The inexhaustible debate: social and biological causes of the demographic collapse of Amerindian populations in the sixteenth centuryRicardo Waizbort Sobre o autor Show
ResumoNo século XX, estimativas populacionais para o hemisfério ocidental, as Américas, sobre o período que antecedeu à chegada de Colombo variaram entre dez milhões até mais de cem milhões. Essa grande discrepância é fundamental para avaliar o peso das epidemias na brusca redução demográfica que se seguiu. O fato é que houve um colapso demográfico de populações de ameríndios que viviam sobretudo, mas não exclusivamente, no atual México e na América Andina durante o século XVI. A decisão de certos historiadores de eleger as epidemias como causa distante e suficiente desse colapso populacional dissimularia, segundo outros autores, uma espécie de ‘determinismo imunológico’, isentando os espanhóis de responsabilidade e modelando formas de enfrentar problemas de saúde que se manifestam ainda hoje. Partindo de literatura específica, desenvolvemos a ideia de que é possível contribuir para compreender esse colapso, conjugando ‘causas distantes’ (como as epidemias) com ‘causas próximas’ (como a violência dos espanhóis e a desestruturação dos sistemas de subsistência e reprodução dos ameríndios), duas categorias oriundas da biologia evolutiva e da medicina evolutiva. Na realidade, pretendemos defender essa síntese, que já vem sendo feita por certos autores, embora não nos termos das categorias causais que manipulamos aqui. Palavras-chave AbstractIn the twentieth century, population estimates for the Western Hemisphere (Americas) before the arrival of Colombus ranged from ten million to over one hundred million. This large discrepancy is essential in assessing the role of epidemics in the sharp demographic decline that followed. In fact, there was a demographic collapse of Amerindian populations who lived mainly (but not exclusively) in present-day Mexico and the Andean region during the sixteenth century. The fact that some historians chose to indicate epidemics as a distant and sufficient cause of this population collapse conceals (in the opinion of other authors) a type of “immunological determinism” which absolves the Spaniards of responsibility and models ways of addressing health problems that still exist today. This study is based on specific literature and develops the idea that this collapse can be understood by combining “distant causes” (such as epidemics) with “near causes” (such as the violence of the Spaniards and the destruction of Amerindian subsistence and reproductive systems), two categories from evolutionary biology and evolutionary medicine. Our goal is to defend this synthesis, which has already been developed by certain authors, although not in terms of the causal categories we utilize here. Keywords
Nos caminhos jazem dardos rotos, os cabelos estão espalhados. Destelhadas estão as casas, ensanguentadas têm seus muros. Vermes pululam pelas ruas e praças e as paredes estão salpicadas de miolos. Vermelhas estão as águas, estão como que tingidas, e quando as bebemos, é como se bebêssemos água de salitre1 1 Cantares mexicanos (In: Léon-Portilla, 1985, p. 148). . Não havia então o pecado não havia então a doença, não havia a dor dos ossos, não havia a febre pelo ouro, não havia a varíola2 2 Chilam Balam di Chumayel (In: Livi-Bacci, 2007, p. 58). . INTRODUÇÃOO processo da conquista espanhola ao longo do século XVI foi registrado desde o princípio por vários cronistas espanhóis: Hernan Cortes (1485-1547), nas “Cartas de relación”; Bernal Díaz (1492-1581), em “La historia verdadera de la Nueva España”; Bartolomeu de las Casas (1474-1566), na “Historia general de las indias”; Bernardino de Sahagún (ca. 1499-1590), na “Historia general de las Casas de la Nueva España”; Frei Toribio de Benavente (ca. 1482-1569), conhecido como Motolinia, na “Historia de las Indias de la Nueva España”; Francisco López de Gomara (1511-1566), na “Historia general de las Indias”, para ficar apenas com alguns dos mais conhecidos (Restall, 2006RESTALL, Matthew. Sete mitos da conquista espanhola. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.; Livi-Bacci, 2007LIVI-BACCI, Massimo. Conquista: a destruição dos índios americanos. Lisboa: Edições 70, 2007.; Todorov, 2010TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.). Historiadores das populações colombianas e pré-colombianas reconhecem também outras fontes históricas que representaram a conquista como cronistas ameríndios e mestiços, tanto em línguas nativas e espanhol (aprendido pelos nativos) quanto em combinações variadas de idiomas (Léon-Portilla, 1985LÉON-PORTILLA, Miguel. A visão dos vencidos: a tragédia da conquista narrada pelos astecas. Porto Alegre: L&PM, 1985.; Sánchez-Albornoz, 2012SÁNCHEZ-ALBORNOZ, Nicolás. A população da América Espanhola colonial. In: BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina: América Latina colonial. São Paulo: Edusp, 2012. v. 2, p. 23-55., 2003; Restall, 2006RESTALL, Matthew. Sete mitos da conquista espanhola. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.; Cook, S.; Borah, 1977COOK, Sherburne F; BORAH, Woodrow. Ensayos sobre historia de la población: México y el Caribe. Ciudad de Mexico: Siglo XXI, 1977. v. 1.; Livi-Bacci, 2007LIVI-BACCI, Massimo. Conquista: a destruição dos índios americanos. Lisboa: Edições 70, 2007.). A literatura oral das etnias pré-colombianas também é relativamente bem conhecida, assim como suas pinturas ideográficas (Cook, S.; Borah, 1977COOK, Sherburne F; BORAH, Woodrow. Ensayos sobre historia de la población: México y el Caribe. Ciudad de Mexico: Siglo XXI, 1977. v. 1.; Léon-Portilla, 1985LÉON-PORTILLA, Miguel. A visão dos vencidos: a tragédia da conquista narrada pelos astecas. Porto Alegre: L&PM, 1985.; Livi-Bacci, 2007LIVI-BACCI, Massimo. Conquista: a destruição dos índios americanos. Lisboa: Edições 70, 2007.). Ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, leituras e releituras dessas fontes multifacetadas enriqueceram, ao mesmo tempo que tornaram mais intrincadas, as interpretações sobre o que, de fato, aconteceu nesse encontro entre europeus e nativos americanos. Essa história é marcada por uma evidente hecatombe populacional registrada em muitos desses documentos, ainda que fragmentária e episodicamente. Não se propõe aqui tratar das intrincadas fontes primárias e secundárias referentes a esse processo que continua a suscitar perguntas, mas apresentar uma revisão de como determinados historiadores interpretam a importância das doenças epidêmicas, e de que forma uma interpretação enriquecida com categorias da biologia evolutiva pode contribuir para uma compreensão menos imperfeita sobre esse fenômeno. Ao longo do presente artigo, muitas vezes nos referiremos aos nativos das Américas como ameríndios, embora reconheçamos os limites e os problemas dessa designação, além de reconhecer que ela necessariamente oculta a diversidade e a heterogeneidade dos grupos étnicos que viviam nas Américas, antes da chegada dos espanhóis, ameríndios dos quais são apenas mais notórios astecas, incas e maias (Mann, 2007MANN, Charles C. 1491: novas revelações das Américas antes de Colombo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.). Não pretendemos também lidar com o problema da hecatombe populacional fazendo referência ao hemisfério ocidental (Novo Mundo) como um todo. Dada a complexa heterogeneidade e diversidade biocultural das populações que aqui viviam, optamos por estabelecer um foco mais específico no que ocorreu no México, em termos de densidade demográfica, ao longo do século XVI, porque há vários estudos importantes sobre a dizimação dos astecas, além de muitas controvérsias. Mas não iremos evitar referências ao hemisfério ocidental como um todo e a grupos étnicos específicos, que também tiveram suas populações ceifadas a partir do encontro com os europeus. No livro “Sete mitos da conquista espanhola”, o historiador
Mathew Restall destrinchou uma série de narrativas tradicionais associadas à derrota e à morte, em fins do século XV e ao longo do seguinte, de certamente dezenas de milhões de ameríndios de culturas distintas, sobretudo dos impérios Asteca, Inca e Maia, distribuídos de forma heterogênea por várias regiões das Américas Central e do Sul (Livi-Bacci, 2011LIVI-BACCI, Massimo. The demise of the American Indios. Population and Development Review, Hoboken, v. 37, n.
