ResumoO artigo objetiva, por um lado, analisar a relação existente entre os direitos indígenas e a garantia de territórios tradicionalmente ocupados à luz dos avanços na legislação nacional e internacional. Por outro lado, analisa em que medida a privação dos territórios aos povos indígenas e os conflitos gerados configuram fatores de risco para crimes de atrocidade, conforme delineado pela ONU no "Framework of Analysis for Atrocity Crimes – A tool for prevention" no âmbito da doutrina da Responsabilidade de Proteger. Show
direitos territoriais indígenas; responsabilidade de proteger; crimes de atrocidades AbstractThe article aims, on the one hand, to analyze the existing relationship between indigenous rights and the guarantee of traditionally occupied territories in the light of improvements both in national and international legislation. On the other hand, it analyzes the extent to which deprivation of the territories of indigenous peoples and the generated conflicts constitute risk factors for atrocity crimes, as outlined by the UN in the "Framework of Analysis for Atrocity Crimes - A tool for prevention" within the doctrine of Responsibility to Protect. indigenous land rights; responsibility to protect; atrocity crimes IntroduçãoDesde a década de 1980, o marco regulatório indigenista brasileiro, latino-americano e global vêm formalmente instituindo garantias de uma cidadania diferenciada aos povos indígenas, baseada no reconhecimento de suas especificidades culturais e no direito de conservá-las. No Brasil, com a Constituição de 1988, os povos indígenas adquiriram também o direito à demarcação das terras tradicionalmente ocupadas, rompendo com o modelo jurídico assimilacionista. Apesar dos avanços legais em direção ao reconhecimento de sua diferença cultural, os conflitos entre indígenas e ocupantes de terras têm-se agravado nos últimos anos e sido marcados por episódios de extrema violência. Este cenário tem se agravado diante da morosidade na demarcação das terras indígenas, aliado à crescente judicialização e, em muitos casos, à anulação de atos administrativos de demarcação por parte do Poder Judiciário e, por fim, com as propostas de alteração constitucional em curso no Congresso Nacional que, se implementadas, implicarão a supressão das garantias conquistadas pelos povos indígenas em 1988. Entretanto,
além de ser signatário de diversos instrumentos internacionais (nível interamericano e global) que protegem os direitos dos povos indígenas sobre seus territórios, sob a base do respeito à diversidade cultural, o Estado Brasileiro submete-se às resoluções adotadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas, dentre as quais a Res. 60/1. 2005 World Summit Outcome que estabelece a responsabilidade de cada Estado de proteger suas populações contra genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes
contra a humanidade, o qual se tornou o documento de maior autoridade sobre a doutrina da responsabilidade de proteger (R2P) (ROSENBERG, 2009ROSENBERG, Sheri P. Responsibility to Protect: A Framework for Prevention. Global Responsibility to Protect 09/2009; 1(4):442-477. DOI: 10.1163/187598509X12505800144837. O presente artigo objetiva avaliar o contexto do conflito territorial indígena brasileiro à luz do recente desenvolvimento da doutrina da responsabilidade de proteger (R2P). A R2P consiste em uma doutrina de prevenção que fornece um conjunto de ferramentas políticas para que os Estados possam agir quando configurados fatores de risco para crimes de atrocidade. Ela reconhece que a prevenção é a melhor forma de proteção porque os Estados-membro das Nações Unidas tem o compromisso primário com a responsabilidade de proteger suas populações, sobretudo as mais vulnerabilizadas. Já que as populações indígenas são extremamente vulneráveis e os conflitos envolvendo a ocupação de seus territórios os têm expostos à violência e privação de direitos básicos, justifica-se a relevância de se analisar a responsabilidade do Estado e de apontar os caminhos para uma atuação que previna crimes de atrocidade ou cesse seu cometimento. Para atingir os objetivos traçados, são relatadas circunstâncias e comportamentos que envolvem as disputas territoriais indígenas, coletadas por meio de notícias, relatórios, matérias jornalísticas e jurisprudência com a finalidade de avaliar a presença de fatores de risco para ocorrência de atrocidades, conforme delineados no “Framework of Analysis for Atrocity Crimes: a tool for prevention” (doravante chamado “Framework”) (UN, 2014). Realizou-se, ainda, revisão bibliográfica e pesquisa documental (legislação e jurisprudência) para problematizar as principais questões teóricas que o artigo endereça: o marco normativo-jurisprudencial dos direitos territoriais indígenas e os fundamentos e os modos de operação da responsabilidade de proteger. Povos indígenas, território e marco regulatórioDe acordo com o IBGE (2016)INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Atlas Nacional Digital do Brasil 2016. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/apps/atlas_nacional/>. Acesso em: 05 jul.
2016. Um dos aspectos considerados fundamentais para a sua expressão sociocultural é o território. Beltrão (2014)BELTRÃO, Jane Felipe. Território, terra e tradição segundo os Tembé Tenetehara em Santa Maria no Pará. In: Anais do VIII Congresso Nacional de Pesquisadores(as) Negros(as). Belém, ABPN/Paka-Tatu, 2014. (Meio Digital). observa que o território é compreendido como a
Território constitui espaços indispensáveis ao exercício de direitos identitários desses grupos étnicos. Nas palavras de Beltrão (2014)BELTRÃO, Jane Felipe. Território, terra e tradição segundo os Tembé Tenetehara em Santa Maria no Pará. In: Anais do VIII Congresso Nacional de Pesquisadores(as) Negros(as). Belém, ABPN/Paka-Tatu, 2014. (Meio Digital)., trata-se de uma “concepção ampla que diz respeito à vida, abrangendo não apenas bens materiais, mas agregando a produção de ambiente cultural no qual são desenvolvidas as formas de vida”, sendo que a materialização ou a base espacial do território é a terra. Entretanto, o reconhecimento da relação diferenciada dos povos com suas terras e sua noção de territorialidade a partir dos referenciais do pluralismo e do direito ao reconhecimento (LIPPEL, 2014LIPPEL, Alexandre Gonçalves. O conceito de terras indígenas na Constituição Federal de 1988: Crítica à decisão do Supremo Tribunal Federal no caso Raposa Serra do Sol. Curitiba: Editora CRV, 2014., p. 106) só foi introduzido, no Brasil, com a Constituição de 1988, e no direito internacional, a partir da Convenção nº 169, da OIT. Marco regulatório indigenista brasileiroDurante o período colonial brasileiro, vigoravam duas políticas indigenistas básicas: uma para os índios aldeados e considerados amigos e outra para os índios inimigos a quem se impunha a escravidão lícita e a guerra justa (PERRONE-MOISÉS, 1992PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período
colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA, Manoela Carneiro da (org.). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. P. 115-132.). Os colonizadores portugueses não deixaram de reconhecer a existência dos povos indígenas, mas com eles estabeleceram essa dupla relação e, no concernente aos “amigos”, empreendeu-se desde sempre uma política integracionista, “seja pelo casamento, pela catequese ou pela integração como “trabalhadores livres”
