Quais os perigos de uma única história para a compreensão dos fenômenos jurídicos e sociais?

O conceito de família: origem e evolução

Christiane Torres de Azeredo[1]

A origem da família estende-se por um passado imensurável, e se perde no tempo por ser impossível definir sua extensão. No entanto, é singular a ideia de que os seres vivos se unem e criam vínculos uns com os outros desde sua origem, seja em decorrência do instinto de perpetuação da espécie, seja pelo desejo de não viver só, a ponto de se ter por natural, muitas vezes, a ideia de que a felicidade só pode ser encontrada a dois. 

Segundo Morgan (1877, p. 49), partes da família humana existiram num estado de selvageria, outras partes em um estado de barbárie, e outras, ainda, no estado de civilização, por isso a história tende à conclusão de que a humanidade teve início na base da escala e seguiu um caminho ascendente, desde a selvageria até a civilização, através de acumulações de conhecimento e experimentos, invenções e descobertas.

 As instituições modernas têm suas raízes plantadas no período da barbárie, que por sua vez tiveram suas origens transmitidas a partir do período anterior, o de selvageria. Ou seja, por meio de uma descendência linear, foi apresentado um desenvolvimento lógico das instituições, como é o caso da família.

Alguns estudiosos tentaram decifrar o enigma referente à origem da família, mas até hoje não se sabe com precisão, uma vez que a história é feita de sucessivas rupturas. Por ser uma realidade sociológica, para se falar em família, temos que falar em Estado. 

Inúmeras são as teorias que tentam explicar a origem do Estado. Para muitos o Estado sempre existiu, pois desde que o homem vive sobre a Terra ele está integrado numa organização social; para outros, a sociedade humana existiu durante certo período sem o Estado; e há outros, ainda, que só admitem como Estado a sociedade política dotada de características bem definidas (DALLARI, 2010, p. 52-53).

Independente da teoria adotada para explicar a origem do Estado, fato é que há dois meios para sua formação: uma forma originária e outra derivada. No entanto, delimitaremos o presente estudo às causas originárias de surgimento do Estado.

Dallari afirma existirem dois grandes grupos que procuram explicar a formação originária do Estado. O primeiro se refere às teorias que sustentam a formação contratual dos Estados, apresentando em comum - apesar de também divergirem entre si quanto às causas -, a crença em que foi a vontade de alguns homens, ou então de todos os homens, que levou à criação do Estado (DALLARI, 2010, p. 54).

Já o segundo grupo, faz menção às teorias que afirmam pela formação natural ou espontânea do Estado, não havendo entre elas uma coincidência quanto à causa, mas tendo todas em comum a afirmação de que o Estado se formou naturalmente, e não por um ato puramente voluntário (DALLARI, 2010, p. 54).

A primeira teoria – contratualista - fora formulada por autores que pensaram a constituição do Estado Moderno a partir de um contrato, um pacto em que cada indivíduo cede parte de sua liberdade para sair de um estado de natureza, para um estado limitado por um poder central (o Soberano).

Hobbes (2000) preconizava a centralização do poder nas mãos de um único sujeito: o monarca. Para ele, sem soberania não há poder político e nenhuma constituição (acordo entre indivíduos) seria possível; o Estado, portanto, seria condição para a existência da sociedade.

Entretanto, não tardou para que se fizessem críticas a este pensamento. Um dos grandes críticos de Hobbes foi Locke (2001), que criticou a concepção de Estado fundado em um Estado Absolutista - compreendido pelo Leviatã -, e propôs a formação de um Estado baseado no respeito aos direitos naturais e políticos do cidadão. Locke, então, pensou o modelo do Estado Liberal como organização política de poder limitado e destinado a garantir a proteção de direitos naturais (liberdade e propriedade).

Além disso, formulou a distinção entre poder absoluto e poder moderado. O poder absoluto seria o exercício concentrado do poder legislativo e executivo em um único sujeito; já o poder moderado seria o exercício separado e distinto do poder legislativo e do poder executivo. Esses dois poderes são distintos e, assim, Locke estabeleceu a máxima do constitucionalismo: quem tem o poder de fazer a lei não pode e nem deve dispor dos recursos e dos meios de governo, como o poder de coerção sobre os indivíduos; e quem dispõe de todo esse poder não pode ser, por sua vez, titular do poder legislativo.

Montesquieu (2000) buscou estabelecer a construção de um regime político moderado instituído por uma Constituição. Para ele, o homem tende a naturalmente abusar do poder, por isso os direitos individuais de cada um somente estariam protegidos se houvesse a instituição de um regime político que assegurasse esses direitos. Além disso, propôs a separação entre os três poderes.

Assim, com a noção de poder concentrado nas mãos do monarca (Hobbes), a garantia e proteção de direitos naturais (Locke) e a separação dos poderes (Montesquieu) funda-se as bases do Estado Liberal Moderno, porém, a fundamentação e legitimação democráticas se dão com Rousseau.

Para Rousseau (2002), a soberania reside nas mãos do povo - democracia como governo da maioria. Rousseau não admitia a representação; além disso, a vontade geral expressada pelos cidadãos seria um ato de soberania, enquanto a vontade declarada por intermédio de um representante seria vontade particular, um decreto, e é somente a partir da compreensão da vontade geral, como expressão da soberania popular, que se podem fundar as bases da democracia como governo do povo.

Essas ideias gerais de autores contratualistas não serão adotadas na presente pesquisa, pois, antes de falarmos em Estado Moderno, constitucionalismo e democracia, é necessário nos transportarmos para a história antiga, e para tanto, a segunda teoria - natural e não contratualista - é a que nos interessa.

A teoria natural de formação do Estado pode ser classificada em: a) origem familiar ou patriarcal; b) origem em atos de força, de violência ou de conquista; c) origem em causas econômicas ou patrimoniais e, por último, d) origem no desenvolvimento interno da sociedade (DALLARI, 2010, p. 54-56); e dentre essas teorias, a de maior repercussão prática é a última, formulada por Friedrich Engels. 