1, p. 161-183, Mar. 2011. DOI: https://doi.org/10.1111/j.1728-4457.2011.00393.x. Restall (2006, p. 240)RESTALL, Matthew. Sete mitos da conquista espanhola. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. constrói uma rica narrativa crítica em que, desemaranhando esses mitos, emerge uma trilogia de causas que “[...] responde por boa parte do resultado da Conquista [...]”: “[...] doenças, desunião entre os indígenas e as espadas espanholas”. Restall (2006)RESTALL, Matthew. Sete mitos da conquista espanhola. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. mostra que um bom número de integrantes de diferentes etnias ameríndias, assim como de populações africanas, ajudou os espanhóis no combate a impérios nativos que estavam estabelecidos, como o império Asteca, no México (Tenochtitlán), e o Inca, em Cajamarca. Esses ameríndios receberam vantagens imediatas próprias. Por outro lado, as armas de fogo, em geral, eram grandes, difíceis de manejar e transportar, por causa da sinuosidade topográfica das regiões invadidas; além disso, a pólvora estava quase sempre úmida, dificultando os disparos. Sendo assim, as espadas eram mais efetivas do que as armas de fogo. Restall (2006, p. 235) também expressa a ideia de que houve um colapso populacional que afligiu os ameríndios:
Perceba-se que, aqui, Restall (2006)RESTALL, Matthew. Sete mitos da conquista espanhola. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. não apresenta uma estimativa populacional para o Novo Mundo, mas se refere a uma extraordinária redução populacioanal de noventa por cento. Ele registra em nota que
Essa grande mortalidade teria sido causada fundamentalmente por epidemias. Mobilizar doenças epidêmicas como a causa distante, evolutiva, da morte de dezenas de milhões de ameríndios figura como uma explicação predominante na historiografia, a partir da década de 1960 (Dobyns, 1966DOBYNS, Henry F. An appraisal of techniques with a new hemisferic estimate. Current Antrhropology, Chicago, v. 7, n. 4, p. 395-416, Sept. 1966. DOI:
https://doi.org/10.1086/200749. Em “Armas, germes e aço”, Jared Diamond se apropriou entusiasmadamente da hipótese da epidemia em solo virgem como base para estabelecer um padrão histórico apoiado nas diferenças biológicas, imunológicas, entre os espanhóis e os ameríndios, que justificariam a conquista de tantos por tão poucos (Diamond, 2009DIAMOND, Jared. Armas, germes e aço. Tradução de Silvia de Souza Costa, Cynthia Cortes e Paulo Soares. Rio de
Janeiro: Record, 2009.). O livro refuta, segundo o próprio autor, a ideia de que questões de raça estariam relacionadas com a conquista espanhola. Para Diamond (2009)DIAMOND, Jared. Armas, germes e aço. Tradução de Silvia de Souza Costa, Cynthia Cortes e Paulo Soares. Rio de Janeiro: Record, 2009., a conquista não teria sido decorrente de uma suposta inteligência ou capacidade racial superior do homem branco europeu.
Ele argumenta que uma espécie de fato histórico – a imunidade dos espanhóis para certas doenças, como varíola, sarampo, entre outras, e a ‘virgindade’ imunológica dos amerínidos para as mesmas enfermidades – determinou os destinos da conquista. Esse argumento, todavia, ignora uma importante distinção da medicina evolutiva, oriunda da biologia evolutiva, entre ‘causas próximas’ e ‘causas distantes’ (Mayr, 1961MAYR, Ernst. How to carry out the adaptationist
program? The American Naturalist, Chicago, v. 121, n. 3, p. 324-334, Mar. 1983. DOI: https://doi.org/10.1086/284064. A hipótese da epidemia em solo virgem parece uma explicação irretocável para a grande devastação
humana, sobretudo em cenários de estimativas populacionais pré-contato muito altas. Na primeira parte deste artigo, apresentamos sumariamente a medicina evolutiva, pois ela maneja, no campo da saúde, as categorias de ‘causas próximas’ e ‘causas distantes’ como explicações para vários traços adaptativos da espécie humana e também para muitas doenças. Doenças não são adaptações. Todavia, no que toca à relação entre parasitos e hospedeiros, há muitas adaptações evolutivas envolvidas, tanto por
parte das populações de patógenos quanto na de hospedeiros humanos. Quando se diz que os ameríndios eram imunologicamente virgens aos patógenos trazidos pelos europeus, isso significa que eles não possuíam defesas imunológicas presentes nos europeus. A princípio, essas defesas seriam adaptações genéticas dos europeus, que evoluíram ao longo de séculos em contato com parasitos (agentes etiológicos da varíola, do sarampo, do tifo, entre muitas outras doenças infecciosas), conferindo-lhes uma