(SOUZA FILHO, 1998SOUZA FILHO, C . F. As Novas Questões Jurídicas nas Relações dos Estados Nacionais com os Índios. Rio de Janeiro: Apresentação no Seminário Bases para uma nova política indigenista, 1998. Disponível em: http://laced.etc.br/site/arquivos/05-Alem-da-tutela.pdf. Acesso em: 29 jun. 2016. Como observa Dantas (2014DANTAS, Fernando Antonio de Carvalho. Descolonialidade e direitos humanos dos povos indígenas. R. Educ. Públ. Cuiabá, v. 23, n. 53/1, p. 343-367, maio/ago. 2014., p. 344), “o itinerário dessa história é caracterizado pelo ocultamento e invisibilização da diversidade étnica e cultural, portanto, da negação da pluralidade de povos e culturas configuradoras da sociedade complexa e multicultural”. Porém, com a promulgação da Constituição de 1988, altera-se profundamente o paradigma sob o qual viria a ser regulada a questão indígena no país. Na Constituição de 1988, “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” foram mantidas entre os bens da União (art. 20, XI), mas, diferentemente das anteriores, o texto tratou de reconhecer aos povos indígenas o direito à diferença, ou seja, o direito de serem indígenas e de permanecerem como tais. O texto inovou ao estabelecer, no art. 231, não apenas o direito sobre as terras que tradicionalmente ocupam, mas de afirmar que esse direito é de natureza originária, ou seja, anteriores à formação do próprio Estado brasileiro, existindo independentemente de qualquer reconhecimento oficial. No Brasil, território étnico não deve ser confundido com terra indígena (BELTRÃO, 2014BELTRÃO, Jane Felipe. Território, terra e tradição segundo os Tembé Tenetehara em Santa Maria no Pará. In: Anais do VIII Congresso Nacional de Pesquisadores(as) Negros(as). Belém, ABPN/Paka-Tatu, 2014. (Meio Digital).). Terra indígena é a unidade territorial definida juridicamente e criada por meio de procedimentos administrativos, com vistas a garantir a determinado grupo um espaço geográfico para uso e reprodução social (OLIVEIRA, 2012OLIVEIRA, João Pacheco de. Terras Indígenas. In: LIMA, Antonio Carlos de Souza. Antropologia e Direito: temas antropológicos para estudos jurídicos. Rio de Janeiro/Brasília: Contracapa/LACED, 2012.). Estes procedimentos administrativos encontram-se previstos no Decreto nº 1.775, de 08/01/1996, e envolvem identificação, delimitação, demarcação e registro destas terras. O conceito de terras indígenas, mesmo que mais restrito que o conceito de
território, é, de qualquer forma, um desafio ao modelo proprietário-civilista do direito brasileiro, em que a propriedade privada é um espaço excludente e marcado pela nota da individualidade (DUPRAT, 2012DUPRAT, Deborah. Terras Indígenas e o Judiciário. In: BELLO, Enzo (org.). Ensaios críticos sobre direitos humanos e constitucionalismo. Caxias do Sul, RS: Educs, 2012.). O conceito de territorialidade é tão fundamental que partir dele os
povos indígenas definem a sua identidade, razão pela qual, observa Lippel (2014LIPPEL, Alexandre Gonçalves. O conceito de terras indígenas na Constituição Federal de 1988: Crítica à decisão do Supremo Tribunal Federal no caso Raposa Serra do Sol. Curitiba: Editora CRV, 2014., p. 106), “o fim étnico-cultural das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios significa o reconhecimento constitucional do seu valor e importância enquanto espaço
geográfico para o abrigo e a promoção da etnia indígena”. Neste sentido, Souza Filho (1998)SOUZA FILHO, C . F. As Novas Questões Jurídicas nas Relações dos Estados Nacionais com os Índios. Rio de Janeiro: Apresentação no Seminário Bases para uma nova política indigenista, 1998. Disponível em: http://laced.etc.br/site/arquivos/05-Alem-da-tutela.pdf. Acesso em: 29 jun.
2016. Entretanto, o reconhecimento constitucional de direitos territoriais dos povos indígenas no Brasil não condiz com uma maior sensibilidade e realização de seus direitos humanos (BENATTI et al, 2015BENATTI, José Heder; ROCHA, Ana Luisa Santos; PACHECO, Jéssica dos Santos. Populações Tradicionais e o Reconhecimento de seus Territórios: Uma Luta Sem
Fim. 7º Encontro da ANPPAS – 17 a 20 de Maio de 2015. Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade. Disponível em: http://anppas.org.br/novosite/index.php?p=viienanppas. Acesso em: 01 jul. 2016. Em relação ao Poder Judiciário, a tutela das demandas territoriais indígenas não tem sido, em geral, favorável. Apesar de o Supremo Tribunal Federal ter reconhecido a demarcação contínua da extensa área indígena Raposa Serra do Sol (1.747.464 ha), no julgamento da Petição nº 3.388, e assentado que os direitos dos povos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam são originários, instituiu, ao mesmo tempo, a tese do marco temporal, segundo a qual, verbis:
A disciplina relativa ao marco temporal tem sido aplicada em diversas decisões judiciais tomadas pelos Tribunais Regionais Federais2 2 No Tribunal Regional Federal da 1ª Região: 0000932-04.2006.4.01.3301/2006.33.01.000933-7. No Tribunal Regional Federal da 3ª Região: 0014619-22.2014.4.03.0000; 0009949-72.2013.4.03.0000; 0029036-48.2012.4.03.0000; 0018388-09.2012.4.03.0000; 0014619-22.2014.4.03.0000; 0030903-76.2012.4.03.0000. No Tribunal Regional Federal da 4ª Região: 5015672-86.2015.404.0000; 5005976-62.2012.4.04.7006/PR; 5006754-93.2015.404.0000/RS; 5006473-76.2012.404.7006/PR; 5003087-25.2014.404.7117/RS; 5009048-83.2014.404.7104; 5006476-31.2012.404.7006/PR; 5015171-35.2015.404.0000/PR; 5001335-13.2012.404.7012/PR; 5003393-35.2011.404.7202; 5042890-71.2011.404.7100; 5042890-71.2011.404.7100; 5003368-63.2013.404.7004; 5029771-95.2014.404.0000; 5003091-47.2013.404.7004; 5002178-24.2011.404.7008; 5006466-84.2012.404.7006; 5003371-18.2013.404.7004; 5003370-33.2013.404.7004; 5003368 63.2013.404.7004; 1977.70.00.033390-8; 00.0033388; 00.0048148-3; 00.0106932-2; 2004.70.00.015686-0; 00.0033390-5; 00.01048148-6; 89.0003960-1; 2004.70.00.015685-8; 0007253-41.2010.404.0000; 0025576-94.2010.404.0000; 0000543-68.2011.404.0000; 5019680-14.2012.404.0000; 5019681-96.2012.404.0000; 5019679-29.2012.404.0000; 5004607-88.2012.404.7117/RS; 5020423-87.2013.404.0000; 0027520-34.2010.404.0000; 5000599-41.2011.404.7202; 0028919-98.2010.404.0000; 5009982-47.2013.404.0000. Tribunal Regional Federal da 5ª Região: 200481000221571; 00025434820104050000. que visam a anulação de demarcação de terras, ao argumento da inexistência de presença indígena na área reivindicada em 5 de outubro de 1988. No STF, a aplicação dessa tese para o fim de anular demarcações já realizadas também vem se firmando, o que se verifica em dois recentes casos. O primeiro deles é o Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 29.087, em que a 2ª Turma do STF, por votação majoritária, deu provimento ao recurso e concedeu a segurança para declarar a nulidade do processo administrativo de demarcação de terra indígena Guyraroká, bem como da Portaria n. 3.219, de 7.10.2009. De acordo com o laudo antropológico que deu suporte à identificação da terra indígena, a comunidade Kaiowá está na área a ser demarcada desde os anos 1750-1760. Porém, nos anos 1940 começaram a ser expulsos de suas terras por pressão dos fazendeiros que as adquiriram