Por esta razão, tomando como base os estudos do antropólogo Lewis Henry Morgan, Engels em seu livro “A origem da família da propriedade privada e do Estado” (1984) pode concluir que existiu uma época primitiva, e identificou os tipos de família que existiram ao longo da história. Nesse sentido, alude que:

A família, diz Morgan, é o elemento ativo; nunca permanece estacionada, mas passa de uma forma inferior a uma forma superior, à medida que a sociedade evolui de um grau mais baixo para outro mais elevado. Os sistemas de parentesco, elo contrário, são passivos só depois de longos intervalos, registram os progressos feitos pela família, e não sofrem uma modificação radical senão quando a família já se modificou radicalmente (ENGELS, 1984, p. 30).

Por nunca permanecer estacionada, e sim, estar em constante evolução, diversos foram os modelos familiares existentes ao longo da história, cada qual com seus ditames, diretrizes, costumes e práticas. O homem percorreu um longo caminho de experimentos, e a cada estágio avançado, pouco a pouco descobertas eram alcançadas e a humanidade progredia.

É interessante consignar informações sobre este período para entendermos a evolução da família, e consequente evolução da sociedade. Morgan (1877) introduziu uma ordem precisa a respeito da pré-história da humanidade. Ele subdividiu em três épocas principais: estado selvagem, barbárie e civilização; subdividindo as duas primeiras fases em fase inferior, média e superior, de acordo com os progressos alcançados.

Na fase inferior do estado de selvageria, para que os homens existissem em meios às grandes feras selvagens, eles permaneciam nos bosques e viviam parcialmente nas árvores. Na fase média, com a descoberta do fogo, eles puderam se fazer independentes do clima e da localidade, espalhando-se pela superfície da Terra. Já na última fase, com a invenção do arco e da flecha, o desenvolvimento da caça para alimentação e ocupação se tornou bastante propício (MORGAN, 1877, p. 57-58).

Esse primeiro estágio é caracterizado principalmente pelo nomadismo, organização clânica ou tribal, desconhecimento dos metais, e a principal alimentação eram peixes. A partir de um processo de adaptação progressiva, chega-se ao período da barbárie.

A época da barbárie iniciou-se com a introdução da cerâmica, e com isso o desenvolvimento de todos os povos, inclusive com as diferenças entre os dois grandes continentes, por isso, em virtude de condições naturais diferentes, a população de cada hemisfério se desenvolveu de maneira particular. Na fase média, no leste, começou a domesticação dos animais, e no oeste, o cultivo, irrigação e construção. Já a última fase, teve como grande avanço a fundição do minério de ferro, e passou à fase da civilização com invenção da escrita (MORGAN, 1877, p. 58-59).

Com o crescimento demográfico, os povos também foram se desenvolvendo. O período da barbárie se caracteriza pelo surgimento do sistema de irrigação para cultivo de plantas, além da agricultura e pastoreio para diversificação na alimentação e o uso de ferramentas de metal.

As condições econômicas gerais na fase superior da barbárie e a organização da sociedade fizeram surgir a civilização. A sociedade se tornou mais complexa. Ainda que isso não signifique um processo contínuo de aperfeiçoamento, não podemos negar que a partir da invenção do alfabeto fonético e do uso da escrita houve um grande progresso, tanto é assim, que se estende até a atualidade.

Com o aumento da população, uma tribo começa a se dividir em outras, e assim sucessivamente, sendo essa organização totalmente adequada às condições sociais, que passam a não ser mais um agrupamento espontâneo capaz de dirimir conflitos; agora, estes passam a serem resolvidos pela guerra (MORGAN, 1877, p. 52-63).

A divisão do trabalho se dava de modo espontâneo, o homem ia à guerra e ficava incumbido da caça e da pesca; já a mulher, cuidava da casa, preparava a comida e confeccionava as roupas – trazendo à tona a clara distinção entre o espaço público e o privado -, a esfera do comum (koinon) e a esfera da casa (oikos), consoante Arendt (2007).

O paradigma desta noção de espaço público e privado, que perpassa a obra de Arendt, não é outro senão a cidade-estado grega. O primeiro é o espaço da visibilidade, da aparência, da palavra, da política e retórica, era o domínio da vida política que se exercia através da acção (praxis) e do discurso (léxis) – ser visto e ser ouvido -; enquanto o segundo é o espaço da violência, em que só o chefe da família exercia o poder despótico sobre os seus subordinados, existindo a mais pura desigualdade.

Para a filósofa, nenhum homem pode escapar completamente desta vida ativa, porquanto é próprio da condição humana. Até mesmo a vida contemplativa depende do trabalho para produzir tudo o que é necessário para manter vivo o organismo humano. As atividades a que a autora se refere, o labor, o trabalho e a ação, e as atividades humanas fundamentais são sistematicamente centrais da obra de Arendt (2007).

O labor, expressão cujo significado está ligado etimologicamente a ponein (grego), laborare (latim), diz respeito à atividade relacionada ao animal laborans, correspondente ao processo biológico do corpo humano. Arend (2007, p. 15) afirma que a “condição humana do labor é a própria vida”, ou seja, é a atividade da produção para o consumo, para satisfação das necessidades da casa (oikós). Para os gregos, este era um atributo dos escravos, porquanto, digno de desprezo, mas em condição de possibilidade da existência da polis.

O trabalho tem seu significado ligado etimologicamente a ergazesthai (grego), facere ou fabricari (latim), esta atividade estava intimamente ligada ao artificialismo do mundo, na qual a condição humana é a mundanidade. Refere-se ao fazer (facere) humano do homo faber, à criação da artificialidade, à fabricação de coisas, que na Grécia Antiga, era atividade do artesão (ARENDT, 2007, p. 15).

A terceira dimensão da vida ativa é a ação. Para Arendt, a ação era a única atividade exercida diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, correspondendo à condição humana da pluralidade. Na polis, era a atividade exclusiva dos cidadãos que, com palavras e atos, podiam se dedicar à vida livre, possível apenas na esfera pública. Esta era a atividade política, par excellence, e a sua respectiva condição – a pluralidade – seria a condição da vida política, isto porque, tomando como referência a ideia da res publica romana, viver é estar entre os homens: inter homines (ARENDT, 2007, p. 15).