imunidade inata. Mas, segundo um autor como Jones (2003JONES, David S. Virgin soils revisited. The William and Mary Quarterly, Virginia, v. 60, n. 4, p. 703-742, Oct. 2003. DOI: https://doi.org/10.2307/3491697. Para a medicina evolutiva, a seleção natural não promove nos
humanos, e em nenhuma outra espécie, a saúde em si mesma ou a longevidade, mas o sucesso reprodutivo. Assim, as epidemias do século XVI devastaram as populações humanas por que os parasitos encontraram condições ambientais (ecológicas, sociais), nos corpos dos ameríndios, de se reproduzirem e serem transmitidos, até que o estoque de indivíduos sensíveis às doenças estivesse reduzido demais para manter as populações dos parasitos. Na segunda parte, apresentamos a hipótese da epidemia em solo
virgem tal como ela aparece no argumento de Diamond (2009)DIAMOND, Jared. Armas, germes e aço. Tradução de Silvia de Souza Costa, Cynthia Cortes e Paulo Soares. Rio de Janeiro: Record, 2009., no livro supracitado, em relação à importância, absoluta ou relativa, das epidemias como explicação do colapso populacional dos ameríndios. Nos importamos aqui com Diamond por que seu “Armas, germes e aço” despertou comentários, ainda que muito
críticos, em uma série de autores que lidam com o colapso demográfico dos ameríndios no século XVI (Jones, 2003JONES, David S. Virgin soils revisited. The William and Mary Quarterly, Virginia, v. 60, n. 4, p. 703-742, Oct. 2003. DOI: https://doi.org/10.2307/3491697. Na terceira parte, mobilizamos uma bibliografia que critica explicitamente a hipótese da epidemia em solo virgem, o que nos deu esteio para argumentar sobre as virtudes de articular causas distantes com causas próximas. Apontamos autores como Carlos Sempat Assadourian, Nicolás Sánchez-Albornoz, Massimo Livi-Bacci, David Jones, entre outros, que, ao promoverem a articulação das epidemias com fatores sociais, acabam estimulando a interação entre causas distantes (imunológicas, biogeográficas, evolutivas) e causas próximas (violência dos espanhóis, fome, pobreza, tributos altos). Esses autores não usam os conceitos de causas próximas e causas distantes, mas nós os interpretamos à luz dessas categorias mobilizadas pela medicina evolutiva, visto que eles inserem o fenômeno histórico em questão em um ambiente ecológico e social que vai muito além das relações diretas entre parasitos e hospedeiros. Verificamos que tais autores promovem justa crítica a uma forma de compreender a história que embute em si mesma formas de determinismo biológico. A MEDICINA EVOLUTIVAA medicina evolutiva é a tentativa de complementar a medicina
tradicional – que busca as causas próximas ou fisiológicas das doenças – com a estrutura da teoria da evolução por seleção natural – que procura pelas causas distantes ou históricas das estruturas adaptativas e dos comportamentos adaptativos, que nos capacitam a nos mantermos vivos e sexualmente ativos. Embora Ernst Mayr não tenha sido quem pela primeira vez empregou esse par categorial, ele foi um dos seus promotores mais importantes (Caponi, 2014CAPONI,
Gustavo. Contribución a una historia de la distinción próximo-remoto. Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 16-31, jan./jun. 2014.; Mayr, 1961MAYR, Ernst. Cause and effect in biology. Science, Washington, v. 134, n. 3489, p. 1501-1506, Nov. 1961. DOI:
https://doi.org/10.1126/science.134.3489.1501. A medicina evolutiva foi deflagrada pelo trabalho fundador de Williams e Nesse (1991)WILLIAMS, George C.; NESSE, Randolph M. The Dawn of Darwinian Medicine. The Quarterly Review of Biology, Chicago, v. 66, n. 1, p. 1-22, Mar. 1991. DOI:
https://doi.org/10.1086/417048.
O par
de categorias ‘causas próximas’ e ‘causas distantes’ está diretamente relacionado aos conceitos de ‘adaptação fisiológica’ e ‘adaptação evolutiva’. Enquanto a adaptação fisológica é a resposta fisiológica de ‘um’ corpo a determinadas circunstâncias ambientais, próximas, a adaptação evolutiva é o resultado de um processo de seleção natural que provê indivíduos de populações biológicas exatamente com estruturas e comportamentos que realizam funções específicas (Mayr,
1961MAYR, Ernst. How to carry out the adaptationist program? The American Naturalist, Chicago, v. 121, n. 3, p. 324-334, Mar. 1983. DOI: https://doi.org/10.1086/284064. Como já referido, desde o artigo de
Williams e Nesse (1991)WILLIAMS, George C.; NESSE, Randolph M. The Dawn of Darwinian Medicine. The Quarterly Review of Biology, Chicago, v. 66, n. 1, p. 1-22, Mar. 1991. DOI: https://doi.org/10.1086/417048.
