Como as atividades de mineração impactam o território da comunidade quilombola

Introdução

1Nas últimas três décadas, ganhou maior ímpeto ao redor do mundo o debate sobre os conflitos, injustiças e impactos socioambientais dos grandes empreendimentos de mineração contra grupos locais atingidos. O surgimento desta nova agenda política e científica faz parte da aproximação das universidades com Organizações Não Governamentais (ONGs) ambientalistas e defensoras de direitos humanos e com os próprios movimentos sociais atingidos, cada vez mais presentes (Bridge, 2004). Com isso, emergem do campo teórico análises que incorporam noções ecológicas e políticas.

2As resistências e os protestos contra a exploração mineral têm se repetido e estendido por vários países do mundo, em especial na América Latina, onde a mineração se tornou mais agressiva e os recursos minerais foram intensamente privatizados. A existência de conflitos em área de mineração não é um fato novo. No entanto, o que anteriormente se restringia a questionamentos contra os impactos provenientes da mineração e luta por direitos sociais, agora se transforma, cada vez mais, em oposições mais contundentes contra a implantação dos grandes projetos minerais, ou em movimentos antimineração (Coumans, 2011). Ressalva-se ainda, que o tema sobre os recursos minerais assumiu proporções nacionais em muitas nações, adquirindo certa centralidade no debate político-eleitoral antineoliberal (Hogenboom, 2012).

3Na América Latina, chamam a atenção os exemplos no Peru e na Argentina. Nestes dois países, os impactos – em especial, a contaminação da água, os impactos sobre a terra e o deslocamentos compulsórios – e os conflitos em áreas de mineração levaram à emergência de mobilizações coletivas na forma de movimentos sociais identificados como antimineração, denominados de Confederación Nacional de Comunidades del Perú Afectadas por la Minería (Conacami), fundado em 1999, e o movimento No a La Mina - Encontros de las Comunidades Afectadas por la Minería de la Argentina, criado em 2003(Cotarelo, 2005; Seoane, 2006; Echave, 2009).No mais, existem diversos movimentos de grupos atingidos por mineradoras que lutam na escala local por direitos sociais, pelo não prosseguimento dos empreendimentos ou por compensações frente aos danos territoriais e ambientais em países como: Guatemala, Chile, Equador, Gana, Turquia, Grécia, Inglaterra (People against Rio Tinto and Subsidiaries), Austrália, Filipinas, Papua Nova Guiné, Índia, entre outros (Bebbington, 2007; Bridge, 2004).

4Na Amazônia Brasileira, apesar da remoção de moradores em Barcarena-PA para instalação das fábricas de produção de alumínio da Albrás e Alunorte; dos impactos sociais e ambientais decorrentes da mineração de bauxita da Mineração Rio do Norte -MRN em Oriximiná-PA; dos conflitos no entorno do Programa Grande Carajás, onde a Companhia Vale do Rio Doce implantou o maior polo minero-metalúrgico da região; e dos efeitos negativos do projeto da Caulim Amazônia (CADAM) no vale do Jari em Almerim-PA nas décadas de 1970 e 1980, não se configurou, até o fim da década passada, nenhum movimento representativo de questionamento às mineradoras, ou de “atingidos por mineração”. O que existiu, até ao início do século xxi, foi a emergência ou o fortalecimento de movimentos sociais populares nas áreas sob influência das grandes corporações mineradoras, que, entretanto, não se lançavam a debater diretamente o uso dos recursos minerais, nem os efeitos socioespaciais provocados pela mineração, mas lutavam pelo direito à terra, ao território e por outros direitos essenciais do/a cidadã(o).

5Na literatura acadêmica e na prática política no Brasil, e especificamente na Amazônia, a categoria de “atingido por mineração” só surge como uma classificação adotada a partir de 2010, com o aparecimento do Movimento de Atingidos pela Vale, do Movimento dos Atingidos por Mineração (MAM), do Movimento Juventudes Atingidas por Mineração e do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração. Até então, a noção de “atingidos” limitava-se aos atingidos por barragens, cujo debate se encontrava amplamente difundido a nível nacional e internacional na esfera política e acadêmica (Vainer, 2008). No caso mineral, a noção de “atingido” não era diretamente uma categoria social em disputa, que pretendia legitimar os direitos de determinado grupo social impactado pela mineração, nem muito menos, a denominação de movimentos sociais críticos à lógica dos grandes projetos minerais. No entanto, se na prática política já existem alguns movimentos que se apropriaram do termo “atingidos” (ou “afetados”) por mineração na Argentina, no Peru e recentemente no Brasil, no meio acadêmico o debate e a definição do termo ainda são incipientes.

6Levando em consideração o estranhamento referente à não existência de um movimento de “atingidos por mineração” na Amazônia brasileira, até o princípio do século xxi, e a constatação da existência de difusas mobilizações populares em áreas de mineração na região, constatou-se pertinente investigar as características dos movimentos sociais existentes. Para desvendar a natureza dos movimentos sociais em áreas de mineração foram selecionados três casos em duas áreas diferentes, ambas na mesma sub-região da bacia Amazônica e destinadas à extração do mesmo minério, mas cujos períodos de instalação foram distintos. A proximidade geográfica e a extração do mesmo mineral permitiram enfatizar os processos sociohistóricos, uma vez que a formação espacial regional e os impactos provocados pelo modo de extração se assemelhavam.

  • 1 Na sua fundação, a MRN foi constituída por uma joint-venture composta de capital nacional e interna (...)

7A primeira área analisada situa-se no município de Oriximiná, onde a empresa de capital misto Mineração Rio do Norte1 atua desde 1974; já a segunda área está localizada em Juruti, onde a transnacional ALCOA – Aluminum Company of America iniciou o seu empreendimento em 2000 e a extração em 2008. Ambas as localidades encontram-se na sub-região Baixo Amazonas, estado do Pará, na Amazônia Oriental (ver mapa 1), e consistem em grandes projetos de extração de bauxita resultantes do planejamento público e privado, em contextos distintos de conjuntura política, econômica e de mercado. Os dados, que embasaram o presente artigo, foram adquiridos por meio de observações, entrevistas e aquisição de documentos junto dos principais grupos e instituições públicas e privadas envolvidas nos conflitos nas duas áreas de mineração estudadas. Entre 2004 e 2010, foram realizadas pesquisas de campo anuais (com exceção de 2008) nas cidades de Oriximiná, Juruti, Santarém e Belém. Em todas entrevistou-se lideranças, políticos e gestores públicos. Dentre os documentos fundamentais para execução da pesquisa estiveram: os Estudos de Impacto Ambiental (EIAs) e os vídeos referentes às audiências públicas da MRN em Oriximiná, de 2002, e da ALCOA em Juruti, de 2005; os planos de Manejo das Unidades de Conservação do IBAMA em Oriximiná (2001 e 2004); as duas Ações Civis Públicas do Ministério Público Federal – contra o licenciamento da ALCOA (2005) e sobre a demarcação dos assentamentos do INCRA em Oriximiná (2007); além dos Relatórios de Reponsabilidade Social e outros documentos de divulgação consultados nos sites das instituições e dos grupos envolvidos.

Mapa I – Incidência de bauxita na Amazônia Oriental Brasileira

Como as atividades de mineração impactam o território da comunidade quilombola

Fonte: Maria Célia Coelho

8As seguintes questões nortearam a pesquisa: existe uma relação direta entre os empreendimentos de extração mineral e as organizações sociais e mobilizações políticas que emergem ou se fortalecem nas áreas de mineração? Seriam as mineradoras as principais potencializadoras de conflitos e, por conseguinte, das ações sociais?

9Partiu-se do pressuposto de que existiam fortes indícios da relação direta dos grandes projetos minerais e seus impactos com o surgimento de organizações e movimentos sociais que lutavam por direitos básicos e territoriais. Deste modo, as correlações que se buscou explicar nesse estudo sobre as áreas de mineração na Amazônia foram:

  • Primeiro, a atividade mineradora provoca uma série de conflitos por seus impactos e ameaças sobre a situação socioambiental e territorial. Estes impactos e ameaças resultam na mobilização dos grupos sociais atingidos. Os indivíduos atingidos, até então desorganizados, ao experimentarem a situação de impactados, mobilizam-se para manter o modo de vida e o domínio territorial ameaçado (Wood, 2003). Por outro lado, as corporações articulam-se para assegurar os investimentos e os interesses voltados à exploração dos recursos minerais e com isso a reprodução do capital. Assim, emergem desta situação contraditória os conflitos em área de mineração.