Entretanto, com o advento da civilização industrial a atividade do homo faber passou a ter lugar privilegiado. A chamada ascensão do social transformou preocupações privadas – como a manutenção da vida, a propriedade privada, a satisfação das necessidades – em preocupações públicas.

Os assuntos que na antiguidade grega diziam respeito a casa (oikós), tornam-se preocupações públicas. A antiga diferença entre as esferas privada e pública é submersa. Nesta sorte, Arendt (2007) coloca em voga os referenciais fundantes da noção de espaço público, este que, na era moderna, torna-se horizonte e é fundamentalmente desestruturado com as experiências totalitárias do século XX.

O desenvolvimento da produção tornou a força de trabalho do homem capaz de produzir o necessário para sua manutenção. Ocorre que, com o crescimento da família, se tornou necessário maior força de trabalho; desse modo, nas guerras eram alcançados muitos prisioneiros – o que Engels (1984, p. 181) considerou a primeira grande divisão social do trabalho: senhores e escravos. A diferença entre ricos e pobres somou-se às diferenças entre homens livres e escravos, culminando em uma nova divisão do trabalho, e consequentemente, nova divisão de classes (ENGELS, 1984, p. 184).

No período inferior da barbárie, o homem produzia apenas para suas necessidades diretas; as trocas eram isoladas. Na fase média, passou a existir a propriedade; já na fase superior, ocorreu uma divisão do trabalho entre agricultura e artesanato, e daí aumentou a produção e a troca de produtos, culminando na civilização, que carrega em si, como consequência, o aumento de todas as divisões de trabalho já existentes.

Engels, afirma então que ocorreram três formas principais de surgimento do Estado:

Atenas apresenta a forma que podemos considerar mais pura, mais clássica: ali, o Estado nasceu direta e fundamentalmente dos antagonismos de classes que se desenvolviam no seio mesmo da sociedade gentílica. Em Roma, a sociedade gentílica se converteu numa aristocracia fechada, em meio a uma plebe numerosa e mentida à parte, sem direitos mas com deveres; a vitória da plebe destruiu a antiga constituição da gens, e sobre os escombros instituiu o Estado, onde não tardaram a se confundir a aristocracia gentílica e a plebe. Entre os germanos, por fim, vencedores do império romano, o Estado surgiu em função direta da conquista de vastos territórios estrangeiros que o regime gentílico era impotente para dominar (ENGELS, 1984, p. 190-191).

Surgem os comerciantes, a riqueza em mercadorias, escravos e terra, a moeda, a propriedade e o trabalho como forma principal de produção.  O Estado surge, assim, como um “produto da sociedade”, como um poder “nascido da sociedade, mas posto acima dela se distanciando cada vez mais” (ENGELS, 1984, p. 191). Nas palavras do filósofo, “a civilização é o estágio de desenvolvimento da sociedade em que a divisão do trabalho, a troca entre indivíduos dela resultante, e a produção mercantil – que compreende uma e outra – atingem seu pleno desenvolvimento e ocasionam uma revolução em toda a sociedade anterior” (ENGELS, 1984, p. 196).

Paralelo ao surgimento do estado é de grande importância o estudo dos sistemas de parentesco e as formas de famílias existentes em cada um destes períodos da história humana, como forma de compreender as causas que levaram a formação dos arranjos familiares existentes nos dias de hoje. 

Considerada a primeira etapa da família, na família consanguínea os grupos conjugais classificavam-se por gerações, e as relações de matrimônio eram realizadas entre esses grupos, sendo considerados todos os avós e avôs, por exemplo, nos limites da família, maridos e mulheres entre si, e assim sucessivamente. Os ascendentes e descendestes eram os únicos excluídos dessas relações, ou seja, irmãos, irmãs, primos, primas e demais colaterais - relações horizontais - eram considerados casais mutuamente, excluindo as relações entre pais e filhos - relações verticais (ENGELS, 1984, p. 37-39).

Com a evolução da família consanguínea, surge a punaluana. Esse modelo familiar manteve o casamento entre grupos, sendo entre eles considerados comuns maridos e mulheres, no entanto, passou a excluir as relações conjugais mantidas entre irmãos. Naturalmente, esse regime de matrimônio gerou uniões em que o homem tinha uma mulher “principal”, entre as outras várias mulheres, e vice-versa (ENGELS, 1984, p. 39-48).

Esses tipos de matrimônio por grupos são característicos do estado selvagem, e nesta etapa histórica da família era dada grande importância ao reconhecimento da filiação materna, pois por questões naturais, somente à mãe era possível distinguir a filiação.

Além disso, como era difícil distinguir quem traía quem, passou a ser condenado o adultério, e, entre alguns povos, fora proibido o matrimônio entre parentes consanguíneos, o que tornou ainda mais difícil as relações conjugais entre grupos, acabando por substituir a família punaluana pela família sindiásmica.

A família sindiásmica é característica do estado da barbárie, sendo marcada pela redução do círculo conjugal. A união conjugal deixou de se dar entre pares dentro de um grupo conjugal sem compromisso de permanência e passou a se dar entre pares singularizados. A exclusão progressiva, primeiro dos parentes próximos, depois dos parentes distantes, fez com que se tornasse impossível a prática de matrimônio por grupos (ENGELS, 1984, p. 48-66).

A mulher ainda era detentora de um grande apreço em virtude de ser certa apenas a filiação materna. Porém, é importante destacar que os bens e riquezas adquiridos eram do homem, e não poderiam ser passados aos filhos - justamente por não serem reconhecidos como tal -, por esta razão, o direito de filiação materno foi abolido e ficou conhecido como “a grande derrota do sexo feminino em todo o mundo” (ENGELS, 1984, p. 61).

Como forma de garantir a paternidade e posterior direito à herança pela filiação paterna, ocorreu a transição para a família patriarcal, típica da civilização. Antes a mulher era o centro, agora, o homem passa a desempenhar papel fundamental na família, sendo conferido a ele o pátrio poder (poder de vida e de morte) sobre toda sua família.