Os autores apresentam, em seguida, uma tabela com o elevado número de mortes por varíola em populações de determinadas localidades americanas (Espanha, Venezuela, México, Peru, Brasil, entre outras), em poucas décadas, ao longo do século XVI. As estimativas de morte para o México variam entre três e trinta milhões de habitantes para o período entre 1520 e 1521! Os autores não comentam essa discrepância. Como já assinalado, o tamanho das populações ameríndias na época da conquista é um tema ainda em disputa, que afeta sobremaneira a importância, relativa ou absoluta, das epidemias como causa, suficiente, do colapso demográfico. Steanrs e Medzhitov (2016)STEARNS, Stephen C.; MEDZHITOV, Ruslan. Evolutionary medicine. Sunderland: Sinauer Associates, 2016. também não consideram possíveis causas próximas associadas a esses enormes níveis de mortalidade. A referência às epidemias do Novo Mundo, no século XVI, localiza-se em uma seção que discute certos desajustes evolutivos (mismatches), relacionados à emigração e à imigração. Os desajustes evolutivos podem ser temporais ou espaciais, no sentido de que uma determinada adaptação evolutiva, que emerge em um ambiente específico, pode se ver colocada em ambientes distintos, onde sua aptidão pode decair. Assim, diz-se que o corpo humano sofre com os desajustes entre o ambiente onde ele evoluiu e o ambiente moderno. A migração humana, por sua vez, cria uma espécie de desajuste espacial: “Migrantes introduzem doenças a populações que não as tinham previamente experimentado” (Stearns; Medzhitov, 2016STEARNS, Stephen C.; MEDZHITOV, Ruslan. Evolutionary medicine. Sunderland: Sinauer Associates, 2016., p. 225, tradução nossa). Patógenos vindo de outras regiões ocasionam surtos de mortalidade. Não há referência à imunidade ou à resistência genética ou adquirida, apenas a ideia de que populações humanas levam consigo parasitos a outras populações que não os abrigavam até então, e que tais populações são suscetíveis às doenças causadas por agentes etiológicos não conhecidos antes. Nosso objetivo é aprofundar um pouco a importância de se relacionar causas distantes biológicas com causas próximas sociais e também políticas. A HIPÓTESE DO SOLO VIRGEM, EM DIAMOND“Armas, germes e aço” não é um livro sobre a conquista espanhola, mas uma obra que procura mostrar por que o que se chamaria de cultura ocidental, por falta de uma categoria melhor, possui mais bens de consumo (‘cargo’, na língua de Yago,
interlocutor de Diamond) do que a Nova Guiné e outros países do assim chamado terceiro mundo. Todavia, para Diamond, em seu livro, as doenças epidêmicas (os germes, do título) que dizimaram os ameríndios são basilares para um suposto padrão histórico que explicaria por que os europeus realizaram tantas conquistas sobre essas populações nativas. Por exemplo, Diamond argumenta que a vitória de Pizarro em Cajamarca foi precipitada por uma epidemia de varíola que, na sua rota de destruição, causou
“[...] a disputa pelo trono entre líderes Incas, Ataualpa e seu meio-irmão, Huáscar [...] Não fosse a epidemia, os espanhóis teriam encontrado um império unido” (Diamond, 2009DIAMOND, Jared. Armas, germes e aço. Tradução de Silvia de Souza Costa, Cynthia Cortes e Paulo Soares. Rio de Janeiro: Record, 2009., p. 77). Ele usa esse seu raciocínio em relação aos incas para dar um salto indutivo em busca de um padrão histórico, processo
epistemológico muito discutível entre historiadores (Calahan, 2005CALAHAN, Gene. The Diamond fallacy. Mises Institute, Alabama, p. 1-9, Mar. 2005. Disponível em: https://mises.org/library/diamond-fallacy. Acesso em: 23 jan. 2019.