por conta de políticas governamentais que ignoraram a presença indígena na área. No entanto, a comunidade indígena permaneceu na área, trabalhando em fazendas, praticando os hábitos de seus antepassados e mantendo laços com a terra. Com base em uma interpretação questionável do laudo, a maioria dos Ministros considerou que na data de 05/10/1988 os indígenas já não estavam na posse da área reivindicada, ignorando o fato de o relatório antropológico ter, também, informado que eles foram impedidos de ocupar regular e tradicionalmente suas terras. Com isso, anularam o processo administrativo de demarcação de TI Guyraroká. O mesmo entendimento já foi adotado posteriormente no julgamento do Ag. Reg. no RE com Agravo nº 803.462 MS, em 09/12/2014, no qual foi anulada a demarcação da TI Limão Verde, no mesmo estado do Mato Grosso do Sul. As decisões de ambos processos serão paradigmáticas para o futuro desfecho de casos de demarcação de terras indígenas no Brasil, haja vista ainda existirem vários processos judiciais discutindo demarcação de terras indígenas em curso no STF e nos TRF´s, nos quais se observa a circunstância da expulsão forçada das terras e a possível não ocupação efetiva (especialmente nos moldes do direito civil) na data de 05/10/1988. Outro problema que ameaça a proteção dos direitos territoriais indígenas é o Projeto de Emenda Constitucional nº. 215/2000. Esta emenda pretende alterar fundamentalmente o artigo 231 da Constituição Federal, em seus
parágrafos 1º e 2º, e acrescentar os parágrafos 8º ao 18, no sentido de restringir as futuras demarcações mediante aprovação pelo Congresso Nacional e observância da efetiva ocupação em 05/10/1988 (tese do marco temporal), vedar ampliação das demarcações já realizadas, retirar o usufruto exclusivo dos índios sobre as riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, permitir parcerias para fins de exploração econômica com não-índios, bem como a permuta destas terras (Brasil,
2000BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição nº 215-A, de 2000. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=42974111701B8B7E9D9FF73518588BC1.proposicoesWeb2?codteor=1288819&filename=Tramitacao-PEC+215/2000>. Acesso em: 30 out. 2015. Marco regulatório indigenista internacionalNo que se refere à legislação internacional relativa aos direitos humanos dos povos indígenas aplicável no Brasil, o §2º do art. 5º da Constituição de 1988 explícita e diretamente incorpora ao ordenamento jurídico doméstico os direitos e garantias decorrentes dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Ademais, de acordo com entendimento assentado pelo STF no julgamento do Recurso Extraordinário nº 466343/SP (Relator Ministro Cezar Peluzo em 03.12.2008), Tratados Internacionais de Direitos Humanos têm status normativo supralegal (MAUÉS, 2013MAUÉS, Antonio Moreira. Supralegalidade dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos e Interpretação Constitucional. Sur. Revista Internacional de Direitos Humanos. v. 10, n. 18, jun. 2013, p. 215-234.). E, por força do §3º do mesmo art. 5º, introduzido pela EC 45/14, tais tratados serão equivalentes às emendas à Constituição quando aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros. O reconhecimento da identidade diferenciada dos indígenas foi reforçado, no âmbito internacional, pela adoção do Convênio 169 da OIT, em 1989, pela Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, em 2007, e pela recente Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas, em 2016, sendo que o primeiro foi ratificado pelo Brasil em 2004 (Decreto nº 5.051) e os demais subscritos quando de sua adoção. Os três documentos assinalam que os indígenas têm direito a exercer e a gozar plenamente todos os direitos humanos e as liberdades fundamentais reconhecidos no direito internacional, sem nenhum tipo de obstáculos ou discriminação. Ditos documentos prescreveram aos povos indígenas a condição de sujeitos de especial proteção, substituindo a velha fórmula tutelar que pressupunha um necessário e inexorável destino de assimilação pela cultura dominante. No que concerne aos direitos territoriais, todos protegem o direito à propriedade das terras e territórios indígenas. Explicam Galvis Patiño e Ramírez Rincón (2013) que, no marco da legislação e da jurisprudência internacionais e comparada latino-americana3 3 COLÔMBIA, Sentença C-180 de 2005, 1/03/2005; COLÔMBIA, Sentença C-891 de 2002, 22/10/2002; PERU, Sentença STC 01126-2011-HC/TC, de 11/09/2012; NICARÁGUA, Sentença No. 123 de 2000, de 13/06/2000. , vem-se configurando um regime de proteção próprio da propriedade da terra, do território e dos recursos naturais dos povos indígenas. Segundo sentenças proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, a dimensão coletiva da propriedade dá-se no sentido de que a pertença não se centra em um indivíduo senão no grupo e sua comunidade.4 4 Corte IDH, Caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni vs. Nicaragua (Fundo, Reparações e Custas, Sentença de 31/08/2001, Serie C Nº 79, par. 149). Reconhece-se, ademais, que para os povos indígenas a propriedade comunitária é indispensável para garantir sua sobrevivência enquanto povo.5 5 Caso Povo Indígena Kichwa de Sarayaku vs. Ecuador (Fundo, Reparações e Custas, Sentença de 27/06/ 2012, Serie C No. 245, par.146 y 212). Vale ressaltar trecho do “Relatório sobre os Direitos dos povos indígenas e tribais sobre suas terras ancestrais e recursos naturais”, em que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos explica detalhadamente a conexão particular entre as comunidades indígenas, suas terras e recursos e a existência mesma destes povos:
Assim como em nível legislativo, no marco da jurisprudência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos e de alguns países latino-americanos, como é o caso da Colômbia, Nicarágua e Peru (como visto na nota de rodapé nº 5), foram significativos os avanços no reconhecimento dos direitos
indígenas diferenciados. No entanto, no Brasil, os indígenas estão longe de ter os direitos sobre suas terras protegidos ou mesmo reconhecidos. Segundo o Relatório da ONU sobre a situação dos direitos humanos e das liberdades fundamentais indígenas (ANAYA, 2009ANAYA, James (Relator Especial da ONU). 14 de agosto de 2009. Relatório sobre a situação dos direitos humanos e das liberdades fundamentais indígenas. A/HRC/12/34/Add.2. Décima Segunda Sessão do Conselho
de Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.ohchr.org/EN/Pages/WelcomePage.aspx> Acesso em: 21 dez. 2015. Diante da contradição entre o marco normativo e seu descumprimento, no qual se verificam inclusive tentativas de supressão do próprio marco, torna-se imperativo garantir os direitos indígenas já instituídos – em larga parte suficientes – e procurar mecanismos que possibilitem uma atuação adequada de um Estado responsável por suas populações. No âmbito da ONU, o desenvolvimento recente da doutrina da responsabilidade de proteger (R2P) constitui uma nova possibilidade para o incremento da proteção dos povos indígenas, na medida em que estabelece parâmetros de prevenção diante dos quais os Estados devem agir para impedir atrocidades que, neste caso, se relacionam intimamente com a privação territorial. A responsabilidade de proteger (r2p) e a prevenção de atrocidadesRefletindo sobre as experiências internacionais de intervenção no Kosovo, onde a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) agiu sem o mandato do Conselho de Segurança da ONU (CSNU), e de não intervenção em Ruanda, que resultou num genocídio, Kofi Annan escreveu um artigo no jornal The Economist intitulado “The Two Concepts of Sovereignty” (1999a), cujo conteúdo seria novamente mencionado em seu relatório anual à Assembleia Geral da ONU alguns dias depois, momento em que clamou por um novo consenso internacional apto a lidar com a realidade de ampla violação de direitos humanos (1999b). Em ambos, trouxe novos elementos para conceituar a soberania nacional de modo a afirmar a necessidade de busca de critérios mais objetivos para uma intervenção, sem que isso acarrete necessariamente no uso da força. O ex-secretário geral da ONU reconheceu que as forças da globalização e da cooperação internacional estão redefinindo a soberania dos Estados para concebê-los como instrumentos que servem a seus povos, e não o contrário. Portanto, se no plano internacional a soberania de um Estado deve ser respeitada por outros, no plano doméstico vai desvelar uma série de responsabilidades dos Estados para com seus integrantes (Evans; Sahnoun, 2002EVANS, Gareth; SAHNOUN, Mohamed. The Responsibility to Protect. Foreign Affairs, v. 81, n. 6, nov./dez. 2002, p. 99-110., p. 102)6 6 Para uma melhor compreensão da soberania como responsabilidade, ver: DENG, Francis Mading; et al.. Sovereignty As Responsibility: Conflict Management In Africa. Washington, DC: Brookings Institution, 1996. . Em 2001, a International Comission on Intervention and State Sovereignity (ICISS), formada no Canadá, lançou um relatório com base nestas contribuições da noção de soberania no intuito de resolver o dilema de que “se há um direito à intervenção, como e quando ele deveria ser exercido, e sob a autoridade de quem” (ICISS, 2001INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE SOVEREIGNTY (ICISS). The Responsibility to Protect: Report of International Commission on Intervention and State Sovereignty. Toronto: IRDC, 2001., p. VII). Este documento trata da questão alterando o foco do “direito de intervir” para a “responsabilidade de proteger”, optando por “uma avaliação das questões do ponto de vista daqueles que buscam ou necessitam de apoio, ao invés daqueles que poderiam estar considerando a intervenção” (ICISS, 2001INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE SOVEREIGNTY (ICISS). The Responsibility to Protect: Report of International Commission on Intervention and State Sovereignty. Toronto: IRDC, 2001., p.17). De acordo com Evans e Sahnoun (2002EVANS, Gareth; SAHNOUN, Mohamed. The Responsibility to Protect. Foreign Affairs, v. 81, n. 6, nov./dez. 2002, p. 99-110., p. 101), tal mudança de perspectiva traz três vantagens. A primeira é que, enfatizada a responsabilidade, e não a intervenção, “o holofote está de volta onde sempre deveria estar: no dever de proteger as comunidades de assassinatos em massa, as mulheres de estupros sistemáticos e as crianças da fome”. A segunda é afirmar que o Estado em questão é quem detém a responsabilidade primária e que a comunidade internacional somente agirá como responsável na falha manifesta (seja por inaptidão, seja por falta de vontade) do Estado. A terceira é que a responsabilidade de proteger é um “conceito guarda-chuva”, contendo em si não só a “responsabilidade de reagir” mas também a “responsabilidade de prevenir” e a “responsabilidade de reconstruir”, o que redimensiona os debates acerca de intervenções humanitárias. A noção de que o Estado é um garante cujas leis devem existir para o benefício de seus indivíduos não é nova. Em verdade, Hugo Grotius já a defendia, inclusive sustentando o cabimento de fazer guerra para prevenir maus-tratos do Estado em face de seus cidadãos (STAHN, 2007STAHN, Carsten. Responsibility to Protect: Political Rhetoric or Emerging Legal Norm?. The American Journal of International Law, v. 101, n. 1, jan. 2007, p. 99-120., p. 111). No entanto, vincular proteção à responsabilidade é dar um passo além, ainda mais quando a responsabilidade está compreendida como uma obrigação positiva contra violações massivas de direitos não só dentro do Estado, mas no âmbito da comunidade internacional (STAHN, 2007STAHN, Carsten. Responsibility to Protect: Political Rhetoric or Emerging Legal Norm?. The American Journal of International Law, v. 101, n. 1, jan. 2007, p. 99-120., 115). A grande aceitação do relatório se deu muito em função da forma pela qual trata a controversa questão da legalidade e da legitimidade de intervenções não autorizadas (STAHN, 2007STAHN, Carsten. Responsibility to Protect: Political Rhetoric or Emerging Legal Norm?. The American Journal of International Law, v. 101, n. 1, jan. 2007, p. 99-120., p. 104). Consta no documento a prioridade das decisões tomadas pelo CSNU (ICISS, 2001INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE SOVEREIGNTY (ICISS). The Responsibility to Protect: Report of International Commission on Intervention and State Sovereignty. Toronto: IRDC, 2001., p. 53), mas sem oferecer respostas exatas nos casos em que ele falha, deixando possibilidade para que também assumam uma postura rígida a Assembleia Geral, organizações regionais e coalizões de Estados (ICISS, 2001INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE SOVEREIGNTY (ICISS). The Responsibility to Protect: Report of International Commission on Intervention and State Sovereignty. Toronto: IRDC, 2001., p. 53-55). Para intervir, contudo, foi escrito que todos devem seguir os seguintes critérios: justa causa, intenção correta, último recurso, proporcionalidade dos meios e perspectiva razoável de sucesso (ICISS, 2001INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE SOVEREIGNTY (ICISS). The Responsibility to Protect: Report of International Commission on Intervention and State Sovereignty. Toronto: IRDC, 2001., p. 31-37). Estes critérios de legitimação de intervenção trazidos também são antigos e, à exceção do último, remontam à doutrina da guerra justa7 7 Conjunto de preceitos e regras que que legitimam moralmente uma guerra, cuja origem se encontra em Agostinho de Hipona, mas também verificada em autores como Tomás de Aquino, Hugo Grotius, Juan Ginés de Sepúlveda, Immanuel Kant e John Rawls. Foi utilizada ao longo da história para, dentre outras oportunidades, legitimar as Cruzadas e os conflitos com povos originários das Américas. (STAHN, 2007STAHN, Carsten. Responsibility to Protect: Political Rhetoric or Emerging Legal Norm?. The American Journal of International Law, v. 101, n. 1, jan. 2007, p. 99-120., p. 114). Por meio do “World 2005 Summit Outcome”, os Estados-membro das Nações Unidas assumiram o compromisso primário com a
responsabilidade de proteger (R2P) suas populações contra crimes de atrocidade, assim considerados o genocídio (Convenção sobre Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, de 1948), crimes de guerra (Estatuto de Roma), crimes contra a humanidade (Estatuto de Roma) e limpeza étnica (UNITED NATIONS, 2005UNITED NATIONS. 2005 World Summit Outcome, UNGA Res. 60/1, 16 September 2005. Par. 137 and 138. Disponível em: <http://www.un.org/womenwatch/ods/A-RES-60-1-E.pdf>.