A família patriarcal era hierarquizada, com o predomínio da figura do homem, era constituída essencialmente por laços biológicos e buscava o poder econômico, político e religioso, tendo como função primordial a manutenção do status social. Cláudia Maria da Silva (2004, p. 128-129), retrata com exímia propriedade a característica da estrutura familiar patriarcal, realçando seu caráter salutar:

O elo familiar era voltado apenas para a coexistência, sendo imperioso para o “chefe” a manutenção da família como espelho de seu poder, como condutor ao êxito nas esferas política e econômica. Os casamentos e as filiações não se fundavam no afeto, mas na necessidade de exteriorização do poder, ao lado – e com a mesma conotação e relevância – da propriedade. [...] Os vínculos jurídicos e os laços de sangue eram mais importantes e prevaleciam sobre os vínculos de amor. O afeto, na concepção da família patriarcal, era presumido, tanto na formação do vínculo matrimonial e na sua manutenção como nas relações entre pais e filhos. Quando presente, não era exteriorizado, o que levava a uma convivência formal, distante, solene, substanciada quase que unicamente numa coexistência diária.

Muitos estudiosos afirmam que a família como é conhecida atualmente teve sua origem na civilização romana, tomando como ponto de partida o modelo familiar patriarcal hierarquizado. Segundo Engels (1984, p. 61), a origem etimológica da palavra família, vem do latim famulus, quer dizer escravo doméstico, e então, família é o conjunto dos escravos pertencentes e dependentes de um chefe ou senhor. Assim era a família greco-romana, formada por um patriarca e seus famulus: esposa, filhos, servos livres e escravos. 

No período do direito pré-clássico, na Roma antiga, as famílias viviam separadas segundo suas próprias regras e de acordo com seus próprios atos religiosos. A religião conferia ao verdadeiro sacerdote - representado pelo pater famílias -, os poderes de celebração do culto e preservação da família. Era essa força superior que influenciava a vida social, organizando-os de acordo com sua vontade e submetendo-os ao seu poder ilimitado. Fustel de Coulanges (2006, p. 56-58) traduz com clareza esse momento:

Se nos transportarmos em pensamento para o seio dessas antigas gerações de homens, encontraremos em cada casa um altar, e ao redor desse altar a família reunida. [...] Fora da casa, bem perto, no campo vizinho, há um túmulo. É a segunda morada da família. Lá repousam em comum várias gerações de antepassados; a morte não os separou. Nessa segunda existência permanecem juntos, e continuam a formar uma família indissolúvel. [...] O princípio da família não é mais o afeto natural [...] Ele pode existir no fundo dos corações, mas nada representa em direito. [...] Os historiadores do direito romano, tendo justamente notado que nem o afeto, nem o parentesco eram o fundamento da família romana, julgaram que tal fundamento devia residir no poder do pai ou do marido.

Como sacerdote do lar, o pai não reconhecia nenhuma autoridade superior, pois ele era o chefe supremo da religião doméstica – autoridade pontífice -, era simultaneamente unidade econômica, religiosa, política e jurisdicional. Cabe ressaltar, porém, que este não era um poder arbitrário, tinha seu princípio e limites nas mesmas crenças.

Eram essas crenças que tornavam desnecessário um poder social como autoridade; não era necessário um governo para fixar o direito privado, a família antiga era mais “uma associação religiosa que uma associação natural” (COULANGES, 2006, p. 58), ou seja, era um corpo organizado, mas sua base não estava nas gerações e nem no afeto, o que os unia era a religião, pois todo sentimento dentro da família se resumia a uma só palavra: divino.

Ao nascimento do filho homem era dado grande valor, já que cumpriria a função do pater famílias, dando continuidade ao seu culto. Ao contrário do nascimento da filha, que apenas auxiliaria na celebração religiosa, e que quando se casasse, renunciaria o culto de seu pai, passando a pertencer à família do marido e ao seu culto. Por essa razão o filho tinha direito a herança do pai e a filha não, já que o culto só se transmitia de pai para filho e a regra era que a herança estivesse em conformidade com o culto.

A religião doméstica proibia que duas famílias se unissem, já que cada lar tinha seu próprio deus; mas era possível que elas, sem nada sacrificar de sua religião particular, celebrassem um culto que lhes fosse comum, concebendo uma divindade superior a todos. Por isso, alguns grupos começaram a se formar – os gregos os chamavam de fratria ou cúria.

Cada fratria ou cúria tinha um chefe, era uma pequena sociedade formada sobre a família, e naturalmente essas associações começaram a crescer, e formaram-se tribos. Essas tribos tinham assembleias, promulgavam decretos, tinham um tribunal, e estavam constituídas para ser uma sociedade independente (COULANGES, 2006, p. 180-183). Ocorre que, com o decorrer do tempo, novas crenças começaram a surgir- os deuses de natureza física.

Os homens ainda viviam no estado de família, mas na medida em que a divindade de uma família ia adquirindo prestígio sobre a imaginação de outros homens, mostrando-se mais poderosa que a de sua própria, toda uma cidade desejava adotá-la e render-lhe culto público (COULANGES, 2006, p. 191). E à medida que essa segunda religião cresceu, a sociedade também cresceu.

Foi a partir dessa aliança que a sociedade começou a existir, a partir de pequenos grupos constituídos, que se agregavam uns aos outros, porém, sem perder a individualidade de cada família. Coulanges (2006, p. 197), chega a afirmar que “a cidade não é um ajuntamento de indivíduos: é uma confederação de vários grupos, constituídos antes dela, e que ela deixa subsistir”, e era essa associação religiosa e política a chamada cidade.

Várias gerações se passaram, e como a religião ordenava que o lar tivesse um sacerdote, a religião da cidade também deveria ter um pontífice, e a esse sacerdote do lar público, era dado o nome de rei (COULANGES, 2006, p. 270). Além disso, a lei, que a princípio era parte da religião, começou a ser aplicada tanto no culto quanto às relações da vida civil, pois a lei era consequência direta e necessária da crença, sendo aplicada a todas as relações humanas.