  • Segundo, a instalação de um grande empreendimento, seja ele qual for, provoca uma série de institucionalizações. Os espaços antes periféricos e desprovidos de visibilidade tornam-se locais de interesses regional, nacional e até mesmo global, atraindo diversas instituições públicas e privadas de abrangência em diferentes escalas. Neste processo, os grupos locais tendem a organizar-se ou consolidar-se socialmente, fortalecendo-se para que possam negociar com as novas instituições (empresas, ONGs, órgãos do Estado, pesquisadores de universidades, etc.). As grandes corporações mineradoras apresentam elevado poder de influência política em múltiplas escalas. Do mesmo modo, os projetos de mineração possuem grande importância nas escalas local, nacional e global, devido à magnitude das transformações sociais, econômicas e ambientais que provocam. Até mesmo os movimentos sociais no entorno das áreas de mineração assumem um grau de importância acima do normal, inclusive tecendo elos sociais e financeiros transescalares.

10Acredita-se que as corporações mineradoras não são, necessariamente, a gênese dos movimentos sociais nas áreas em que operam. Todavia, elas geram impactos e ameaças que deflagram mobilizações sociais e conflitos, além de proverem maior visibilidade aos atores sociais locais, o que acaba por fomentar ou fortalecer os respectivos movimentos. Portanto, essas organizações estão intimamente relacionadas aos processos de conflitos, exclusão, opressão e injustiças vividos coletivamente nas regiões minerais, concebendo uma unidade social dos atingidos ou uma unidade de mobilização (Almeida, 2004). A assimetria de poder em relação à mineradora, aliada às relações preexistentes de solidariedade e de comunidade vivenciadas no espaço, completa a conjuntura ideal para a emergência e a consolidação dos movimentos populares em área de mineração na Amazônia. Os movimentos sociais em áreas de mineração, por sua vez, até o início do século xxi, não estavam voltados a questionar a mineração de maneira abrangente, mas sim a defender os seus direitos sociais, podendo inclusive conviver ou até tecer parcerias com as mineradoras. Deve-se destacar que as características destes movimentos eram semelhantes a outros movimentos no entorno de grandes projetos.

11Os três casos estudados são neste artigo postos como exemplos do que ocorria em distintas áreas de mineração na Amazônia até a década passada. Sendo assim, defende-se que os movimentos populares, para serem vistos e conseguirem que as suas reivindicações sejam ouvidas pelo Estado, simplesmente pressionavam as mineradoras, aproveitando-se da visibilidade da presença de uma grande empresa, mas sem o intuito de negar a atividade mineral. Assim, até os primeiro anos do século xxi, não existia um movimento antimineração na Amazônia, mas movimentos que reagiam aos impactos diretos ou indiretos das mineradoras e/ou pressionavam as grandes empresas como estratégia para alcançar o Estado e verem assegurados os direitos sociais básicos e ao território.

12No caso específico da mineração de bauxita na Amazônia, os principais impactos socioambientais decorrentes da atividade sobre as comunidades locais foram: a contaminação dos cursos de água (rios e lagos); o desflorestamento de mata virgem na área do projeto; o deslocamento compulsório de famílias; a proibição de acesso às áreas de uso coletivo; a construção de uma infraestrutura que exclui as populações locais; o surgimento de regras e normas territoriais que inviabilizaram as práticas tradicionais de uso do espaço e a consolidação dos direitos históricos sobre o território (com destaque para a demarcação de área de preservação da natureza sobre terras de populações tradicionais); e por fim, a atração de outros empreendimentos e atores econômicos que produziram impactos negativos acumulativos sobre a população do entorno mineral.

13O presente texto divide-se em quatro partes. As três primeiras seções dizem respeito aos estudos de caso analisados, sendo os dois primeiros relativos a Oriximiná e o último a Juruti. O primeiro caso enfoca o movimento das comunidades negras rurais no entorno da MRN, cujos impactos e conflitos datam da década de 1970 e perduram até o período atual. O segundo caso, também em Oriximiná, retrata a resposta das comunidades ribeirinhas afetadas com a expansão da exploração mineral no fim dos anos 1990 e no início da década seguinte. O terceiro e último caso destaca os conflitos e mobilizações ocorridas no entorno do projeto mineral da ALCOA em Juruti, já na primeira década do século xxi. Por fim, no último segmento, serão apontadas considerações referentes à comparação dos três casos analisados, as suas diferenças e similaridades, além de alguns indicativos do que diferencia os movimentos sociais em área de mineração até a primeira década do século xxi, com os recentes os movimentos antimineração no Brasil e na Amazônia.

O Movimento das Comunidades Rurais Negras de Oriximiná

14O primeiro caso analisa a mobilização das comunidades rurais negras e o surgimento da Associação dos Remanescentes de Quilombo do Município de Oriximiná (ARQMO) no entorno da Mineração Rio do Norte, no vale do rio Trombetas, em Oriximiná. Esta organização, que representa 32 comunidades rurais de negros descendentes de escravos (ou denominados quilombolas), divide-se em oito associações de referências territoriais, correspondentes às áreas demarcadas ou pleiteadas. As associações territoriais são pré-requisitos para demarcação e legalização coletiva da terra pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e pelo Instituto de Terras do Pará (ITERPA), podendo agregar uma ou mais comunidades. Cada associação territorial responsabiliza-se pelo controle e a gestão de um território titulado ou pretendido, mas mantém o vínculo institucional com a ARQMO. Esta centraliza as funções de representação, articulação, captação de recursos financeiros e execução de projetos de desenvolvimento nas comunidades negras. Todavia, nem todas as comunidades negras de Oriximiná estão vinculadas à ARQMO. Existem quarenta comunidades negras no município, sendo que apenas uma possui um movimento organizado dissidente e as outras não têm representação formal.

15A história dos negros do Trombetas é repleta de conflitos, relações de opressão e lutas vividas coletivamente na busca da proteção e da consolidação dos territórios. A fuga das senzalas, a formação do quilombo Maravilha e de outros territórios alternativos e a revolta da Cabanagem contra o escravismo no século xix; a relação de subordinação ao patronato castanheiro, a dependência do sistema de aviamento, e a submissão frente aos madeireiros durante o princípio do século xx, foram algumas das lutas e relações desiguais de poder vivenciadas no passado pelos quilombolas. Nas últimas quatro décadas, os conflitos e lutas foram travados contra as políticas estatais de desenvolvimento e os interesses capitalistas voltados para os grandes projetos de mineração, de hidroenergia e de preservação da natureza (Acevedo e Castro, 1993). Os laços histórico, familiar e de solidariedade construíram uma estreita relação e identificação coletiva entre as comunidades rurais negras do rio Trombetas. Em virtude desta proximidade, poderia demarcar-se um único território, definidor de uma “homogeneidade” cuja origem remete à mesma ancestralidade e construção histórica e espacial quilombola.

16Fundada em 1989, a ARQMO tinha como intuito fortalecer politicamente as comunidades negras na defesa dos direitos sociais e territoriais contra os interesses de outros atores, que se impuseram no planejamento territorial da bacia do Trombetas sobre as terras dos quilombolas. Constituiu também uma resposta aos impactos e às transformações decorrentes das políticas públicas e privadas de desenvolvimento regional, desde a década de 1970, com destaque para os projetos de mineração.

A ARQMO surgiu como uma resposta às invasões e ameaças contra os territórios quilombolas registradas a partir da década de 1970, quando se intensificou a ocupação da região. Data desse período a instalação da Mineração Rio do Norte que ocupou parte de suas terras; a criação da Reserva Biológica do Trombetas (REBIO), que impediu o acesso aos principais castanhais; a edificação pela ELETRONORTE de uma vila para implantação da hidrelétrica de Cachoeira Porteira, no Rio Trombetas; e ainda o aumento no número de fazendas e de ocupações de pequenos posseiros. (Comissão Pró-Índio de São Paulo, 2013)

17As disputas territoriais contra as corporações nacionais e transnacionais correspondem à origem recente das lutas dos negros de Oriximiná e, portanto, estão na gênese do processo de mobilização social. O movimento quilombola emergiu, assim, do processo de conflitos deflagrado pela mineradora e das suas políticas territoriais para a região. Os negros foram “atingidos” ao sofrerem perdas territoriais e ao terem o acesso vedado às áreas de extrativismo, o que impediu a prática da coleta de recursos da floresta dentro do território da MRN e da REBIO do Trombetas, uma das áreas de preservação ambiental proposta pela mineradora.

18Com a ameaça sobre os territórios de uso comum, promovida por grandes interesses econômicos das mineradoras, das empresas de energia e das políticas de preservação da natureza, dá-se a emergência das primeiras ações de mobilização e a formulação de questionamentos, num processo de tomada de consciência mediado pela Igreja Católica. A organização social em Comunidades Eclesiásticas de Base, sustentada na utopia da Teologia da Libertação (teoria amplamente difundida na Igreja Católica latino-americana na década de 1960) facilitou o processo inicial de mobilização e organização social dos atingidos pelos excludentes projetos de desenvolvimento em Oriximiná. Como estratégia central, incitou-se a fundação ou a conquista política das instituições sindicais, além da organização em associações representativas capazes de lutar pelo direito de permanência na terra.