Acesso em: 12 ago. 2015. A natureza jurídica deste compromisso é motivo de amplas discussões acadêmicas e políticas, não se chegando a um consenso. Os autores afirmam se tratar de uma norma emergente, de uma norma que pode tornar-se parte do direito internacional consuetudinário e de uma soft law.8 8 Para uma análise mais aprofundada, bem como de quais autores defendem cada uma das perspectivas, ver: PAYANDEH, Mehrdad. With great powers comes great responsibility? The concept of the Responsibility to Protect within the process of international lawmaking. The Yale Journal of International Law, v. 35, n. 2, 2010, p. 470-516. Classificá-la como norma emergente acarreta complicações, “posto que a responsabilidade foi desenvolvida não dentro de um vácuo normativo, mas sim dentro de um quadro normativo complexo” (PAYANDEH, 2010PAYANDEH, Mehrdad. With great powers comes great responsibility? The concept of the Responsibility to Protect within the process of international lawmaking. The Yale Journal of International Law, v. 35, n. 2, 2010, p. 470-516., p. 485). A partir disso, de acordo com Payandeh (2010PAYANDEH, Mehrdad. With great powers comes great responsibility? The concept of the Responsibility to Protect within the process of international lawmaking. The Yale Journal of International Law, v. 35, n. 2, 2010, p. 470-516., p. 482), tem-se que
É problemático atestar que ela já integra o direito internacional consuetudinário, pois sequer existia há mais de duas décadas, como também demandaria uma análise de práticas gerais de atores estatais, o que não se pode verificar, ou acompanhadas pela opinio juris, o que carece de objetividade (PAYANDEH, 2010PAYANDEH, Mehrdad. With great powers comes great responsibility? The concept of the Responsibility to Protect within the process of international lawmaking. The Yale Journal of International Law, v. 35, n. 2, 2010, p. 470-516., p. 488-490). Ainda assim, nada impede que ela futuramente seja parte do direito internacional consuetudinário. Deste modo, pode-se afirmar, a partir desta perspectiva, que responsabilidade de proteger não se enquadra nas fontes clássicas do direito internacional (convenções internacionais, costumes internacionais e princípios gerais do direito) (STAHN, 2007STAHN, Carsten. Responsibility to Protect: Political Rhetoric or Emerging Legal Norm?. The American Journal of International Law, v. 101, n. 1, jan. 2007, p. 99-120., p. 101). Consequentemente, ela não possui força vinculante, mas possibilita sanções diplomáticas, políticas e econômicas pelos Estados em casos de grave violação de direitos humanos (PAYANDEH, 2010PAYANDEH, Mehrdad. With great powers comes great responsibility? The concept of the Responsibility to Protect within the process of international lawmaking. The Yale Journal of International Law, v. 35, n. 2, 2010, p. 470-516., p. 508) e, caso deliberado pelo Conselho de Segurança da ONU, formas mais incisivas de intervenção. Mesmo sem poder vinculante, discursos e condutas de atores globais para a proteção de civis já estão sob sua influência e, mesmo sem status de norma jurídica rígida, possui conteúdo normativo. De acordo com os critérios apontados por Chinkin (2000CHINKIN, Christine. Normative Development in the International Legal System In: SHELTON, Dinah (ed.). Commitment and Compliance: The Role of Non-Binding Norms in the International Legal System. New York: Oxford University Press, 2000, p. 21-42., p. 30), a R2P pode ser classificada como uma soft law, pois articula-se de forma não vinculante, contém termos vagos e imprecisos e emana de corpos destituídos de autoridade de criação de leis internacionais. A responsabilidade também vale-se de normas e princípios já existentes, orientando sua interpretação para transformar as decisões jurídicas e políticas a partir do conjunto de seus diferenciados aportes sobre soberania e responsabilidade, cooperação internacional, intervenção e prevenção de atrocidades. De qualquer forma, através do 2005 World Summit, a comunidade internacional comprometeu-se a encorajar e auxiliar os Estados para a consecução da proteção, caso os Estados falhem em cumprir sua responsabilidade. Porém, este documento recua, quando comparado ao relatório do ICISS, ao afirmar que a responsabilidade de tomar uma ação mais decisiva deve se dar através do CSNU, mediante uma análise casuística e em conformidade com os capítulos VI, VII e VIII da Carta das Nações Unidas. Tal respeito é fundamental pois, conforme Cassese (1999CASSESE, Antonio. Ex iniuria ius oritur: Are we Moving towards International Legitimation of Forcible Humanitarian Countermeasures in World Community? European Journal of International Law, v. 10, n. 1, 1999, p. 23-30., p. 25), referindo-se às possibilidades posteriores à intervenção da OTAN na guerra do Kosovo, “uma vez que um grupo de Estados poderosos tenha se dado conta que pode escapar livremente das restrições da Carta da ONU e recorrer à força sem nenhuma censura, exceto a da opinião pública, uma caixa de Pandora pode ser aberta”. Isto não impede, importante frisar, que meios pacíficos ainda sejam empregados por outros atores, baseados na noção de cooperação internacional. Apesar do retrocesso textual, seu conteúdo adquire maior peso por ter sido contemplado em uma Assembleia Geral da ONU e pode ser visto como um ganho político para a comunidade internacional, já que fortalece o consenso acerca da doutrina. Em 2009 o Secretário Geral da ONU, Ban Ki-moon, lançou um relatório que resume e estabelece a estratégia de aplicação da R2P, aprimorando os parágrafos do World Summit Outcome. Tal estratégia é composta por três pilares. O
primeiro pilar aborda a responsabilidade do Estado de proteger a sua população; o segundo pilar estabelece o dever da comunidade internacional de ajudar os Estados a cumprirem sua responsabilidade de evitar e proteger; o terceiro pilar endereça à comunidade internacional a responsabilidade de tomar respostas oportunas e decisivas através de meios pacíficos e, se necessário através de outros meios mais fortes, de uma forma consistente com lei internacional. Os pilares um e dois constituem
elementos cruciais na prevenção de crimes de atrocidades em massa (KI-MOON, 2009KI-MOON, Ban. Implementing the Responsibility to Protect. A/63/677, 12 jan. 2009. Disponível em: <http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/63/677>. Acesso em: 12 ago. 2015. Rosenberg
(2009)ROSENBERG, Sheri P. Responsibility to Protect: A Framework for Prevention. Global Responsibility to Protect 09/2009; 1(4):442-477. DOI: 10.1163/187598509X12505800144837.
A R2P consiste em uma doutrina de prevenção – frise-se – e, embora seja entendida por alguns como outro nome para intervenção humanitária, ela surge justamente para repensá-la. Verifica-se que ela fornece um conjunto muito mais amplo de ferramentas políticas para afastar a necessidade de tal intervenção ao reconhecer que a prevenção é a melhor forma de proteção. Consequentemente, equipará-las é incorrer necessariamente em erro, tendo em vista que a intervenção humanitária se define como
Para Bellamy (2014)BELLAMY, Alex J.
Respostas internacionais às crises de proteção de pessoas: a responsabilidade de proteger e o surgimento de um novo regime de proteção. Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 104 | 2014, colocado online no dia 23 Setembro 2014, criado a 12 Agosto 2015. URL : http://rccs.revues.org/5680 ; DOI : 10.4000/rccs.5680.
Visando reforçar os meios de atuação preventiva, a Organização das Nações Unidas lançou em julho de 2014 o “Framework of Analysis for Atrocity Crimes: a tool for prevention”. Este documento contém ferramentas de análise para avaliar a configuração de fatores de risco para a ocorrência de crimes de atrocidade e não necessariamente para apurar evidências de que o crime está em curso. Ele lista uma série de oito fatores de risco comuns para todos os crimes, além de dois fatores de risco próprios para cada crime, totalizando quatorze (não enumera fatores de risco próprios para limpeza étnica). O objetivo é levantar o máximo de informações possíveis para o Estado, num primeiro momento, ter condições de agir de forma preventiva. Segundo o documento, a avaliação de risco exige uma coleta sistemática de informações precisas e confiáveis, baseadas nos indicadores e fatores de risco que ele identifica. Fatores de risco são condições que aumentam o risco
de suscetibilidade a consequências negativas, que inclui comportamentos, circunstâncias ou elementos que criam um ambiente favorável para o cometimento de crimes de atrocidade ou indicam potencial probabilidade ou risco de sua ocorrência. Por sua vez, os indicadores são diferentes manifestações de cada fator de risco e, por isso, ajudam a determinar o grau de presença de cada fator de risco (UNITED NATIONS, 2014UNITED NATIONS. Framework of Analysis for Atrocity
Crimes: a tool for prevention. United Nations: 2014. Disponível em: <http://www.un.org/en/preventgenocide/adviser/pdf/framework%20of%20analysis%20for%20atrocity%20crimes_en.pdf>. Acesso em: 04 ago. 2015. Conflitos territoriais indígenas e risco de atrocidades no brasilConsiderando-se o “Framework” e os eventos que cercam os conflitos territoriais indígenas no Brasil, passaremos a tratá-los e a verificar em que medida podem ou não se encaixar nas situações de risco para crimes de atrocidade enumeradas neste documento. Primeiramente, cabe mencionar que os conflitos envolvendo as terras indígenas no Brasil não são fatos isolados, recentes ou desconexos entre si, embora as regiões onde eles ocorram guardem suas particularidades. Observa Benatti et al. (2015)BENATTI, José Heder; ROCHA, Ana Luisa Santos; PACHECO, Jéssica dos Santos. Populações Tradicionais e o Reconhecimento de seus Territórios: Uma Luta Sem Fim. 7º Encontro
da ANPPAS – 17 a 20 de Maio de 2015. Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade. Disponível em: http://anppas.org.br/novosite/index.php?p=viienanppas. Acesso em: 01 jul. 2016. O Relatório da Comissão Nacional da Verdade (BRASIL, 2014BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Ord. em Mandado de Segurança n° 29.087/MS. Relator Min.
Ricardo Lewandowski; Relator(a) p/ Acórdão: Min. Gilmar Mendes. Brasília, 16 de setembro de 2014. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6937880>. Acesso em: 13 jan. 2015.