As leis nasceram na família, decorrente das crenças religiosas admitidas por aquele povo. Era o pai quem detinha autoridade sobre a família, ele era a religião doméstica - lar familiae pater. Pela religião doméstica a família se constituía em um pequeno corpo organizado, uma pequena sociedade, que tinha seu chefe e seu governo.

A família não recebeu as leis da cidade, não foi imaginada pelo Estado; o direito privado existiu antes dela. Quando as leis começaram a ser escritas, encontrou um direito já estabelecido, enraizado nos costumes por uma adesão universal, pois, “o antigo direito não é obra de um legislador; pelo contrário, foi imposto ao legislador” (COULANGES, 2006, p. 127).

O rei era o chefe religioso da cidade e todo poder estava reunido em suas mãos. Porém, o rei não era único, cada pater também era rei. Então, o rei da cidade não exercia poder sobre toda a população; logo, travou-se uma revolução e a realeza foi vencida. No entanto, por ser uma figura sagrada, foi-lhe retirada autoridade política, mas não a sacerdotal e o governo ficou nas mãos da aristocracia, que se baseava no nascimento e constituição religiosa das famílias (COULANGES, 2006, p. 378-380). A fonte das leis continuou a se dar no culto doméstico e no direito privado, que conservavam o regime patriarcal.

Como a aristocracia não fez uma revolução política, tomando o poder nas mãos pelo simples prazer de dominar, isso representou um perigo para a sociedade. Então, mudanças começaram a se introduzir dentro das famílias. Ao mesmo tempo em que o homem é soberano em sua casa, ele é membro da comunidade; logo, também tem que atender aos interesses gerais, sacrificando seus próprios interesses (COULANGES, 2006, p. 397-403).

Modificações ocorreram no direito privado, sendo introduzido o código das doze tábuas, que sinalizava o direito evoluindo conforme a sociedade, em suas instituições, costumes e crenças. Antes, a lei era decreto da religião, agora, tem por princípio o interesse dos homens, e por fundamento o consentimento da maioria. Conservou-se o poder do pai, porém, a tradição não tinha mais força e a religião não governava mais.

Não demorou muito para que a democracia sucedesse à dominação da aristocracia religiosa. Roma se destacou por seu caráter particular na política e o papel que tinha entre as outras cidades. Lá se encontravam todo tipo de raça associada e mesclada, a língua era um composto de diversos elementos, os nomes das famílias atestavam a grande diversidade de origem; e desse misto, não teria outro resultado, senão a conquista de um império.

Enquanto Roma crescia, transformações sociais e políticas também iam acontecendo. E em meio a estas mudanças, surgiam instituições nos costumes, nas crenças e no direito. Pouco a pouco o direito e o governo se transformaram, ao mesmo tempo em que a religião, sendo o cristianismo, considerado a grande mudança que marca o fim da sociedade antiga (COULANGES, 2006, p. 628).

Com o cristianismo, o sentimento religioso foi reavivado, ganhando uma expressão mais alta e menos material; começou a se conceber Deus como verdadeiramente estranho à natureza humana, e o divino foi definitivamente colocado fora da natureza visível e acima de tudo e todos.

O direito romano se libertou da religião; assim, tornaram-se inconciliáveis as antigas leis despóticas, e o pai perdeu a autoridade absoluta que seu sacerdócio lhe outorgava, conservando apenas aquela que a natureza lhe conferia, que era cuidar das necessidades do seu filho. Além disso, a mulher tornou-se moralmente igual ao marido, e o direito de propriedade foi mudado em sua essência, passando a derivar do trabalho, não mais da religião. Coulanges (2006, p. 641) aduz que:

Assim, apenas porque a família não possuía mais sua religião doméstica, sua constituição e seu direito foram modificados, do mesmo modo que, só porque o Estado não tinha mais sua religião oficial, as regras do governo dos homens foram modificadas para sempre.

Com a restrição da autoridade do pater famílias, o Estado passou a ter maior presença nas relações familiares, dando maior autonomia à mulher e aos filhos. Através de regulamentações criadas, a mulher passou a gozar de plena autonomia, sendo possível a ela, por exemplo, a participação na vida social e política, a possibilidade de se divorciar mediante consenso mútuo, e a autorização para ter a guarda dos filhos.

O regime patriarcal ainda imperava, porém, havia grande intervenção estatal por meio de legislações. O pai ainda era tido como chefe da família, no entanto, mães e filhos passaram a ter direitos assegurados pelas legislações. Segundo Maria Berenice Dias (2016, p. 59),

Historicamente, a família sempre esteve ligada à ideia de instituição sacralizada e indissolúvel. A ideologia patriarcal somente reconhecia a família matrimonialista, hierarquizada, patrimonialista e heterossexual, atendendo à moral conservadora de outra época, há muito superada pelo tempo. [...] A ideologia patriarcal converteu-se na ideologia do Estado, levando-o a invadir a liberdade individual, para impor condições que constrangem as relações de afeto.

O fundamento e razão dessa transformação ocorreram pelas necessidades do capitalismo. Com a industrialização da economia, o trabalho se tornou a principal forma de produção. Junto à urbanização da população, explosão demográfica, bem como o aumento da população e sua miscigenação, pouco a pouco o papel da família foi se perdendo, consequentemente, mitigou a dependência de cada indivíduo em relação ao seu núcleo familiar, e, portanto, declinando o patriarcalismo.

É óbvio que o patriarcalismo ainda não está superado, porém, é latente a despatrimonialização da família, tendo agora como enfoque o sujeito de direitos. Desse modo, desenvolveu-se a família monogâmica e nuclear, e a partir desse momento, as famílias deixaram de ser grandes extensões e passaram a constituir-se cada uma em seu próprio núcleo.

A constitucionalização da família teve início com a queda do império romano e expansão portuguesa no Brasil Colônia, o arcabouço legislativo Corpus Juris Civilis foi introduzido em diversos ordenamentos jurídicos, e passou a vigorar as Ordenações Filipinas até 1916, quando nasce então o primeiro Código Civil brasileiro.