19Durante o período de repressão e ditadura dos governos militares (1964-1985), eram as redes sociais e técnicas dos católicos que ecoavam os apelos dos negros contra as práticas violentas dos órgãos ambientais e contra as expulsões provocadas por grileiros e pelas empresas capitalistas, por meio da Rádio Rural e da Comissão Pastoral dos Direitos Humanos, de Santarém-PA (Comissão Justiça e Paz). Contudo, no período militar, as redes sociais dos grupos oprimidos amazônicos não exerciam qualquer poder de pressão perante o Estado ditatorial. Se por um lado a defesa pública contra os projetos de desenvolvimento regionais não era eficiente, por outro a resistência local era desmantelada constantemente pela repressão e violência da polícia estatal, mantendo assim as demandas “escondidas” no interior da floresta. Já os agentes capitalistas, sustentados por redes de interesses transnacionais, conseguiam exercer facilmente o poder sobre o território, a população e os recursos, com total respaldo e apoio das instituições públicas, as quais muitas vezes comandavam localmente. Consequentemente, os embates travados no campo das disputas territoriais contra o capital eram extremamente desiguais para os quilombolas atingidos.

20Após os subsequentes atos de repressão e derrotas amargados pela ocupação territorial da MRN e a consolidação da Reserva Biológica do Trombetas, nos anos 1970, que resultaram na expulsão de famílias das suas terras e na perda de acesso aos recursos naturais, os negros mobilizaram-se com maior veemência contra as futuras ameaças previstas para as décadas seguintes – o projeto ALCOA e a hidrelétrica de Cachoeira Porteira da ELETRONORTE (Centrais Elétricas do Norte do Brasil).

21A derrocada do Regime Militar e a transição para a Nova República desencadearam um fenômeno nacional de generalização das lutas sociais no campo e a diversificação geográfica e social, assumidas nas mais várias contradições com o capital (Grzybowski, 1987). A Constituição de 1988 impulsionou a emergência de diversos movimentos populares em defesa de direitos étnico-territoriais. No contexto quilombola, a afirmação étnica dos remanescentes de quilombos não surgiu a partir da denominação criada juridicamente na Constituição. O Artigo 68 da Constituição – que garante a propriedade definitiva das terras tradicionalmente ocupadas por remanescentes de quilombos – seria um produto histórico das mobilizações, dos embates e das lutas sociais pretéritas, que repercutiram socialmente dos lugares denominados de terras de preto, mocambos, lugar de preto, dentre outras denominações. Deste modo, o dispositivo constitucional representa um resultado prático no processo histórico de lutas sociais dos grupos negros rurais (Almeida, 2004).

22Com o apoio da campanha da fraternidade sobre raça da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 1988, a Igreja Católica, o Centro de Estudos e Defesa dos Negros do Pará (CEDENPA) e as comunidades rurais negras deste estado, com destaque para os negros do Trombetas, realizaram o I Encontro Raízes Negras em Alenquer-PA. No encontro, iniciou-se o resgate da cultura negra rural amazônica e intensificou-se a luta contra a hidrelétrica de Cachoeira Porteira. Em 1989, no segundo encontro organizado em Oriximiná, os remanescentes de quilombo, já mais politizados e organizados, juntamente com os seus aliados, decidiram fazer do evento um marco político. Fundou-se ali a ARQMO, como meio de luta contra a opressão dos grandes projetos e pela defesa do território dos negros em Oriximiná (Antunes, 2000). Desde então, foi traçado um novo rumo para o movimento quilombola de Oriximiná. Com a institucionalização do movimento em Associação teceram-se alianças nacionais e internacionais em defesa do território e, assim, contra a hidrelétrica, a ALCOA, a REBIO e a ação do órgão ambiental (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais - IBAMA).

23A ARQMO foi o resultado de uma cisão no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Oriximiná (STRO), cuja divergência se travou na estratégia dos negros de redirecionarem as lutas para a titulação coletiva das terras e por políticas étnicas, com enfoque na reconstrução da cultura negra. Esse fenômeno encaixa-se perfeitamente na teoria dos novos movimentos sociais, no âmbito da qual alguns autores apontaram para a ruptura dos movimentos de perspectivas classistas em favorecimento do enfoque étnico-cultural (Gohn, 1997; Scherer-Warren, 1993; Touraine, 1989 e 2006). Desta maneira, atores mais holísticos, como os sindicatos, perdem espaço político para novas instituições em defesa de direitos mais específicos, vinculadas às lutas do cotidiano, como as organizações de cunho étnico. Neste momento, abandona-se o velho conceito ideológico de classe camponesa e politizam-se novas denominações calcadas na construção do espaço vivido – seringueiro, castanheiro, ribeirinho, quilombolas, etc. (Almeida, 2004).

24Entre as comunidades negras de Oriximiná existia um sentimento anterior de grupo, construído no bojo das resistências coletivas passadas e recentes nas terras de preto. Nas últimas décadas, essa unidade social concretizou-se nos conflitos contra as ações autoritárias dos projetos mineradores, ambientais e hidrelétrico. O respaldo constitucional da definição de remanescente de quilombos, que assegurou às comunidades negras rurais o direito à titulação das suas terras tradicionalmente ocupadas em 1988, fortaleceu ainda mais a ideia de constituir uma entidade de defesa étnica separada das lutas sindicais do campo. Os quilombolas precisavam enrijecer-se enquanto unidade de mobilização, pois eram eles os mais ameaçados pelos grandes empreendimentos da região. Deste modo, há um afastamento natural do Sindicato Rural de Oriximiná, que manteve o apoio às lutas quilombola. O distanciamento torna-se um abismo a partir das novas alianças supralocais tecidas pelos negros e das vitórias territoriais alcançadas nas décadas seguintes.

25Na década de 1990, a ARQMO com o apoio da ONG Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP) partiu para ofensiva contra os abusos do órgão ambiental e da Polícia Federal (PF) na REBIO do Trombetas, que perduravam por mais de dez anos. Aproveitando-se das novas redes sociais e da democratização política, os quilombolas passaram a utilizar as vias institucionais como meio de luta, apresentando denúncias ao Ministério Público Federal (MPF). Como resposta, abriu-se uma Ação Civil Pública contra a PF e realizou-se uma reunião com as autoridades do IBAMA. Buscando uma gestão ambiental menos militarizada e mais humana, como propunha a Constituição de 1988, o órgão acenou para a retirada da PF, o abrandamento da repressão e a flexibilização das normas que criminalizam os negros no interior da Reserva Biológica.

26Para além do referido, o movimento negro promoveu manifestações e passeatas em espaços públicos contra os novos projetos de mineração e energia, que ainda ameaçavam os seus territórios. A audiência pública da ALCOA, em 1991, tornou-se um momento histórico de luta e resistência dos negros, quando explicitaram o desgaste e o desagrado com as políticas territoriais provenientes das ações da MRN e reafirmaram uma proposta alternativa ao planejamento daquele espaço (Acevedo e Castro, 1993).

27Atualmente, a ARQMO apresenta uma rede social multiescalar e consolidada. O fortalecimento local foi seguido pela articulação nacional e internacional, que deu maior poder de pressão ao movimento. A ARQMO é atualmente uma das entidades negras mais fortes da Amazônia, com grande poder de influência na Malungo – Associação das Comunidades Quilombolas do Pará – e importante oponente da Comissão Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ).

28A nível internacional, os quilombolas assessorados pela ONG CPI-SP, perante os conflitos ambientais e territoriais que se seguiram nas décadas de 1980 e 1990, decidiram dar maior visibilidade às injustiças sofridas em favorecimento dos interesses capitalistas e do crescimento econômico. Em 1990, em Paris, com financiamento de entidades internacionais, os quilombolas fizeram um apelo pela titulação das terras e contra os grandes projetos no Tribunal sobre “Povos da Floresta”, e, em 1992, no Rio de Janeiro, participaram da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (ECO-92/RIO-92), cuja articulação esteve a cargo de redes de ONGs.

29A potência do movimento reproduziu-se na prática. Em Oriximiná, as comunidades remanescentes vêm sendo assistidas por diferentes políticas públicas de cunho étnico. O município tornou-se uma excepcionalidade no conjunto da promoção das políticas públicas étnico-raciais no Brasil. A comunidade de Boa Vista, em Oriximiná, foi a primeira a receber uma titulação quilombola, em 1995. Hoje, com cinco territórios titulados, a ARQMO detém uma das maiores dimensões territoriais quilombola titulada e um dos maiores contingentes de famílias contemplados do país, com 361,8 mil hectares e 601 famílias.