Durante estes processos de ocupação, verificaram-se inúmeros atos de violência contra a integridade física e cultural dos povos indígenas. No depoimento prestado pelo Guarani Damásio Martinez, é possível verificar, além das memórias da violência, a atuação das próprias instituições estatais de repressão no apoio da expropriação territorial:
Somente durante o período da ditadura militar brasileira (1964-1985), o Relatório da Comissão Nacional da Verdade (2014) contabilizou a morte de 3.500 indígenas Cinta-Larga (RO), 2.650 Waimiri-Atroari (AM), 1.180 Tapayuna (MT), 354 Yanomami (AM/RR), 192 Xetá (PR), 176 Panará (MT), 118 Parakanã
(PA), 85 Xavante de Marãiwatsédé (MT), 72 Araweté (PA) e mais de 14 Arara (PA). No entanto, o Relatório estima que a quantia de indígenas assassinados “deve ser exponencialmente maior, uma vez que apenas uma parcela muito restrita dos povos indígenas afetados foi analisada e que há casos em que a quantidade de mortos é alta o bastante para desencorajar estimativas” (Brasil, 2014BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Ord. em Mandado de Segurança n° 29.087/MS.
Relator Min. Ricardo Lewandowski; Relator(a) p/ Acórdão: Min. Gilmar Mendes. Brasília, 16 de setembro de 2014. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6937880>. Acesso em: 13 jan. 2015. O Relatório da Comissão Nacional da Verdade (2014) demonstra não apenas que os povos indígenas foram sistematicamente vítimas de espoliação de terras e de crimes contra sua vida e integridade física, mas também a ausência de reparação e punição aos perpetradores. A forma como as terras indígenas foram sendo expropriadas em favor da exploração econômica e ocupação por não-índios, processo intensificado desde a segunda metade do século XX com as políticas estatais de “colonização” de suas áreas, combinada com violações de direitos humanos básicos, como vida e integridade física e cultural dos índios, convergem para a caracterização do que o “Framework” descreve como indicadores de fatores de risco nos itens 2.1, 2.2, 2.7 e 4.2.10 10 Indicador de risco 2.1: Sérias restrições ou violações de direitos humanos ou do direito humanitário no passado ou no presente, particularmente no caso de assumir um padrão precoce de conduta e tendo como alvo grupos, populações ou indivíduos protegidos; Indicador de risco 2.2: Atos passados de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra ou sua incitação; Indicador de risco 2.7: Politização ou ausência de processos de reconciliação, ou da justiça de transição após o conflito; Indicador de risco 4.2: Interesses econômicos, incluindo os baseados na salvaguarda e o bem estar das elites ou grupos de identidade ou controle sobre a distribuição dos recursos (UNITED NATIONS, 2014). Apesar dos esforços da Constituição Brasileira de 1988 e da internalização de diversos instrumentos internacionais protetivos, que levaram à demarcação de muitas terras indígenas (ANAYA, 2009ANAYA, James (Relator Especial da ONU). 14 de agosto de 2009. Relatório sobre a situação dos direitos humanos e das
liberdades fundamentais indígenas. A/HRC/12/34/Add.2. Décima Segunda Sessão do Conselho de Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.ohchr.org/EN/Pages/WelcomePage.aspx> Acesso em: 21 dez. 2015. A população indígena mundial é composta por aproximadamente 370 milhões de pessoas - em torno de 5% do total mundial – e constitui mais de um terço das 900 milhões de pessoas que vivem em extrema pobreza em áreas rurais do mundo (UNITED NATIONS, 2015aUNITED NATIONS. State of the World’s indigenous peoples. 2nd volume. UN, 2015a. Disponível em: <http://www.un.org/esa/socdev/unpfii/documents/2015/sowip2volume-ac.pdf>
Acesso em 21 dez. 2015. Embora os indicadores sociais dos povos indígenas do Brasil sejam escassos, indicadores de suicídio e mortalidade infantil demonstram o quadro perverso de vulnerabilidade em que se encontram. O Relatório da Violência de 2014 do CIMI aponta que “[n]o período entre 2000 e 2014, pelo menos 707 indígenas cometeram suicídio no Mato Grosso do Sul. O estado, mais uma vez, foi o que mais teve ocorrências de suicídio registradas no último ano” (CIMI, 2014). Conforme dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), somente no ano de 2014 houve 135 casos de suicídios entre os povos indígenas, sendo 48 somente no estado do Mato Grosso do Sul. A faixa etária com maior número de casos no MS é a dos 15 aos 19 anos (36%), seguido de casos na faixa de 10 a 14 anos (17%) (CIMI, 2014). Outro indicador que atesta o grau de vulnerabilidade dos povos indígenas é o da mortalidade na infância, pois está relacionado às más condições de saneamento e de atenção básica à saúde. O Relatório de 2014 do CIMI apresentou dados obtidos novamente da SESAI que apontam um total de 785 mortes de crianças entre 0 e 5 anos em 2014. Como exemplo, a taxa de mortalidade do nascimento até cinco anos nos índios Xavante chegou a 141,64 por mil, enquanto que a média nacional registrada em 2013 pelo IBGE foi de 17 por mil (CIMI, 2014). A pobreza aguda, desnutrição e ausência de segurança alimentar, devastação ambiental que impede a produção de meios de subsistência e a ocupação econômica dos indivíduos da comunidade, escasso acesso à saúde e à educação que afetam as comunidades indígenas em geral compõem situações de instabilidade que colocam os indivíduos em um estado de estresse tão elevado a ponto de gerar ambientes propícios para atrocidades, o que vem indicado como fator de risco nos itens 1.7 e 1.9 do “Framework”12 12 Indicador de risco 1.7: Instabilidade econômica causada pela escassez de recursos ou disputas sobre sua utilização ou exploração c/c Indicador 1.9: Instabilidade econômica causada pela pobreza aguda, desemprego em massa ou desigualdades horizontais profundas (UNITED NATIONS, 2014). . Aliado à situação de vulnerabilidade socioeconômica, os registros de agressões e ataques contra a integridade pessoal e aos bens dos povos indígenas são absolutamente
atuais no Brasil, particularmente frequentes no Mato Grosso do Sul. É possível perceber, no Relatório do CIMI (2014), que no período de 2003 a 2014, 754 indígenas foram assassinados em solo brasileiro, em uma média anual de 68 casos. Destes assassinatos, 390 ocorreram no Mato Grosso do Sul, totalizando 51% dos assassinatos de indígenas. Também se evidencia que o número de homicídios cometidos em um ano quase triplicou. Enquanto em 2013 foram registrados 53 casos no Brasil, no ano seguinte foram
138 (CIMI, 2014). Alguns dos casos registrados dizem respeito ao assassinato de lideranças indígenas, como é o caso da Kaiowá Marinalva Manoel em 31 de outubro de 2014, o que demonstra o caráter de eliminação dos indivíduos que conduzem as pautas políticas dos povos indígenas. A ONU Mulheres Brasil pediu às autoridades rigor e celeridade na apuração da morte da líder indígena e divulgou nota em que manifesta "extremo pesar pela violência e pela truculência" com que ela foi morta
(AGÊNCIA BRASIL, 2014AGÊNCIA BRASIL. ONU Mulheres pede rigor na apuração da morte de líder Kaiowá, 2014. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2014-11/onu-mulheres-pede-rigor-na-apuracao-da-morte-de-lider-kaiowa>. Acesso em: 13 out.