O Código Civil de 1916 foi produzido tendo como seu pilar o patrimonialismo e o individualismo. A família era caracterizada pela figura do pai detentor do poder patriarcal - semelhante ao do pater famílias no direito romano -, como consequência, as relações familiares eram baseadas nos mesmos princípios, em que pai, mãe e filhos tinham papéis específicos.

O modelo familiar foi construído para atender aos interesses do Estado, uma vez que, fortalecendo a família, o Estado consequentemente estaria mais forte. Sérgio Resende de Barros (2002, p. 07) assevera que:

Com o patriarcalismo principiou a asfixia do afeto. Os patriarcas deram início à prática dos casamentos por conveniência, que com o passar do tempo proliferaram ainda mais, quando se somaram aos motivos patrimoniais os motivos políticos. Nessa evolução histórica, do primitivo casamento afetivo, passou-se ao casamento institucional, com o qual se buscou assegurar o patrimônio, dando origem à ideologia da família parental, patriarcal, senhorial, patrimonial. Esta se define pela existência de um pai e uma mãe com seus filhos sob o poder pátrio, fruindo de um patrimônio familiar, que deve ser mantido como base física e para segurança econômica da família. A família assim concebida e praticada acabou por revestir e mascarar interesses meramente patrimoniais, que muitas vezes deslocam, degeneram, sufocam ou até substituem as relações de afeto.

Assim, o interesse do Estado pela família fez com que ela se situasse para mais perto do direito público do que do direito privado (RODRIGUES, 2002, p. 12). Logo, o indivíduo deveria agir segundo os interesses do Estado, estar inserido no grupo familiar, e não deixar de cumprir seu papel em nome da continuidade da família e consequente desenvolvimento organizado do Estado.

Herkenhoff (2005, p. 232) chega a afirmar que ainda que fôssemos um país despovoado e incivilizado, o século XIX encontrou a sociedade brasileira apegada à concepção de família como “pequeno Estado”, não como um núcleo socioafetivo, mas como unidade de produção e acumulação de riquezas e de geração da prole.

Foram produzidas diversas regras a fim de que fosse mantida a conservação da família formalmente constituída, através, por exemplo, da proibição do divórcio. Tudo tinha como objetivo ter um chefe (homem) que concedia poderes aos demais membros da família. Não havia apenas a preponderância do cônjuge varão na sua estrutura de poder, mas principalmente a falta de identidade dos outros membros, e isso justificava a preponderância dos interesses do Estado sobre o indivíduo.

Com base nessas circunstâncias, a Constituição de 1824 - primeira e única do período imperial -, seguiu o modelo estabelecido na época e não fez nenhuma menção à família, tratou apenas da família imperial e seus aspectos de dotação (capítulo III). Já a Constituição de 1891 - primeira republicana -, apesar de não abordar nada específico em relação à família, dispôs acerca do reconhecimento do casamento civil (§ 4º do artigo 72).

O Código Civil de 1916, sob grande influência do código napoleônico, fora elaborado a partir da Constituição de 1891. Desse modo, tinha como característica o patrimonialismo e matrimônio civil, com subordinação da mulher e filhos ao pai, e diferença entre os filhos nascidos dentro e fora do casamento (respectivamente legítimos e ilegítimos).

Guerras, golpes políticos, movimentos, revoluções, entre outras situações ocorridas no século XX impulsionaram novos valores e ensejaram transformações na entidade familiar. Exemplo disso foi a inserção da mulher no mercado de trabalho e sua independência financeira frente a uma cultura patriarcal, além do mais, a dita família “legítima” confrontava com os valores da sociedade, consubstanciada em desigualdades e discriminações.

Por esta razão, a Constituição de 1934 dispôs acerca da família. O modelo familiar permaneceu patriarcal, porém, passou a ter proteção jurídica (artigos 144 a 147), sendo estabelecidas regras, por exemplo, do casamento indissolúvel. Já a Carta Magna de 1937, trouxe pela primeira vez o direito da mulher casada em ter direitos iguais aos dos homens, o regime de separação obrigatória de bens, o direito aos alimentos da mulher desquitada, à dissolução do casamento, além de conferir tratamento igualitário entre os filhos naturais e legítimos, prevendo ainda a observância do dever de cuidado e garantias especiais à criança e ao adolescente, assegurando aos mesmos uma vida digna.

A Constituição promulgada em 1946 trouxe a possibilidade de estender os efeitos civis ao casamento religioso celebrado. A constituição de 1967, não trouxe inovações, apenas garantiu o exercício do poder político e sua perpetuação. Ocorre que, durante o regime militar foi promulgada a constituição de 1969, com origem na Emenda Constitucional nº 1, e na vigência de seu texto, foi promulgada a Lei do Divórcio (lei nº 6. 515/77), trazendo de modo inovador a possibilidade de separação dos cônjuges.

Por conta dos sintomas de decadência acentuada do patriarcalismo, somada a progressiva industrialização da economia, urbanização da população, universalização e aumento da escolaridade média, ocupação de todo o território e explosão demográfica, bem como o aumento da população e sua miscigenação, foram diluídos paulatinamente o papel da família, contribuindo, também, para que minguasse a dependência de cada indivíduo em relação ao seu núcleo familiar, e, portanto, ao seu chefe (HERKENHOFF, 2005, p. 234).

A promulgação da Constituição Federal do Brasil de 1988 começou a desconstituir a ideologia patriarcal, edificada em uma família monogâmica, parental, centralizada na figura paterna e patrimonial, e trouxe em seu texto princípios importantes relacionados à família, como a dignidade da pessoa humana, bem como o valor jurídico dado à afetividade e à solidariedade familiar. Somado a isso, cuidou de capítulos específicos relacionados à família, à criança, ao adolescente, além da igualdade entre homens e mulheres em direitos e deveres.