Segundo Diamond (2009, p. 77)DIAMOND, Jared. Armas, germes e aço. Tradução de Silvia de Souza Costa, Cynthia Cortes e Paulo Soares. Rio de Janeiro: Record, 2009.,
Em outra parte do livro, ele reforça esse argumento da importância dos microorganismos para a dizimação de dezenas de milhões de astecas:
Apoiado nos proponentes da hipótese da epidemia em solo virgem (MacNeill, 1976MACNEILL, William H. Plagues and peoples. New York: Anchor,
1976.; Crosby, 1976CROSBY, Alfred W. Virgin soil epidemics as a factor in the aboriginal depopulation in America. The William and Mary Quarterly, Virginia, v. 33, n. 2, p. 289-299, Apr. 1976. DOI: https://doi.org/10.2307/1922166. No século XVI, os povos europeus possuíam um número maior de animais domésticos do que os povos ameríndios, e essa circunstância estaria intimamente relacionada à imunidade dos europeus às epidemias e à sensibilidade dos
ameríndios a essas doenças (Crosby, 1976CROSBY, Alfred W. Virgin soil epidemics as a factor in the aboriginal depopulation in America. The William and Mary Quarterly, Virginia, v. 33, n. 2, p. 289-299, Apr. 1976. DOI: https://doi.org/10.2307/1922166.
Diamond (2009)DIAMOND, Jared. Armas, germes e aço. Tradução de Silvia de Souza Costa, Cynthia Cortes e Paulo Soares. Rio de Janeiro: Record, 2009. argumenta, então, que a domesticação de animais (e de plantas) pôde ser mais ou menos livremente exportada no sentido leste-oeste (entre a Europa Central e Ásia Central, por exemplo), mas não no sentido norte-sul, uma vez que, em diferentes latitudes, aparecem impedimentos para a domesticação de animais, tais como mudanças climáticas e outras diferenças ambientais. Com isso, aquelas populações humanas que viviam no eixo leste-oeste do globo se favoreceram não só de animais domésticos, como também, ao longo do tempo, da imunidade referente às doenças que esses animais transmitiam, o que não teria sido o caso nas Américas, cuja população está disposta sobre o eixo norte-sul. Note-se que essas explicações manejam informações geográficas e históricas sobre o estado atual e antigo de populações humanas. São causas distantes, mobilizadas para explicar a conquista. O resultado do encontro entre espanhóis e ameríndios é decorrente de causas biogeográficas que produziram populações imunologicamente diferentes. Diamond (2009)DIAMOND, Jared. Armas, germes e aço. Tradução de Silvia de Souza Costa, Cynthia Cortes e Paulo Soares. Rio de Janeiro: Record, 2009. não ignora por completo outros fatores proximais, relacionados à violência dos espanhóis e à estrutura social dos ameríndios em contato com europeus e escravos africanos, mas a ênfase que ele coloca nas epidemias evidencia que sua explicação biogeográfica relega essas outras causas a um patamar de menor importância. Vários pontos do seu argumento sobre o poder devastador das epidemias têm sido severamente questionados. Por exemplo, as estimativas de 20 milhões de habitantes, para o México, antes da chegada dos espanhóis, apresentada por Diamond
(2009)DIAMOND, Jared. Armas, germes e aço. Tradução de Silvia de Souza Costa, Cynthia Cortes e Paulo Soares. Rio de Janeiro: Record, 2009. (citada acima), foram colocadas em questão mesmo antes da publicação de seu livro, por autores como Brooks (1993)BROOKS, Francis J. Revising the conquest of Mexico: smallpox, sources, and populations. The Journal of Interdisciplinary History, Cambridge, v. 24, n. 1, p. 1-29, Summer
1993. DOI: https://doi.org/10.2307/205099. O DEBATE INESGOTÁVELHá um consenso entre historiadores e demógrafos
históricos de que houve um colapso populacional dos ameríndios ao longo do século XVI. O que se discute, de forma intensa, são as dimensões e as causas dessa tragédia humana (Livi-Bacci, 2007LIVI-BACCI, Massimo. Conquista: a destruição dos índios americanos. Lisboa: Edições 70, 2007.; Henige, 2008HENIGE, David. Recent work and prospects in American Indian contact population. History Compass, Hoboken, v. 6,
n. 1, p. 183-206, Jan. 2008. DOI: https://doi.org/10.1111/j.1478-0542.2007.00490.x. Do ponto de vista demográfico, ao longo do século XX, houve um contraponto entre cenários ‘baixistas’, na categorização do demógrafo italiano
Livi-Bacci (2007)LIVI-BACCI, Massimo. Conquista: a destruição dos índios americanos. Lisboa: Edições 70, 2007., que apresentavam as Américas como um continente esparsamente povoado, e cenários ‘altistas’ (Livi-Bacci, 2007LIVI-BACCI, Massimo. Conquista: a destruição dos índios americanos. Lisboa: Edições 70, 2007.) em que elas eram densamente habitadas (Denevan,
1992DENEVAN, William M. The pristine myth: the landscape of the Americas in 1492. Annals of the Association of American Geographers, Milton Park, v. 82, n. 3, p. 369-385, Sept. 1992. DOI: https://doi.org/10.1111/j.1467-8306.1992.tb01965.x.
