qualidade de vida e desenvolvimento.

As principais barreiras que precisamos vencer são:

  • Barreiras arquitetônicas;
  • Barreiras no acesso à informações (inclusive digitais), na comunicação (Libras, por exemplo) e;
  • Barreiras atitudinais — relativas ao comportamento e atitude em relação às pessoas com deficiência.

Além de adequar os espaços, precisamos desenvolver mais produtos e serviços acessíveis com a ativa participação de pessoas com deficiência.

Promover o acesso a informações possibilitando o desenvolvimento pessoal e profissional.

O objetivo é promover uma sociedade equitativa.

Incluir quer dizer fazer parte, inserir, introduzir. Inclusão é o ato ou efeito de incluir.

Assim, a inclusão social das pessoas com deficiências significa torná-las participantes, ativas na vida social, econômica e política, assegurando o respeito aos seus direitos no âmbito da Sociedade, do Estado e do Poder Público.

Para isso, precisamo oferecer recursos que permitam o acesso e empoderá-las para que possam ativamente serem agentes transformadores na sociedade.

Quer saber mais sobre acessibilidade?

Acesse: explorando barreiras, acessibilidade e design universal.

Link Medium: Link público: https://bit.ly/2U4CKCo

Obrigada pela leitura e um forte abraço!

REFERÊNCIAS:

FONSECA, M. — Proteção Jurídica dos Portadores de Deficiência — In: IBAP — Instituto Brasileiro de Advocacia Pública & Editora Esplanada ADCOAS, São Paulo, Dezembro de 2000.

SASSAKI Romeu Kazumi. “Artigo 19” — A Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência Comentada / Coordenação de Ana Paula Crosara Resende e Flavia Maria de Paiva Vital _ Brasília : Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, 2008.

SASSAKI, Romeu Kazumi — Inclusão — Construindo uma Sociedade para Todos — WVA, Rio de Janeiro, 1997.

Quais são os 4 paradigmas da assistência às pessoas com deficiência?

As formas de atuação com as pessoas com deficiência refletem a estrutura econômica, social e política da sociedade. São 4 paradigmas que pesquisadores destacam: exclusão, segregação, integração e inclusão.

Quais são os 4 paradigmas da educação especial?

PARADIGMAS DA EDUCAÇÃO ESPECIAL São eles: o paradigma de institucionalização, o paradigma de serviços e o paradigma de suporte.

Qual é o paradigma da inclusão?

Evidenciou-se que os paradigmas da inclusão de deficientes devem ser analisados de forma crítica e reflexiva diante dos contextos históricos que demonstram a inclusão como um processo da cidadania de forma democrática e participativa com todos os segmentos da sociedade.

Como a sociedade lida com as pessoas com deficiência?

A estrutura das sociedades, desde os seus primórdios, sempre inabilitou os portadores de deficiência, marginalizando-os e privando-os de liberdade. Essas pessoas, sem respeito, sem atendimento, sem direitos, sempre foram alvo de atitudes preconceituosas e ações impiedosas.