30A magnitude das conquistas dos quilombolas de Oriximiná surpreende e chama a atenção sobre a relação das conquistas sociais, a efetiva atuação estatal e a presença da atividade mineral de grande porte. Seria uma singela coincidência a presença de uma importante mineradora, um forte movimento social e a ação frequente do Estado na forma de políticas de titulação de territórios quilombolas e assentamentos rurais, acrescidas de recursos financeiros, discrepando do restante do país e, principalmente, das políticas rurais na Amazônia?

31A presença da mineradora, associada à importância do volume financeiro mobilizado por ela, cria uma situação de centralidade que acaba por impulsionar as políticas públicas – não divergentes aos interesses do capital – e a formação ou consolidação de fortes movimentos sociais combativos. Esta centralidade propicia aos movimentos sociais nas regiões de mineração outra visibilidade, adquirindo uma nova importância regional, que lhes permite propagar as suas insatisfações, tecer redes de alianças em múltiplas escalas, fortalecer a luta, acessar mais facilmente o Estado e assim alcançar expressivas conquistas (Coelho, 2007).

32Nesta perspectiva, Coelho (2007) salienta que a criação de territórios de assentados rurais, quilombolas e indígenas na Amazônia Oriental não pode ser entendida como uma simples estratégia da empresa mineradora ou do poder público, com o intuito de controlar o acesso aos recursos naturais e a dinâmica populacional, nem apenas como reflexo da força dos movimentos sociais e seus apoiadores. São, portanto, processos sociais que entrelaçam diferentes atores e interesses presentes no espaço geográfico da região mineral. São, ao mesmo tempo, uma maneira da empresa assegurar o controle sobre o entorno mineral e uma conquista de direitos sociais reivindicados por movimentos locais organizados. Nas duas áreas de estudo, identificaram-se 10 áreas demarcadas para comunidades rurais no entorno das mineradoras. A partir de 1995, cinco áreas quilombolas e dois assentamentos rurais foram demarcados em Oriximiná. Em Juruti, onde existem três assentamentos, apenas um foi delimitado após a chegada da ALCOA. Porém, ele representa quase 75% das áreas de assentamentos e do número assentados do município (ver Tabela 1).

Tabela I – Áreas quilombolas e assentamentos rurais nos entornos minerais

Território rural

Município

Número de famílias

Extensão (ha)

Situação fundiária

Território Quilombola Boa Vista

Oriximiná

112

1 125, 0341

Titulado pelo INCRA, em 1995. Área restrita, entre o Projeto da MRN e a FLONA Saracá-Taquera

Território Quilombola Água Fria

Oriximiná

15

557,1355

Titulado pelo INCRA, em 1996.

Território Quilombola Trombetas

Oriximiná

138

80 887,0941

Titulado pelo INCRA e ITERPA, em 1997

Território Quilombola Erepecuru

Oriximiná

154

218 044,2577

Titulado pelo INCRA, em 1998, e pelo ITERPA, em 2000; Sobreposto pela Estação Ecológica do Grão-Pará, em 2006.

Território Quilombola Alto Trombetas

Oriximiná

182

61 211,96

Titulado pelo ITERPA, em 2003; Sobreposta pela Flota Faro, em 2006.

Assentamento ACOMTAGS

Oriximiná

1430

25 000

Demarcado pelo INCRA, em 2007, mas está sendo contestado pelo Ministério Público Federal.

Assentamento Juruti Velho

Juruti

1998

109 551

Demarcado, em 2006, mas encontra-se em litígio com os proprietários da Vila Amazônia e possui áreas de interesse mineral.

Assentamento Nova Esperança

Juruti

90

3 574

Demarcado pelo INCRA.

Assentamento Socó I

Juruti

400

35 946

Área demarcada pelo INCRA em 1997; a ferrovia da ALCOA atravessa os limites do assentamento.

Fonte: ARQMO, ITERPA e INCRA

33Depois de mais de uma década de convivência pacífica com a MRN, quando inclusive se desenvolveram projetos sociais e alianças entre a mineradora e os quilombolas, em 2012, a ARQMO e a ONG CPI-SP voltaram a questionar a atividade mineral. A futura expansão da extração mineral novamente para perto das comunidades quilombolas no rio Trombetas vem reacendendo o conflito. Os quilombolas, aparentemente, não se colocaram contra a mineração. Porém, não aceitaram qualquer atividade da empresa, nem mesmo estudos, nas áreas quilombolas antes da titulação e demarcação das terras e inclusive exigiram consulta prévia para aprovação da atividade pela comunidade. A princípio, a luta restringiu-se à regularização da terra e não ao tema mineral. Em 2013, foi lançada a campanha “Terra já, titulação e demarcação; mineração não”, em defesa do território.

Negociações e reivindicações dos caboclos ribeirinhos do lago Sapucuá

34O segundo caso pesquisado situa-se também em Oriximiná. Apesar da MRN ser vizinha às comunidades do lago Sapucuá desde a década de 1970, somente no fim dos anos 1990, com a expansão da extração em direção ao espaço ocupado pelas comunidades, é que os conflitos e as mobilizações sociais se deflagraram. O lago Sapucuá engloba quase 20 comunidades, com um vínculo de parentesco que as une fortemente. A história de ocupação do lago tem mais de duzentos anos e inclui a miscigenação de índios, negros e brancos, cujo primeiro registro data do início do século xx. A expansão da ocupação ocorreu de duas maneiras: pelo crescimento das famílias, que fundavam novos sítios na beira do lago e nos rios; e pela ocupação de novos migrantes, alguns possivelmente ex-soldados da borracha. No Sapucuá, as comunidades não são fechadas em características étnicas, como as comunidades quilombolas. Ou seja, estão abertas à entrada de novos integrantes, razão da existência de moradores imigrantes das últimas décadas do século xx. Mesmo assim, a maior parte da população compõe-se por ribeirinhos/caboclos descendentes de migrantes nordestinos de terceira e quarta geração.

  • 2 O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Oriximiná foi fundado na década de 1970, atrelado aos inter (...)

35Somente em 1998 surgiram as primeiras associações no Sapucuá, a partir do trabalho político conduzido pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Oriximiná,2 aliado à pressão do IBAMA, que pretendia organizar os indivíduos nas áreas de amortecimento da Floresta Nacional Saracá-Taquera (FLONA) e nas proximidades das futuras áreas de lavra da MRN. Até então, as famílias do Sapucuá promoviam normalmente as suas atividades agroextrativistas e de pequena pecuária, sem qualquer problema e com pouca regulação externa no território.

36As conquistas territoriais da ARQMO demonstraram aos outros grupos rurais tradicionais de Oriximiná a importância da mobilização social e, especialmente, a relevância de fundar uma associação representativa para a consolidação dos direitos sociais e territoriais. As experiências de luta e as conquistas territoriais quilombolas tornaram-se referências da possibilidade e da relevância de se travarem lutas pelos títulos coletivos da terra, e não por restritas demarcações individuais.

37Em 2001, a MRN iniciou o seu projeto de expansão da planta industrial para exploração do platô Almeida e Aviso, localizados ao Sul de Porto Trombetas – cidade-industrial que constitui a sede da empresa. Era a primeira vez que a mineradora saía do seu eixo inicial de exploração no rio Trombetas, e se deslocava para extrair nos platôs voltados para o Sul, cujos cursos d’água drenam diretamente para o lago Sapucuá.

38A Igreja Católica e o STRO promoveram algumas discussões nas comunidades que seriam atingidas, especialmente em Boa Nova, situada nas proximidades das futuras minas e cujos moradores acessavam frequentemente o platô Almeida para fins de extrativismo. O discurso empenhado pelo STRO e pela Igreja defendia a não privatização do espaço de uso vital para a subsistência das comunidades ribeirinhas. O STRO tentou propor um acordo pela demarcação e titulação das terras, acrescido da elaboração de um projeto de desenvolvimento rural financiado com 2% da receita oriunda da extração daquela mina.

39Os moradores da Sapucuá sempre estiveram excluídos das ações do poder público. Eram caboclos ribeirinhos que não possuíam títulos de terra, o que não lhes garantia qualquer direito jurídico concreto sobre o seu espaço de sobrevivência e encontravam-se ainda precariamente incluídos ou totalmente excluídos do acesso às políticas públicas. A sociedade dos caboclos sempre esteve mal incluída na sociedade amazônica. Diferente de outros povos da floresta, cujas identidades estão de alguma forma mais bem definidas, os caboclos ribeirinhos, pela sua heterogeneidade de modos de vida e de origens culturais, não assumiram uma identidade coletiva comum. Neste sentido, a sociedade cabocla é considerada o “resto”, ou seja, os que não se incluem em grupo tradicional nenhum: não-quilombolas, não-indígenas, não-seringueiros, não-quebradeiras de coco, não-etc. O próprio termo caboclo é enunciado pelos outros com sentido pejorativo e não como uma identidade social coletivamente construída e assumida.