É importante enfatizar que os estudiosos da escola de Berkeley, depois de estudarem o México, investigaram outros locais em outros países, como a ilha de Espanhola e a Nova Granada, e os resultados, embora apoiados em uma base de fontes mais frágil do que as investigações sobre o colapso no México, eram parecidos. Trabalhos de outros pesquisadores sobre as regiões andinas, incluindo o atual Peru e a Bolívia, e várias regiões da chamada Mesoamérica, incluindo a penísula de Yucatán, onde se encontravam populações maias, atestaram também o desastre. Por toda a parte, parecia ter havido uma hecatombe populacional que se converteu em objeto de reflexão para a história mundial. E isso teria implicado uma mudança no foco causal:
Para Cook e Borah, as epidemias teriam dizimado os nativos, pois estes não possuíam “[...] imunidade protetora prévia” (Sánchez-Albornoz, 2003SÁNCHEZ-ALBORNOZ, Nicolás. El debate inagotable. Revista de Indias,
Madrid, v. 63, n. 227, p. 9-18, 2003. DOI: https://doi.org/10.3989/revindias.2003.i227.548. Há muitos trabalhos que apresentam estimativas populacionais para as Américas. William Denevan, professor de Geografia da Univeridade de Wisconsin-Madison, membro proeminente da escola de Berkeley, publicou muitos livros e artigos sobre o tema. Alguns dados de um de seus trabalhos nos dá um bom quadro, na década de 1990, das estimativas populacionais e das supostas causas do desastre humano no século XVI:
Denevan (1992)DENEVAN, William M. The pristine myth: the landscape of the Americas in 1492. Annals of the Association of American Geographers, Milton Park, v. 82, n. 3, p. 369-385, Sept. 1992. DOI: https://doi.org/10.1111/j.1467-8306.1992.tb01965.x. Nicolás Sánchez-Albornoz é um historiador espanhol, professor emérito da Universidade de Nova York, com vários livros e artigos publicados em revistas especializadas em estudos de populações humanas. Em
2003, introduzindo um número especial do periódico Revista de Indias, ele chamou de “O debate inesgotável” a discussão sobre a causa (ou causas) do desastre demográfico que acometeu os ameríndios ao longo do século XVI. Alguns dos mais importantes especialistas da área publicaram artigos nesse número da revista. A leitura desses trabalhos revela muitas diferenças entre seus autores, desde as distintas estimativas populacionais pré-contato, passando pelo papel relativo ou (quase) absoluto das
epidemias no debacle populacional, chegando na consideração, ou não, de determinantes sociais (Sánchez-Albornoz, 2003SÁNCHEZ-ALBORNOZ, Nicolás. El debate inagotable. Revista de Indias, Madrid, v. 63, n. 227, p. 9-18, 2003. DOI: https://doi.org/10.3989/revindias.2003.i227.548.
Na mesma direção, o historiador Noble David Cook, da Universidade Internacional da Flórida, publicou um artigo nesse número da Revista de Indias. David Cook resume seu trabalho, afirmando que a documentação divulgada em 2003 deu a ver que vários índios tainos, levados por Colombo para a Espanha
para serem apresentados aos reis católicos, morreram de varíola em Cádiz, em 1493, antes de embaracarem na segunda expedição de Colombo para as Américas. Segundo Cook, N. (2003)COOK, Noble David. ¿Una primera epidemia americana de viruela en 1493? Revista de Indias, Madrid, v. 63, n. 227, p. 49-64, abr. 2003. DOI:
https://doi.org/10.3989/revindias.2003.i227.551. Ao nosso ver, é evidente que tanto Elsa Malvido quanto David Cook consideram que as epidemias são a causa do colapso das populações de ameríndios. Entretanto, estamos procurando argumentar que as epidemias respondem apenas pelas causas distantes, e que as causas próximas precisam ser apresentadas e consideradas. Massimo Livi-Bacci, professor de demografia da Universidade de Florença e de história e economia de populações humanas, não concorda com a hipótese da epidemia em solo virgem. Em sua contribuição no referido número da Revista de Indias, ele ressalta que, quanto maior a estimativa populacional para o hemisfério ocidental antes da chegada dos europeus, maior força ganha a hipótese de
que as doenças causadas por parasitos, sobretudo por vírus, são as responsáveis predominantes do fenômeno demográfico (Livi-Bacci, 2003LIVI-BACCI, Massimo. Las múltiples causas de la catástrofe: consideraciones teóricas y empíricas. Revista de Indias, Madrid, v. 63, n. 227, p. 31-48, 2003. DOI:
https://doi.org/10.3989/revindias.2003.i227.550. As estimativas para o hemisfério ocidental, incluindo o México, antes da chegada dos europeus, que asseguram o poder das epidemias como causa do colapso, receberam várias críticas, mesmo antes da publicação de um livro como “Armas, germes e aço”, que é de 1997
(Zambardino, 1980ZAMBARDINO, Rudolph A. Mexico’s population in the Sixteenth Century: demographic anomaly or mathematical illusion? The Journal of Interdisciplinary History, Cambridge, v. 11, n. 1, p. 1-27, Summer 1980. DOI: https://doi.org/10.2307/202984.