2015. O CIMI (2014) também registrou, em 2014, 31 casos de tentativas de assassinato. Destas, 12 ocorreram no estado do Mato Grosso do Sul, sendo novamente o estado com o maior número de ocorrências. A título exemplificativo, destaca-se o caso de atentados a tiros contra a Terra Indígena Pyelito Kue, enquanto a comunidade realizava seu “kotyhu” (reza tradicional). Enquanto corriam para buscar abrigo, os tiros atingiam e rasgavam as lonas de seus improvisados barracos. Um dos barracos da comunidade chegou a ser incendiado e dias depois, motoqueiros voltaram a atacar a comunidade (CIMI, 2014). O recrudescimento da violência contra os povos indígenas em 2015, principalmente contra os Guarani e Kaiowá e Terena do Estado do Mato Grosso do Sul, foi tema
de nota pública emitida pela Anistia Internacional em setembro de 2015. A nota denuncia que “em 29 de Agosto de 2015, um membro da comunidade Ñanderu Marangatú do povo Guarani e Kaiowá, Simião Vilhalva, foi morto nos ataques contra a comunidade, supostamente por proprietários de terras e grupos paramilitares”. Além disso, destaca a ocorrência de novos ataques contra outra comunidade Guarani e Kaiowá, o Guyra Kambiý, mesmo após a visita de autoridades federais, incluindo o Ministro da Justiça, em
02/09/2015. Por fim, informa que o Ministério Público Federal do Mato Grosso do Sul determinou a abertura de um inquérito para investigar proprietários de terras privadas e forças paramilitares contra os Guarani e Kaiowá (ANISTIA INTERNACIONAL, 2015ANISTIA INTERNACIONAL. Nota pública: Anistia Internacional apela às autoridades brasileiras que protejam os direitos das comunidades Guarani-Kaiowá. 2015. Disponível em: <https://anistia.org.br/noticias/nota-publica-anistia-internacional-apela-autoridades-brasileiras-que-protejam-os-direitos-das-comunidades-guarani-kaiowa/>
Acesso em: 13 out. 2015. Os dados relativos aos ataques armados às comunidades indígenas ocupantes de áreas reivindicadas, amplamente noticiados pela imprensa brasileira e internacional, apontam para a presença do indicador de risco 7.8 (primeira parte) e 8.5 constantes no “Framework”13 13 Indicador de risco 7.8 – Crescente violação do direito à vida, integridade física, liberdade ou segurança de membros de grupos protegidos, populações ou indivíduos, ou recente adoção de medidas legislativas que afetam ou deliberadamente os discriminam; Indicador de risco 8.5: Ataques contra a vida, a integridade física, a liberdade ou a segurança dos líderes, indivíduos proeminentes ou membros de grupos de oposição (UNITED NATIONS, 2014). . No que concerne à atuação das forças de segurança do Estado diante dos ataques paramilitares às aldeias indígenas no Mato Grosso do Sul, o Procurador da República Ricardo Ardenghi refere, em reportagem veiculada pela Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo, que, em junho de 2015 solicitou “apoio da Força Nacional de Segurança para proteger a comunidade Kurusu Amba, sob ataque de fazendeiros e seus jagunços.” Este
apoio não foi dado, assim como a Polícia Federal que, requisitada pelo Procurador, recusou-se a ir ao local. Uma vez que ambas são subordinadas ao Ministério da Justiça, o procurador afirma que o órgão “agiu com grave omissão, desrespeitando os direitos constitucionais dos indígenas”. Deste modo, pediu à Polícia Civil do MS escolta, dirigindo-se pessoalmente para o local do confronto entre fazendeiros e indígenas (AGÊNCIA DE REPORTAGEM DE JORNALISMO INVESTIGATIVO,
2015AGÊNCIA DE REPORTAGEM DE JORNALISMO INVESTIGATIVO. Os jagunços cercam os guaranis, 2015. Disponível em: <http://apublica.org/2015/11/cercados-pelos-jaguncos/>. Acesso em: 26 nov. 2015. A impunidade dos crimes cometidos contra indígenas e suas lideranças é um fato naturalizado no Brasil, não só por ser algo
que ocorre há muito tempo, mas porque não se observa tendência de reversão (CIMI, 2014). A Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo publicou matéria jornalística que sintetiza a situação de impunidade de perpetradores e mandantes de assassinatos cometidos contra lideranças indígenas no contexto de conflitos fundiários no sul do Mato Grosso do Sul, demonstrando inclusive que se trata de um problema de longa data: “Os pistoleiros são os que mais incomodam, mesmo sendo apenas a ponta do
iceberg: eles fazem o serviço sujo aqui e ali, botam os funcionários da Funai para correr. Vivem protegidos nas fazendas dos mandantes, com a certeza da impunidade” (AGÊNCIA DE REPORTAGEM DE JORNALISMO INVESTIGATIVO, 2015AGÊNCIA DE REPORTAGEM DE JORNALISMO INVESTIGATIVO. Os jagunços cercam os guaranis, 2015. Disponível em: <http://apublica.org/2015/11/cercados-pelos-jaguncos/>. Acesso em: 26 nov.
2015. Mesmo que a violência contra o povo Guarani e Kaiowá venha se intensificando, medidas concretas em direção à investigação e punição dos perpetradores não têm sido tomadas com a mesma velocidade. Em entrevista concedida ao jornal “Estadão”, no dia 06/10/2015, o líder guarani Eliseu Lopes denuncia: Desde a morte do Marsal e de
várias outras lideranças, como o Durvalino, não vemos punição. Minha tia, uma anciã de 73 anos, também foi morta na frente da sua família, seus netos. O único caso na história que teve punição, depois de muita pressão internacional, foi o assassinato do guarani Nizio Gomes [morto em novembro de 2011], que teve um homem preso. E enquanto denunciamos isso, somos perseguidos, criminalizados e assassinados por fazendeiros, pistoleiros e políticos. Mas fazendeiro, no Mato Grosso do Sul, não é
qualquer um. Eles são políticos locais, deputados, juízes, filhos de juízes… Os ataques são feitos por pessoas qualificadas, pessoas que têm conhecimento. Por isso, nada tem punição. Para nós indígenas, principalmente os guarani kaiowá, o Mato Grosso do Sul parece uma terra sem lei. Matam indígenas como se fossemos animais. Para eles é, o discurso é “mata e deixa por aí que não tem punição” (ESTADÃO, 2015ESTADÃO. ‘Nosso sangue está sendo derramado’, denuncia
líder guarani kaiowá. Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/nosso-sangue-esta-sendo-derramado-denuncia-lider-guarani-kaiowa/>. Acesso em: 28 out. 2015. Os dados de ambas reportagens são corroborados por Tauli-Corpuz, relatora especial para assuntos indígenas da ONU, em pronunciamento oficial:
Além disso, há, por parte dos indígenas, desconfiança nas forças de segurança pública do Estado, em razão do uso contínuo e desproporcional da força policial, que inclusive utiliza balas de borracha e bombas de gás lacrimogênio, nos casos de reintegrações de posse determinadas pelo Judiciário. As ocupações de terra surgem como resposta à morosidade do poder público na demarcação de terras indígenas (CIMI, 2014)14 14 Nos dois últimos mandatos da Presidenta Dilma Roussef, foram declaradas 25 TI´s e demarcadas 21 TI´s (ISA, 2016b), sendo que mais da metade destes atos foram praticados no mês de abril de 2016 e representam mais da metade das declarações e demarcações feitas nos dois mandatos. De qualquer forma, é a Presidente que menos declarou e demarcou TI´s desde a Constituição de 1988. . As comunidades indígenas, assim, possuem alto nível de desconfiança em relação à atuação do Estado na proteção de sua integridade física, apontando para o que o “Framework” identifica como indicador de risco nos itens 2.4 e 2.8.15 15 Indicador de risco 2.4: Inação, relutância na recusa em usar todos os meios possíveis para parar graves violações de direitos humanos e direito humanitário previsíveis, planejadas ou em curso ou prováveis atrocidades, ou seu incitamento; Indicador de risco 2.8 - Desconfiança generalizada nas instituições do estado, ou entre diferentes grupos como resultado da impunidade (UNITED NATIONS, 2014). Por outro lado, têm sido frequentes as manifestações públicas com conteúdo depreciativo a respeito da identidade e do modo de vida diferenciado dos povos indígenas. Estas manifestações são proferidas não apenas por pessoas comuns - envolvidas diretas ou não na apropriação dos recursos dos povos indígenas -, mas por agentes estatais. Os servidores da Coordenação Regional da FUNAI de Campo Grande/MS, em carta aberta, informam que:
Chamam atenção dois episódios recentes, ocorridos no ano de 2013, em que dois deputados federais do Estado do Rio Grande do Sul proferiram discursos públicos com conteúdo altamente discriminatório contra os povos indígenas para agricultores ocupantes de terras reivindicadas como indígenas e sobre as quais existem conflitos. Em uma delas, o deputado federal Luis Carlos Heinze, do Partido Progressista do Rio Grande do Sul (PP/RS) afirmou que
quilombolas, índios, gays e lésbicas são “tudo o que não presta” (G1, 2014G1. Em vídeo, deputado diz que índios, gays e quilombolas ‘não prestam’, 2014. Disponível em: <http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2014/02/em-video-deputado-diz-que-indios-gays-e-quilombos-nao-prestam.html>. Acesso em: 28 out.