40No lago Sapucuá, as divergências de interesses e os impactos da mineração não deflagraram conflitos declarados entre os atingidos e a corporação mineradora. As comunidades não se encontravam num nível de mobilização e conscientização que os levassem a defender uma proposta própria ou a formulada pelo Sindicato Rural. De fato, não houve a formação de um movimento constituído por indivíduos atingidos do lago Sapucuá. O que existiu foi um sindicato dos trabalhadores rurais combativo, colocando-se como instituição legítima de reivindicação dos moradores do campo atingidos pela mineradora e defendendo uma resolução mais justa das compensações, em alguns momentos até desconectada das vontades dos grupos atingidos.

41Com base no aporte teórico dos Novos Movimentos Sociais, tudo indicaria que, nos casos analisados, os sindicatos rurais estivessem ausentes dos conflitos atuais, limitando-se às atribuições administrativas burocráticas, tais como disponibilizar o acesso a benefícios como aposentadorias, créditos, assistências técnicas, etc. Contudo, não foi o que se observou no caso do Sapucuá. O sindicato rural colocou-se como principal defensor e articulador das comunidades atingidas. Possivelmente esta foi uma exceção, possibilitada pelas formas de atuação e pelo nível de consciência política dos líderes sindicais em Oriximiná, já que tanto no caso quilombola como em Juruti, os sindicatos exerceram um papel secundário, perdendo espaço para organizações étnicas de base comunitária e para ONGs.

42É recorrente, nos embates públicos nas áreas de mineração, que as empresas sejam colocadas como forasteiras, outsiders (Elias & Scotson, 2000), pelos grupos que desejam defender os seus direitos territoriais. Assim fizeram os quilombolas, na década de 1990, na audiência pública da ALCOA, ato repetido pelos atingidos no Sapucuá e em Juruti. Os atingidos questionaram ainda o direito de desmatar concedido à mineradora, que prejudicava o modo de vida agroextrativista, e exigiam justiça social e ambiental. Durante a audiência pública, em 2002, sobre a expansão da extração da MRN, o STRO organizou uma manifestação que, dentre outras pautas, questionava os riscos ambientais da exploração mineral (devastação das matas e perigos para os cursos d’água); clamava por mitigações e compensações pelas perdas socioambientais; denunciava a ausência do Ministério Público; e indagava sobre o futuro da região e dos povos da floresta.

43Por falta de coesão social, a ideia de “atingido” ficou restrita à comunidade de Boa Nova, não incluindo todas as comunidades do lago Sapucuá. A comunidade acabou sucumbindo às ofertas da MRN e do Estado. Do acordo surgiram algumas medidas compensatórias como: a construção do barracão comunitário, a instalação de microcisternas de água, a contratação de alguns moradores pela mineradora, a compra de sementes nativas dos coletores locais e da produção dos agricultores e a implantação de alguns programas sociais da empresa, ou em parceria com a prefeitura, voltados para a geração de renda.

44Com o intuito de inibir a exaltação dos ânimos incitada pelo STRO no Sapucuá, em 2003, a mineradora procurou atender o principal anseio das comunidades: a regularização da terra. A MRN comprometeu-se em arcar com os custos da demarcação e conseguiu trazer os órgãos públicos (ITERPA e INCRA) à região, para cadastrar as famílias. No cadastramento, com assessoria do Sindicato, confirmou-se o interesse da maioria das comunidades pela titulação coletiva da terra, ao exemplo dos quilombolas.

45Frente à demanda pela demarcação coletiva e seguindo o exemplo da ARQMO, o STRO organizou as comunidades no intuito de criar a Associação Comunitária das Glebas Trombetas e Sapucuá (ACOMTAGS). A Associação representou a união das comunidades do Sapucuá, com o objetivo de consolidar um território único. Na fundação, a ACOMTAGS significava apenas um pré-requisito burocrático para a titulação coletiva da terra, não se tratando de uma organização política contra a exploração mineral ou de luta por direitos territoriais.

46A atuação ativa do STRO, as referências vitoriosas da ARQMO e o incentivo do IBAMA, do INCRA e até mesmo da MRN causaram, no entorno da mineração, um processo de institucionalização das comunidades rurais por meio da consolidação de grandes associações territoriais nos últimos vinte anos. Assim, constatou-se a passagem de uma forma de organização socioespacial ordenada por comunidades rurais (divisão por povoado), para uma organização de conjuntos de comunidades definidas por agregações étnicas, de familiaridade ou por referencial geográficos comuns (os lagos, por exemplo), que redefinem os novos limites territoriais e de organização social dos povos ribeirinhos de Oriximiná.

47No entorno mineral em Oriximiná, contabilizavam-se, até 2009, 13 associações socioterritoriais. Dentre os quilombolas estão as oito associações territoriais organizadas pela ARQMO e a Associação de Moradores da Comunidade Remanescente de Quilombo de Cachoeira Porteira (AMORCREQ – CPT); e entre as associações dos caboclos ribeirinhos as seguintes: Associação das Comunidades das Glebas Trombetas e Sapucuá (ACOMTAGS), Associação das Comunidades do Médio Curso do Trombetas (ACOMCUT), Associação das Comunidades da Área Erepecuru e Cuminá (ACOMEC) e Associação das Comunidades de Pescadores Rurais do Lago Sapucuá (ACPLASA).

48O modo de organização socioespacial anterior em comunidades foi induzido pela ação da Igreja Católica, desde a década de 1970, com a formação de Comunidades Eclesiais de Base. Recentemente, a formação das novas organizações sociais foi incentivada por sindicatos, ONGs, igrejas e instituições públicas que defendiam a apropriação coletiva da terra e estimulavam as lutas sociais locais. Destacam-se ainda as políticas do governo federal para o campo na Amazônia, que desde 2003, através do INCRA, incentivam a formação de associações socioterritoriais representativas visando à titulação de assentamentos coletivos em áreas de ocupação tradicional, em substituição à política clássica de assentamento em lotes individuais.

49O estímulo à organização social não parte, única e exclusivamente, da necessidade de mobilização para transformar a relação desigual de poder. Os adversários nos conflitos também buscam definir quem são os seus oponentes, com quem se deve negociar, quem são os representantes legítimos e quem deve ser cooptado. O conflito contra atores difusos dificulta as formas de resolução dos problemas (Simmel, 1994). Por isso, há um estímulo crescente das mineradoras e dos órgãos públicos pela formação de instituições comunitárias representativas ou supracomunitárias nas áreas de mineração.

50Após quatro anos de incertezas, em 2007, o INCRA concedeu a demarcação de 25 000 ha de terras para ACOMTAGS, beneficiando mais de 1400 pessoas em 28 comunidades. Porém, a área estava repleta de outros grandes interesses. Encontrava-se dentro e na zona de amortecimento da Floresta Nacional e abrigava fazendas de pecuária de influentes famílias do município. Por outro lado, a proposta do INCRA contrariou os anseios das comunidades do lago e as suas entidades representativas, tendo em vista o fato de se ter limitado a titular na área de amortecimento da FLONA.

51Uma das principais lutas do Sindicato, na última década, foi reivindicar uma fatia de aproximadamente 10% da Floresta Nacional, acrescida da área correspondente a zona de amortecimento para titulação coletiva das comunidades caboclas ribeirinhas às margens do rio Trombetas e do lago Sapucuá. Segundo a moção impetrada pelo STRO, ARQMO, ACPLASA e outras organizações de Oriximiná, a FLONA, criada em 1985, nos últimos quatro dias do mandato do presidente da república José Sarney, foi “um ato antidemocrático recheado de autoritarismo e arbitrariedade – ainda sob o pensamento militar do regime ditatorial –, afastado da realidade, politicamente incorreto; socialmente excludente; economicamente, privilegiando a Mineração Rio do Norte”. A FLONA continua sendo duramente criticada, na sua função preservacionista, por hospedar a atividade mineral, que, segundo acusam as organizações, afetará mais de 30% da área de preservação até o fim do empreendimento, e por despossuir os povos tradicionais centenários do direito à terra e aos recursos naturais.