Diretrizes começaram a serem traçadas para proteção da criança e do adolescente. O poder familiar passou a ser uma imposição pelo artigo 227 da Constituição Federal brasileira. Quando do advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, a redação original do artigo 21 se referia ao pátrio poder; ocorre que, o Código Civil de 2002 optou pelo nomen iuris poder familiar (artigos 1.630 a 1.638), para designar o complexo de direitos e deveres que compete aos pais frente a seus filhos menores.

A nova expressão deixa clara a ideia de que compete a ambos os cônjuges o exercício de guarda e cuidado em relação a seus filhos, ao passo em que o pátrio poder se refere etimologicamente à figura do pai. Portanto, os pais deixam de exercer “poder” sobre os filhos, para assumirem “um dever natural e legal de proteção da sua prole, acompanhando seus filhos durante o natural processo de amadurecimento e formação de sua personalidade” (MADALENO, 2017, p. 688). Vejamos:

A expressão pátrio poder induzia à noção de um poder do pai sobre os filhos, afigurando-se incoerente com a igualdade dos cônjuges, indo de encontro à doutrina da proteção integral dos filhos como sujeitos de direitos, daí evoluindo para a denominação de poder familiar, a traduzir uma noção de autoridade pessoal e patrimonial dos pais na condução dos prioritários interesses dos filhos, embora melhor exemplo advém do tratamento direcionado pelo Direito argentino de atribuir aos pais responsabilidade e não apenas poder, pois os filhos, diante dos novos conceitos constitucionais, são pessoas que participam ativamente neste processo de sua educação e, de acordo com cada etapa de sua evolução, passando pais e filhos a interagirem (MADALENO, 2017, p. 689).

O vocábulo “poder” advém de posse, domínio, hierarquia, palavras típicas do regime patriarcal, contrapondo-se ao regime democrático, que pressupõe responsabilidade, cuidado e compromisso. Dentro deste novo conteúdo, o poder familiar compreende diversos deveres inerentes aos pais; como de sustento, guarda e educação, e o descumprimento destes deveres pode acarretar perda ou suspensão deste poder.

Desse modo, o artigo 3º da Lei n. 12.010/2009, extirpou definitivamente a expressão pátrio poder, substituindo por poder familiar, designando um conjunto de direitos e deveres tendo por finalidade o interesse da criança (LÔBO, 2005, p. 149).

A Emenda Constitucional n. 65/2010 e o Estatuto da Juventude (Lei n. 12.852/2013) trouxeram o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar comunitária como uma imposição de ordem pública aos pais. Assim como o Estatuto da Criança e do Adolescente, declarou princípios fundamentais, com a finalidade de pôr a salvo os direitos dos menores, consubstanciando-se com os princípios constitucionais trazidos pela Constituição de 1988.

O Estado brasileiro como República Federativa, anunciou em seu artigo 1º um Estado democrático de direito, assumindo, então, a democracia como elemento intrínseco a ele. Fato é que a democracia só se realiza se determinadas condições jurídicas estiverem presentes, que são os princípios e as regras estabelecidas pela Constituição. Ao mesmo tempo, a Constituição só adquire um sentido perene se estiver situada em um ambiente democrático.

São os direitos e deveres fundamentais que possibilitam o exercício dos cidadãos; e, para isso, as constituições devem permanecer abertas à interpretação, tendo em vista as diferentes mudanças sociais e temporais, além de outros fatores determinantes, que se tornam inevitável por conta do pluralismo inerente ao constitucionalismo.

É preciso levar em consideração as transformações da sociedade diante do tempo para que a Constituição possa promover novos direitos, a fim de que atrocidades não sejam repetidas. Diante desse novo texto constitucional, ocorre a reinterpretação do direito civil, com força normativa não apenas para se adaptar a uma nova realidade, e sim, com força ativa para impor tarefas. O direito civil constitucionalizou-se, afastando-se da concepção individualista, tradicional e conservadora das outras codificações, culminando na universalização e humanização do direito das famílias (DIAS, 2016, p. 46).

Inspirado pela Constituição de 1988 nasce o novo Código Civil de 2002, que se contrapondo ao modelo familiar estruturado pelo Código Civil de 1916, trouxe expressos direitos e deveres como igualdade entre cônjuges, no exercício do poder familiar, bem como na administração dos bens da família; ocorrendo assim, a repersonalização da família.

A família sofreu nas últimas décadas profundas mudanças de função, natureza, composição e, consequentemente, de concepção. O patriarcalismo que outrora havia feito com que a sociedade esquecesse a atração natural entre os seres humanos - affectus -, abriu-se a novas formas de constituição, mais flexíveis e plurais, baseadas nos laços de afetividade entre seus membros. A família, que antes existia apenas para ser transmissora de bens, passa a ser local de relacionamento. 

Tal mudança determinou novas feições principiológicas da norma constitucional e infraconstitucional, e o Direito passou a incorporar valores sociais, como um reflexo dessa mudança de paradigmas, voltando os olhos para o novo.

Por essa razão a função social da família é tão importante, pois é mecanismo que permite a incorporação desses novos valores sociais para dentro do ordenamento jurídico, a fim de que possamos interpretar o direito a partir do reconhecimento do atual conceito de família, inferido na Constituição Federal de 1988, a fim de tornar coerente as normas do ordenamento jurídico – direito como integridade.

Alguns autores preferem denominá-la de princípio; outros utilizam-se das expressões atributo, diretriz ou cláusula-geral; e outros autores, ainda, denominam-na de doutrina da função social ou ideia-princípio (GAMA; GUERRA, 2007, p. 4). Não obstante isso, para os fins deste trabalho, o termo função social é utilizado tanto no sentido de princípio, como no de cláusula geral, tendo em vista, sobretudo, que muitos autores consideram inexistir qualquer distinção entre ambas as categorias.

O que importa é conseguir compreender o seu real conteúdo e operacionalidade, de modo que, "a tutela da propriedade, do contrato, da empresa e da família passa a se vincular indissoluvelmente à noção de função social na perspectiva da legitimação do título dominial, contratual, empresarial e familiar, respectivamente" (GAMA; GUERRA, 2007, p. 4).