2015. Conforme o “Framework”, discursos de ódio são indicadores de risco na medida em que proporcionam um ambiente que conduz à comissão de crimes de atrocidade ou que sugere uma trajetória rumo à sua perpetração e, ainda, porque geram clima de instabilidade social com base em questões de identidade, o que vem identificado nos indicadores de risco 7.14 e 8.716 16 Indicador de risco 7.14: Crescente retórica inflamada, campanhas midiáticas ou discursos de ódio atingindo grupos protegidos, populações ou indivíduos; Indicador 8.7: Atos de incitamento ou campanhas de ódio destinados a grupos ou indivíduos particulares (UNITED NATIONS, 2014). . Por fim, vale agregar a esta análise final dois fatos já mencionados no item relativo ao marco regulatório indigenista brasileiro, que dizem respeito à atuação do Poder Legislativo e Judiciário. Em relação ao primeiro, a aprovação da PEC 215/2000 terá efeitos profundamente negativos sobre os direitos territoriais dos povos indígenas. A posição da Subprocuradora-Geral da República, Deborah Duprat, é a seguinte:
Em estudo de 2015, o Instituto Socioambiental (ISA) avaliou os impactos perversos sobre os direitos indígenas em decorrência de possível aprovação da PEC 215 e sistematizou-os da seguinte forma:
No que se refere aos processos judiciais em que se discutem os atos administrativos de demarcação de terras indígenas, há dois problemas principais. Via de regra, nestes processos, as comunidades indígenas não figuram no polo passivo porque se considera suprida a sua representação pela FUNAI e a produção probatória sobre o fato da expulsão forçada antes de 1988 (decorrência da aplicação da tese do marco temporal consolidada no STF por força do julgamento da Pet. 3.388) não tem sido
suficientemente realizada. De forma prática, o impacto destas decisões que aplicam a tese do marco temporal é altamente significativo e danoso, considerando-se a profunda interrelação entre direitos humanos dos povos indígenas e seus direitos territoriais (CIDH, 2010COMISSION INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS (CIDH). Derechos de los pueblos indígenas y tribales sobre sus tierras ancestrales y recursos naturales : normas y jurisprudencia del sistema
interamericano de derechos humanos. OEA/Ser.L/V/II. Doc. 56/09. 2010. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/indigenas/docs/pdf/Tierras-Ancestrales.ESP.pdf. Acesso em: 06 jul. 2016. Em relação à atuação legislativa e judicial do Estado Brasileiro, verificam-se dois indicadores de risco presentes no “Framework”, relacionados, respectivamente, à adoção recente de medidas legislativas que afetem ou discriminem determinada população e a existência de um marco jurídico nacional que não oferece uma proteção ampla e eficaz17 17 Indicador de risco 3.1 - Marco jurídico nacional que não oferece uma proteção ampla e eficaz [...]; Indicador de risco 7.8 – [...] recente adoção de medidas legislativas que afetam ou deliberadamente os discriminam (UNITED NATIONS, 2014). . No Brasil, verifica-se uma atuação do Estado em relação aos povos indígenas na contramão do que garantem a Constituição e as normas internacionais. Considerações finaisO “Framework” é um documento de grande valia para auxiliar os Estados a cumprir a obrigação de proteger suas populações vulneráveis. Ele permite identificar situações de risco às quais estas populações estão expostas e fornece subsídios para a atuação dos Estados no sentido de evitar que atrocidades ocorram. Trata-se de uma ferramenta de análise que dá condições para que os Estados ajam preventivamente. Segundo a doutrina da responsabilidade de proteger, o Estado Brasileiro deve observar as obrigações assumidas no marco do direito internacional dos direitos humanos e, diante da presença de diversos fatores de risco para crimes de atrocidades, não pode se abster de promover uma ação concertada no sentido de evitar que aconteçam, sob risco de perder mais sua credibilidade internacional enquanto expoente do Sul global, ensejando o constrangimento por parte de outros Estados e ocasionando uma eventual intervenção humanitária por falhar na proteção das populações circunscritas em seu território enquanto detinha condições materiais de fazê-lo. A análise dos casos de conflitos territoriais indígenas, em especial no Estado do Mato Grosso do Sul, em face do “Framework” aponta a configuração de situação de risco de atrocidade contra os povos indígenas, na medida em que estão presentes diversos indicadores. Por outro lado, o Estado Brasileiro vem sistematicamente descumprindo seu dever de proteger estas populações. Em primeiro lugar, porque se omite de atuar contra agentes não-estatais perpetradores de crimes contra a integridade pessoal e a segurança dos povos indígenas. Em segundo lugar, porque vem promovendo, por meio de seus três Poderes (Executivo, Judiciário e Legislativo), a deterioração das frágeis garantias obtidas na Constituição de 1988 e nos documentos internacionais ratificados ou subscritos em favor dos direitos indígenas. Até o momento, não se verifica a adoção da diligência devida na condução dos problemas que afetam os povos indígenas, mesmo que os atinjam em diferentes graus. Relativamente aos direitos territoriais, existe para estes povos uma relação intrínseca entre integridade pessoal, cultural e garantia de seu território. Assim, recentes medidas legislativas que visam dificultar ou até mesmo inviabilizar novas demarcações de terras e que permitem exploração econômica de terras indígenas por não-indígenas, aliadas à constelação de decisões judiciais que vêm aplicando a tese do marco temporal e anulando demarcações já realizadas são a condição de possibilidade para a violação de seus direitos humanos mais fundamentais: vida, integridade pessoal, liberdade, preservação de sua cultura e própria sobrevivência como povo. Negar o direito ao território tradicionalmente ocupado é negar a própria possibilidade de existir como povo, mas enquanto estes aguardam as demarcações e vivem precariamente em locais reduzidos ou improvisados, potencializa-se a sua vulnerabilidade e o risco de atrocidades claramente avaliado por meio da aplicação do quadro de análise das Nações Unidas. Referências bibliográficas
Qual foi a importância dos fatores econômicos para a existência de conflitos entre portugueses e brasileiros?Resposta verificada por especialistas
O Brasil era a principal colônia portuguesa, daqui saía a maior parte do ouro, do açúcar, do café que sustentavam Portugal.
Quais foram os conflitos políticos e econômicos entre brasileiros e portugueses?A noite das garrafadas - como ficou conhecido o conflito envolvendo portugueses que apoiavam d. Pedro 1° e brasileiros que faziam oposição ao imperador - foi um dos principais acontecimentos do período imediatamente anterior à abdicação do monarca, em abril de 1831.
Qual foi o conflito que envolveu Portugal e Brasil?
Como se deu o relacionamento entre portugueses e brasileiros?Os dois países compartilham uma língua e religião comum, sendo parte do mundo lusófono. Pela ligação histórica entre as duas nações, Portugal é chamada de "pátria mãe" do Brasil.
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