A resistência dos Ribeirinhos do lago Juruti Velho

52O último caso estudado corresponde aos conflitos e às mobilizações das comunidades tradicionais ribeirinhas do lago Juruti Velho no entorno do empreendimento da transnacional americana ALCOA, na primeira década do século xxi, no município de Juruti-PA. Trata-se de um projeto recente de mineração industrial, em um novo contexto político, econômico e social do país, que desenrolará de maneira distinta dos casos descritos anteriormente.

53A história da ocupação no lago Juruti Velho remonta ao período colonial, quando se fundou a Vila de Muirapinima para catequizar os índios da tribo Mundurucus. Em 1930, Muirapinima fez parte da Vila Amazônia, doada aos japoneses para promoção de cultivos agrícolas no Amazonas e no Pará. Nos anos 1950, a região atraiu muitos trabalhadores para as usinas de Pau-Rosa, que perdurou até 1970, quando a atividade declinou por escassez da matéria-prima. A partir de meados de 1970, chegaram com maior intensidade as madeireiras, prometendo melhorias sociais e ameaçando o controle territorial dos moradores tradicionais. Em todos esses momentos, apesar das diferentes atividades econômicas, a maior parte dos moradores do lago manteve um modo de vida agroextrativista pautado por uma economia de subsistência. Hoje, além das madeireiras, a transnacional de mineração ALCOA pressiona os territórios tradicionalmente ocupados, promovendo grandes transformações socioespaciais e culturais.

54Desde 1979, as madeireiras retiravam ilegalmente exorbitantes quantidades de madeira de lei da área da gleba Juruti Velho. O povo assistia imóvel à usurpação dos recursos naturais, limitando-se a denunciar aos órgãos públicos as irregularidades, que raramente eram averiguadas, ou, quando eram constatadas, não conseguiam ser contidas. A Igreja Católica, sem sucesso, tentou organizar um movimento em defesa da terra através da Pastoral dos Direitos Humanos, na década de 1980. Em 1999, após anos de indignação reprimida, restrita às reuniões comunitárias, a comunidade levantou-se contra os madeireiros, chamando a atenção do poder público. Mesmo após a reação, a extração continuou, provocando uma nova ação de repressão pela comunidade, em 2000, agora apoiada pela Polícia Federal.

55Sem dúvida, os conflitos contra as madeireiras fizeram parte da gênese da articulação da comunidade do lago de Juruti Velho como um movimento político em defesa do território. Porém, foi a resistência às ameaças do projeto ALCOA que intensificou os processos de organização e mobilização das comunidades. Em consequência, houve a consolidação do movimento com a instituição de uma forte entidade representativa das comunidades de Juruti Velho, a Associação das Comunidades da Região da Gleba Juruti Velho (ACORJUVE). Anteriormente, havia apenas a Associação dos Pequenos Produtores Rurais da Vila Muirapinima e outras cinco pequenas associações comunitárias, com pouco poder de representação, legitimidade e espacialmente restritas.

56Com a ameaça da ALCOA sobre as terras tradicionalmente ocupadas, especialmente as áreas de floresta, as reuniões entre moradores de diferentes comunidades tornaram-se mais frequentes. Os religiosos católicos eram os que mais tentavam alertar sobre os perigos de um empreendimento minerador de grande porte. Num destes encontros, por indicação do INCRA, decidiu-se formar uma grande associação que fosse mais representativa na luta pela terra coletiva e que seria a responsável legal pelo futuro assentamento rural. As conhecidas experiências de formação de grandes organizações comunitárias vivenciadas em Oriximiná também favoreceram na tomada de decisão. Em março de 2004, uma assembleia com mais de dois mil associados e unindo quarenta comunidades fundou a ACORJUVE.

57A nova associação significou a união de todas as comunidades do lago Juruti Velho em defesa do território coletivo. Se, no princípio, ela não existia unanimidade – especialmente nas comunidades evangélicas – hoje, com o fortalecimento político da instituição, a titulação do assentamento agroextrativista e a implementação de outras políticas públicas, quase a totalidade dos moradores e todas as comunidades do Lago estão associadas à ACORJUVE.

58Do conflito contra a ALCOA pela manutenção da terra e pela proteção dos recursos naturais renasce, como bandeira de luta, a antiga reivindicação das comunidades pelo título da primeira. Desde meados da década de 1990, os católicos buscavam criar uma consciência sobre a luta pela terra. Por meio de cartas ao INCRA e para políticos exigiam, sem sucesso, a titulação das terras da gleba Juruti Velho a favor dos comunitários. Com a pressão da mineração sobre as terras comuns e com a visibilidade que o empreendimento mineral alcançou, a luta pela terra também tomou outra dimensão. A ameaça sobre o território, somada aos conflitos antecedentes, criou um sentimento de identidade comum em torno do espaço do lago, sendo essa a unidade de referência à mobilização. Além disso, a visibilidade transnacional da empresa e a sua importância regional, nacional e internacional propiciaram que as demandas do movimento, antes restritas à escala local, fossem ouvidas em outras escalas de poder.

59A oposição à mineradora começa a assumir a forma de um movimento de resistência, após a primeira audiência pública, em março de 2005, na cidade de Juruti. Num primeiro momento, houve a aproximação da empresa em reuniões nas comunidades, para apresentar os argumentos, propostas e promessas empresariais. O trabalho de base da Igreja Católica estimulou a formulação de questionamentos críticos por parte dos moradores. Pairava no ar uma sensação de incerteza, mas muitos ainda eram a favor. A audiência foi um divisor de águas, onde se definiu quem estava contra e a favor da mineração. Mesmo com o crescimento do movimento, algumas comunidades mais próximas aos platôs, que seriam diretamente mais afetadas, não entram na luta e apoiaram a ALCOA, visando às muitas promessas feitas pela corporação transnacional.

60Foram as freiras da congregação dos Franciscanos de Maristela que iniciaram a articulação das redes sociais para questionar o projeto e as anunciadas benesses. Para adquirir maiores informações sobre os danos das grandes mineradoras, elas se aproximaram da Paróquia de Oriximiná, de onde trouxeram relatos sobre os conflitos e problemas causados pela MRN. A partir de então, as irmãs se lançaram a conscientizar o povo de Juruti Velho sobre os possíveis problemas da atividade mineral, com o suporte teórico e prático das suas redes sociais compostas por pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA), representantes dos quilombolas e do STR de Oriximiná.

61Aos poucos, os moradores de Juruti Velho foram se conscientizando de que o dito desenvolvimento não tinha como ponto focal a melhoria de suas vidas. Que os cinco mil empregos anunciados não eram para trabalhadores agroextrativistas, sem qualificação; e que os mil jurutienses contratados para a fase de obras, logo seriam demitidos com o fim do período de instalação. Constataram que a infraestrutura que estava sendo montada não tinha o objetivo de os servir e, em alguns casos, até os excluía. Além do mais, os moradores do lago poderiam vir a ser os mais prejudicados por deslocamentos compulsórios, perdas territoriais, escassez dos recursos naturais e a contaminação dos cursos d’água.

  • 3 1.º A participação de que trata a alínea “b” (o direito à participação do proprietário do solo nos (...)

62Os debates em torno do projeto de mineração reacenderam a movimentação em prol do título da terra. As comunidades colocaram como prioridade o controle sobre o território e passaram a pressionar os órgãos públicos e a empresa no sentido da regularização da terra. Com isso, durante a discussão do licenciamento ambiental, o INCRA assumiu no termo de conduta o compromisso de demarcar coletivamente o Assentamento Agroextrativista de Juruti Velho. A ACORJUVE, como forma de pressão, decidiu só aceitar promover qualquer negociação após a demarcação do assentamento rural pelo INCRA. Esta posição fez parte de uma estratégia que objetivava garantir a homologação do assentamento agroextrativista no lago Juruti Velho que, posteriormente, poderia representar uma forma de assegurar indenizações justas aos atingidos. Com a demarcação do Assentamento, a ALCOA foi obrigada, pelo artigo 11 do Código Mineral, que assegura ao proprietário do solo o direito à participação nos resultados da lavra3 a repassar uma quantia em dinheiro referente à participação na produção das lavras localizadas no interior do Assentamento. Em 2006, os 109 551 hectares do Assentamento foram demarcados, e, em 2010, os moradores passaram a receber os valores referentes à participação na exploração mineral. A partir de então, fortalecido interna e externamente, o movimento iniciou novos acordos compensatórios com a ALCOA para projetos de curto e longo prazo.