A mais antiga ideia de função social de que se tem notícia era aplicada à propriedade da terra. O Código de Napoleão (1804), fruto e veículo dessa ideologia, representou a afirmação máxima da função individual do direito de propriedade. Por outro lado, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, considerou a propriedade um direito inviolável e sagrado, mas já em um contexto histórico diferente, o do pós-guerra, sob a égide da perspectiva social que o Direito haveria de adquirir cada vez mais a partir de meados do século XX.

No Brasil, o legislador atuou de forma a intervir na economia, para produzir as desigualdades sociais e econômicas e atender os interesses básicos da população excluída, impondo sérias restrições às liberdades contratuais e de utilização da propriedade (GAMA; GUERRA, 2007, p. 7-8). Ao contrário da função social da empresa e do contrato, a função social da família, segundo esclarecem Gama e Guerra (2007, p. 36), não deriva da função social da propriedade, mas da inclusão desse grupo como base formativa da sociedade, como consta do art. 226, caput, da Constituição Federal.

Impossível imaginar que hoje seria possível, juridicamente, união estável entre pessoas do mesmo sexo, prestação de alimentos ao cônjuge culpado pela separação , ou a afetividade como sendo princípio que enseja a validação de fatos em direitos, como é o caso, exemplificativamente, da mãe ou do pai socioafetivo, contrariando o tão seguro exame de DNA ou a manutenção do nome de dois pais, para que não haja conflito entre o pai biológico e o pai afetivo. 

Tudo vem mudando. Antes, a mulher era a única responsável pela criação e educação dos filhos, além de cuidar das atividades domésticas; aos poucos, passou a ser incumbida também ao homem a participação nas questões familiares.

O próprio formato da família mudou e agora se fala em Direito das Famílias, pois passou a ser reconhecida a união estável, bem como união homoafetiva como entidades familiares. Além disso, mãe e pai passaram a gozar de licença maternidade/paternidade, e não mais, escassos cinco dias para os pais, também passando a ser possível a adoção por casais homossexuais.

Múltiplos arranjos familiares sempre existiram e novas formas de amor têm sido experimentadas pela sociedade e ainda não são reconhecidas pelo direito. A jurisprudência tem se dividido quanto a considerar lícita ou ilícita esta simultaneidade de relacionamentos familiares. O STJ e STF não reconhecem as famílias paralelas, tratando-as como concubinato e excluindo qualquer direito. Contudo, alguns julgados, mormente oriundos do TJRS, têm reconhecido e tutelado situações de simultaneidade conjugal, voltando os olhos para o novo e conferindo efeitos familiares às relações concubinárias.

A sociedade do século XXI é uma sociedade plural, complexa, diferenciada; logo, é evidente que para haver família não é preciso haver homem e mulher, pai e mãe, apenas pessoas conjugando suas vidas intimamente, por um afeto que as enlaça. Sérgio Resende de Barros (2002, p. 09), chega a afirmar que:

O afeto é que conjuga. Apesar da ideologia da família parental de origem patriarcal pensar o contrário, o fato é que não é requisito indispensável para haver família que haja homem e mulher, nem pai e mãe. Há famílias só de homens ou só de mulheres, como também sem pai ou mãe. Ideologicamente, a atual Constituição brasileira, mesmo superando o patriarcalismo, ainda exige o parentalismo: o biparentalismo ou o monoparentalismo. Porém, no mundo dos fatos, uma entidade familiar forma-se por um afeto tal – tão forte e estreito, tão nítido e persistente – que hoje independe do sexo e até das relações sexuais, ainda que na origem histórica tenha sido assim. Ao mundo atual, tão absurdo é negar que, mortos os pais, continua existindo entre os irmãos o afeto que define a família, quão absurdo seria exigir a prática de relações sexuais como condição sine qua non para existir família, Portanto, é preciso corrigir ou, dizendo com eufemismo, atualizar o texto da Constituição brasileira vigente [...].

A matrimonialização e a patrimonialização são fenômenos muito antigos na história da humanidade e surgiram naturalmente. Como fenômeno biológico e social, a família é estrutura básica e terreno fértil, onde o indivíduo cresce e se desenvolve física e psicologicamente, construindo seu caráter e desenvolvendo sua personalidade.

Por não ser um todo igual, cada estrutura familiar se apresenta de um modo distinto, e são essas variantes que levam o indivíduo a escolher o modelo familiar que lhe parecer melhor, e esse é um aspecto central, a adequação com o LAR: lugar de afeto e respeito (DIAS, 2016, p. 33).

Na sociedade contemporânea, novos valores inspiram a sociedade. Funda-se uma nova ordem social rompendo com a concepção tradicional de família. A característica fundamental da família passa a ser o afeto. Desse modo, pouco importa a “espécie” ou “tipo” de família na qual o indivíduo está inserido, o que deve ser levado em consideração é o seu fundamento, que deve ser a plena realização do ser humano, a fim de concretizar o bem-estar de seus membros.

Neste mosaico da diversidade, a única finalidade é a realização pessoal de cada um de seus membros, o respeito ao outro e a proteção de suas individualidades, por isso o afeto passou a ser parâmetro dentro das relações familiares, não sendo mais o biológico que impera, pois o ser humano é mais que isso.

REFERÊNCIAS

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HOBBES, Thomas. Leviatã: ou a matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Ícone, 2000.

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MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

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ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social: princípios do direito político. São Paulo: Revista dos tribunais, 2002.

SILVA, Cláudia Maria da. Indenização ao filho: descumprimento do dever de convivência familiar e indenização por danos à personalidade do filho. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese/IBDFAM, v. 6, n. 25, p. 122-147, ago./set. 2004.


[1] Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV), Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV), Assessora de Juiz no Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo (TJES). E-mail:

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Quais são os perigos de uma história única?

A consequência da história única é que ela rouba a dignidade das pessoas, torna-se difícil reconhecer a sua humanidade e consequentemente realça como somos diferentes, não como somos parecidos.

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A história única cria estereótipos, e o problema com os estereótipos não é que sejam mentira, mas que são incompletos. Eles fazem com que uma história se torne a única história.