63A luta de resistência à ALCOA inicialmente foi travada de forma pacífica pela via da negociação, das denúncias nos meios de comunicação e das mobilizações em espaços públicos e nas audiências. A ocupação da área de lavra ou dos canteiros de obra sempre era cogitada como estratégia para pressionar o setor público e privado, e acabou sendo efetuada pela primeira vez em 2009. Mesmo com a radicalização do conflito, os principais aliados do movimento de resistência, os Ministérios Públicos Federal e Estadual e a Igreja Católica tentaram manter a luta pelas vias legais e da pressão política não desobediente às leis. As comunidades do lago passaram a boicotar as atividades e projetos sociais propostos pela transnacional e a reprimir outras mineradoras que buscavam promover pesquisas geológicas na área da comunidade, alegando que não estavam interessados em novos projetos que ameaçassem a natureza e o território. A resistência do povo de Juruti Velho tornou-se tão forte e atingiu uma visibilidade tão significativa, que surpreendeu a própria transnacional. A mineradora não esperava tanta hostilidade e resistência ao empreendimento na paupérrima e carente região amazônica.

64A atuação da Igreja em Juruti ultrapassou o método clássico de reunir os oprimidos em comunidades (CEBs), e assumiu uma posição central, na figura da irmã Brunilde, dando características específicas e influindo diretamente na organização do movimento. Como colocou um dos entrevistados: “a irmã é a estrela guia e eles são o povo da irmã Brunilde, principalmente os líderes comunitários” (2006). As redes sociais de alianças em Juruti foram sendo lentamente costuradas. Nem mesmo os isolamentos físico, econômico ou de acesso aos meios de comunicação deixaram que o conflito ficasse restrito ao interior da floresta Amazônica. A rede de internet foi o meio para divulgar em múltiplas escalas as contestações e as situações conflituosas. O apoio de ONGs ambientalistas da Amazônia, em especial a rede Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), foi fundamental para propagar as denúncias. As freiras, com suas redes sociais a nível global, conseguiram articular importantes alianças internacionais, capazes de fortalecer a luta pela terra.

65Diferente dos casos em Oriximiná, onde os conflitos não se delinearam de forma explícita no embate entre mineração e grupos locais atingidos, pois havia outros atores intermediários nos conflitos, como IBAMA e a empresa de energia elétrica ELETRONORTE, por exemplo. Em Juruti, o conflito ocorreu declaradamente entre os atingidos e a mineradora. Com isso, cabe-nos caracterizar o movimento emergente em Juruti como um movimento de resistência ao projeto ALCOA, mas cuja demanda inicial e a identidade coletiva estavam na base territorial. Os conflitos se deram no confronto direto com os interesses territoriais da mineradora, sendo esta indicada pelos atingidos como o inimigo e o problema a ser vencido. Enquanto isso, em Oriximiná, os interesses do capitalismo minerador foram escamoteado pela ação de instituições públicas como o IBAMA. O órgão ambiental portou-se como o “guardião” territorial da mineradora, exercendo a proteção do entorno do território de extração por meio das áreas de preservação, se colocando no centro do conflito social e afastando a MRN do foco.

66A partir de 2012, o movimento de Juruti assumiu um perfil mais próximo ao movimento antimineração. A ACORJUVE aliou-se a outras organizações do campo e da cidade de Juruti indignadas com a atuação, os impactos e as falsas promessas da ALCOA e com o não desenvolvimento local anunciado. Desta união surgiram dois movimentos, o “Movimento Acorda Juruti” (2012) e o “Movimento Juruti no Limite” (2013), que vêm buscando unificar as denúncias e as demandas sobre a transnacional, a fim de pressionar a mineradora e o poder público a cumprirem as promessas e acordos firmados antes da instalação, assim como democratizar o debate e os benefícios do prometido desenvolvimento.

Considerações finais

67Para fins de conclusão, este estudo defendeu que a peculiaridade dos movimentos sociais em área de mineração não se restringe à posição geográfica. Os movimentos sociais nas áreas de mineração são inclusive constituídos nos conflitos deflagrados na relação contraditória e dialética com as corporações mineradoras. A posição geográfica é também uma das razões que confere potencial aos movimentos. A presença das grandes mineradoras, associada à pressão sobre a mesma, gera maior visibilidade as demandas sociais dos movimentos locais. Pressionar as empresas é um atalho para alcançar o Estado, assim como, uma forma de fazer a mineradora agir (Coelho, 2007).

68Em Juruti e em Oriximiná, as populações locais apresentavam relações de parentesco, uma convivência de intensa solidariedade, o uso coletivo dos recursos e as histórias comuns de opressão e perdas no espaço vivido que moldaram a base social para emancipação dos movimentos. No entanto, somente a partir da relação desigual de poder, de conflitos sociais com as mineradoras e dos impactos correlatos à atividade surgiram as mobilizações e ações sociais no entorno das áreas de mineração, que se materializam em organizações políticas formais de lutas por direitos. As experiências e os sentimentos gerados em conflitos passados e presentes funcionaram como o cimento da união e da solidariedade entre os atingidos, que recriaram antigas identidades sociais e territoriais num processo de resistência dos sujeitos e ressignificação do espaço.

69Os conflitos nas áreas de mineração estudadas não se sintetizam na oposição mineradoras versus grupos atingidos. Eles envolvem uma variedade de instituições e atores com diferentes interesses e planejamentos para o mesmo espaço geográfico. Constituiu-se, nestas regiões, uma conjuntura de reordenamento espacial, campo de poder, conflito territorial e desequilíbrio ambiental, composta pelos seguintes atores:

  • os grupos previamente estabelecidos atingidos pela mineradora, lutando através de organizações da sociedade civil (ARQMO ACORJUVE e STRO) por direitos territoriais-ambientais, étnicos ou consuetudinários;

  • as grandes corporações nacionais, transnacionais ou joint-venture visando a reprodução do capital pela extração mineral (ALCOA e MRN);

  • o Estado, com suas políticas territoriais repletas de ambiguidades e de interesses políticos, econômicos e ideológicos (governos municipais, estaduais e federais e seus respectivos órgãos – INCRA, ITERPA, IBAMA, Polícia Federal, Ministérios Públicos federal e estadual);

  • outras empresas públicas e privadas inseridas no planejamento regional estatal e produtoras de impactos acumulativos (ELETRONORTE);

  • as Igrejas Católicas, interessadas na emancipação política e religiosa das comunidades pobres, e as Igrejas Evangélicas, em geral, ausentes dos conflitos;

  • as ONGs e os pesquisadores das Universidades Públicas, que subsidiam cientificamente os discursos e organizam ações e projetos em ambos os lados do conflito (CPI-SP, GTA, UFPA e CEDENPA).

70Tais atores foram os encontrados nas duas áreas e nos três casos estudados, mas não esgotam as possibilidades. Outras áreas de mineração podem apresentar outros tipos de organizações, instituições ou sujeitos sociais. Contudo, os atores sociais envolvidos nos conflitos sempre promovem relações sociais, por vezes convergentes, outras vezes divergentes, e ainda travam alianças ou embates, pretendendo constantemente atingir os seus respectivos interesses individuais ou coletivos. Nenhum dos atores, nem mesmo os movimentos sociais populares, podem ser vistos de forma homogênea, pois no interior de cada um deles há diferenças, divergências, contradições e disputas de poder.

71Os três casos apresentaram algumas similaridades nas alianças e divergências durante os conflitos. O papel central da Igreja Católica como articuladora e apoiadora dos movimentos sociais deve ser destacado. Os católicos repetiram essa forma de atuação também em outras áreas da Amazônia, inclusive articulando os próprios atingidos por mineração na região amazônica e transmitindo as experiências vividas em diferentes áreas. Por outro lado, a postura dos evangélicos tem sido de afastamento dos conflitos ou de apoio às grandes empresas.

72As ONGs e os pesquisadores são atores bastante diversos, que podem oferecer apoio político, financeiro e científico para as organizações sociais, mas também podem estar vinculados aos projetos sociais da mineradora ou a legitimação das práticas empresariais. Ressalva-se ainda, que nos casos analisados, não há nenhuns indícios de correlação direta entre a origem do capital minerador e a nacionalidade das ONGs internacionais envolvidas nos conflitos.

73Outro ator bastante heterogêneo é o Estado e os seus órgãos públicos. As ações dos organismos do Estado variam, dependendo dos governos e das pessoas. Parte dos órgãos públicos atua na satisfação das demandas dos movimentos sociais, como o INCRA e o Ministério Público, enquanto outros operam em defesa do território do capital, como foi o caso da PF e do IBAMA, com a criação das áreas de proteção ambiental para proteger o entorno da MRN. Todavia, as relações sociais são ainda mais complexas, e mesmo os atingidos podem possuir projetos comuns com a própria mineradora ou com instituições que protegem o interesse do capital.

74As diferenças no contexto político-histórico de cada um dos casos devem ser destacadas. As comunidades negras de Oriximiná sofreram forte repressão da força policial do Estado ditatorial ao longo dos quinze primeiros anos do empreendimento. Por mais que durante este tempo tenha havido resistências e denúncias, principalmente via redes sociais católicas, somente com a redemocratização, em 1985, foi possível fundar uma organização social e tecer alianças políticas externas para defender os direitos dos quilombolas. A conjuntura de democracia política favoreceu a presença de instituições articuladoras/mediadoras (como ONGs, pesquisadores e órgão públicos), que propiciaram um ambiente favorável e seguro a consolidação e emergência de movimentos sociais nas áreas de mineração.

75As empresas mineradoras, frente à maior pressão social e a críticas recentes sobre a atividade mineral, passaram também a atuar de outra forma nas áreas onde se instalam. Para convencer a população local começaram a agir diretamente na satisfação das demandas locais, promovendo projetos de responsabilidade social e ambiental. As diferentes formas de atuações da MRN e da ALCOA na relação com as comunidades atingidas e na execução de propostas e projetos sociais locais dão-se não pelos distintos perfis acionários ou de origem das corporações, mas pelo período histórico de cada empreendimento e pelas formas de reação das comunidades locais. A ALCOA esteve muito mais preocupada em legitimar a sua presença localmente e em alcançar uma “licença social para operar” (Coumans, 2011), enquanto a MRN buscou manter baixo o nível de conflito, executando projetos paliativos e pontuais para satisfazer os atingidos.

76Nesta nova conjuntura, também os agentes do Estado passaram a apoiar os atingidos e a dar suporte às organizações sociais para satisfação das reivindicações. O movimento de Juruti e as organizações sociais do lago Sapucuá surgiram neste ambiente favorável aos questionamentos e às mobilizações sociais, que facilitou as alianças com agentes governamentais e não governamentais. Acrescenta-se ainda que a emergência de uma intensa crítica ambiental aos grandes empreendimentos na Amazônia, por parte de vários setores nacionais e internacionais, fortaleceu o poder de barganha dos atingidos e um discurso antimineração, que se desdobrou de forma mais consistente a partir de 2010.

77Cabe apontar algumas novidades que começam a ganhar forma a partir da segunda década deste século. Na escala nacional, e até mesmo em nível internacional, surgiu, em 2010, o Movimento de Atingidos pela Vale, agregando variados atores sociais de países e regiões hospedeiras da Companhia Vale do Rio Doce, que questionavam, desde a privatização da mineradora, passando por temas referentes às questões trabalhistas, até aos impactos sociais e ambientais dos empreendimentos da transnacional brasileira. Ainda no âmbito nacional, forma-se, em 2007, dentro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA) o Grupo de Trabalho Mineração e Siderurgia, que abriga várias entidades e movimentos ligados a questão mineral (Silva e Carvalho, 2012). Posteriormente, em 2011, emergiram o Movimento dos Atingidos pela Mineração (MAM) e a Juventude Atingida pela Mineração apoiados pelos movimentos ligados a Via Campesina. Em 2013, articulou-se o Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração formado por ONGs, pesquisadores e movimentos sociais, cujo objetivo era debater a política mineral, os seus impactos e a forma de regulação em defesa de um modelo mais justo e menos desigual para as populações pobres atingidas e para a natureza, propondo inclusive áreas livres de mineração e novas obrigatoriedades de compensação para os atingidos.

78Na Amazônia, no Corredor da Estrada de Ferro Carajás, desde 2007, o movimento contra Vale tornou-se bastante incisivo, tornando-se a região do Brasil com maior resistência e críticas à mineração e com um forte componente ideológico antimineração. Os embates no Corredor Carajás são capitaneados pela Rede Justiça nos Trilhos (JnT), fundada em 2007, mas com intensa participação das comunidades locais atingidas, de variados movimentos sociais (do campo e da cidade), de ONGs e de outros atores da sociedade civil. Os movimentos nacionais como Atingidos pela Vale, o MAM, o GT Mineração e Siderurgia da RBJA e o Comitê em Defesa dos Territórios apresentam expressiva representatividade no Corredor Carajás.

79Portanto, considera-se, para fins analíticos, que não existiam, até a década de 2000, movimentos sociais de “atingidos por mineração” na Amazônia. As organizações que surgiam eram caracterizadas, majoritariamente, por grupos sociais pobres, que se mobilizavam e/ou se formavam a partir dos conflitos deflagrados na relação contraditória e dialética com as corporações mineradoras. Contudo, os movimentos não contrapunham os grandes projetos de extração minerais e atuavam exclusivamente na luta por direitos sociais e territoriais ameaçados, por indenizações por impactos sofridos ou pela participação no crescimento econômico. Os processos potencializadores e deflagradores dos movimentos populares foram desencadeados por impactos e ameaças provenientes da mineração industrial, que reconfiguraram as relações de poder e os arranjos territoriais em detrimento das populações locais. Além disso, as empresas mineradoras assumiram a posição de poder hegemônico regional e, deste modo, tornavam-se as instituições pressionadas, culpadas e questionadas pelas más condições e pela degradação social e ambiental na região.

80Os movimentos, mobilizações e organizações sociais que emergiram preteritamente na Amazônia eram diferentes dos movimentos antimineração, que existiam em alguns países e que apareceram no Brasil, no fim dos anos 2000. Entretanto, eles constituíram a origem e o estímulo do movimento antimineração brasileiro, direta ou indiretamente. No caso de Juruti, os aprendizados de Oriximiná e a existência de organizações sociais conscientizadas sobre os danos de um empreendimento mineral ajudaram no embasamento e na formação de uma consciência crítica sobre a mineração.

81Ao que tudo indica, a maneira dos atores sociais atingidos reagirem à mineração vem alterando lentamente o cerne da questão dos direitos sociais e territorial (formalização das terras, em particular) para o tema do uso dos recursos minerais. Ressalta-se, porém, que na escala local na Amazônia, os conflitos não tendem a abarcar a priori a questão mineral em si. Ou seja, as preocupações primeiras estão voltadas aos impactos socioambientais e às satisfações de direitos sociais e territoriais dos povos do entorno. Apenas, num segundo momento, podem surgir questionamentos quanto ao destino dos lucros provenientes do minério, à distribuição igualitária dos recursos financeiros, outras formas de compensações, o desenvolvimento regional ou às alternativas à extração mineral. Todavia, este processo de conscientização do tema mineral faz parte de uma reflexão recente da sociedade brasileira e amazônica sobre os conflitos, impactos, desigualdades, pobreza e subdesenvolvimento deflagrados e potencializados pelo modelo minero-exportador nos últimos sessenta anos.

82Apesar da inserção do tema mineral nos conflitos contra as mineradoras ser ainda embrionário, ao comparar os movimentos nos dois momentos históricos e locais estudados, percebe-se, no geral, que os grupos de Oriximiná estavam mais preocupados em resolver as questões históricas referentes ao frágil controle do território e à precária condição de vida. Já em Juruti, incorporou-se mais a temática mineral entre as contestações. Isto é, além das questões centrais em relação à terra e ao meio ambiente, os temas referentes ao pagamento de royalties aos tradicionais habitantes do solo, às indenizações sobre impactos sofridos pela população, à responsabilidade social empresarial e o desenvolvimento regional começaram a ser indagados pelos atingidos e, a partir de 2010, pela sociedade em geral. Contudo, na maioria dos casos, os atingidos ainda não assumiram um discurso antimineração, que almejaria o fim da exploração mineral, mas sim lutam por maior inclusão nos ganhos provenientes da exploração dos recursos minerais em seu território, característica diferente de outros casos pelo mundo.

Como as atividades de mineração impactam o território da comunidade analisada?

Os principais impactos ambientais da mineração são: o aumento da turbidez e variação da qualidade da água, alteração do seu pH (a água pode ficar mais ácida), contaminação do solo e da água com metais pesados, redução do oxigênio dissolvido nos ecossistemas aquáticos, assoreamento de rios, poluição do ar, extinção da ...

Como as atividades de mineração impactam o território da comunidade analisada Brainly?

As atividades de mineração impactam as comunidades quilombolas principalmente através dos impactos ambientais trazidos junto da atividade. A poluição da água, a diminuição dos recursos hídricos e a desertificação são os principais impactos apresentados.

Como as atividades de mineração impactam as formas de organização?

São diversos os impactos ambientais causados pela mineração, como a alteração da paisagem e a contaminação do solo, do ar e dos recursos hídricos. A mineração é uma atividade econômica e industrial associada a diversos impactos ambientais, como a contaminação de recursos hídricos.

Quais as consequências da mineração para os povos quilombolas de Oriximiná?

Os quilombolas de Boa Vista e os ribeirinhos de Boa Nova e Saracá apontam como as principais consequências das alterações nos cursos d'água: a restrição de acesso a água potável, o surgimento de novas doenças (atingindo especialmente crianças e mulheres) e a diminuição do pescado.