Brooks (1993)BROOKS, Francis J. Revising the conquest of Mexico: smallpox, sources, and populations. The Journal of
Interdisciplinary History, Cambridge, v. 24, n. 1, p. 1-29, Summer 1993. DOI: https://doi.org/10.2307/205099.
Ainda anteriormente, Assadourian (1989, p. 420, tradução nossa)ASSADOURIAN, Carlos Sempat. La despoblación indígena en Perú y Nueva España durante el siglo XVI y la formación de la economía colonial. Historia de Mexicana, Ciudad de Mexico, v. 38, n. 3, p. 419-453, enero/marzo 1989. também contestou as cifras dos autores da escola de Berkeley e, embora não negasse o poder das doenças em ceifar enormes cifras de vidas ameríndias, afirmou que há outras causas em foco, bem exemplificada pelas “[...] dez pragas trabalhosas com que Deus castigou essa terra”, que Frei Toribio de Motolinía, em torno de 1541, apontou como causas da despopulação, entre elas as guerras, a fome, os tributos impostos aos ameríndios, o trabalho nas minas de ouro e na edificação da cidade do México, além, é claro, de epidemias. Livi-Bacci (2007)LIVI-BACCI, Massimo. Conquista: a destruição dos índios americanos. Lisboa: Edições 70, 2007. também aponta Motolinía como o cronista que indicou corretamente as causas do colapso demográfico, embora não tenha estimado o peso das epidemias ante outras formas de destruição (Assadourian, 1989ASSADOURIAN, Carlos Sempat. La despoblación indígena en Perú y Nueva España durante el siglo XVI y la formación de la economía colonial. Historia de Mexicana, Ciudad de Mexico, v. 38, n. 3, p. 419-453, enero/marzo 1989.). Segundo Livi-Bacci (2007)LIVI-BACCI, Massimo. Conquista: a destruição dos índios americanos. Lisboa: Edições 70, 2007. e Jones
(2016)JONES, David S. Population, health, and public welfare. In: HOXIE, Frederick E. The Oxford Handbook of American Indian History. Oxford: Oxford University Press, 2016. p. 413-435., se aceita nos círculos especializados estimativas mais moderadas do que a dos integrantes da escola de Berkeley, algo em torno de cinquenta milhões de habitantes, talvez um pouco menos ou um pouco mais (Koch et al., 2019KOCH, Alexander;
BRIERLEY, Chris; MASLIN, Mark M.; LEWIS, Simon L. Earth system impacts of the European arrival and Great Dying in the Americas after 1492. Quaternary Science Reviews, Amsterdam, v. 207, p. 13-36, Mar. 2019. DOI: https://doi.org/10.1016/j.quascirev.2018.12.004. Assim, o que está em jogo não é se as epidemias ocorreram ou não, ou se seu efeito foi devastador ou não. O que se discute é o quanto as epidemias podem ser apontadas como a causa
suficiente do colapso ou se elas devem ser complementadas por causas de origem social, como violência, fome e abatimento moral e psicológico. Autores como Diamond (2009)DIAMOND, Jared. Armas, germes e aço. Tradução de Silvia de Souza Costa, Cynthia Cortes e Paulo Soares. Rio de Janeiro: Record, 2009., Malvido (2003)MALVIDO, Elsa. La epidemiología, una propuesta para explicar la despoblación americana.
Revista de Indias, Madrid, v. 63, n. 227, p. 65-78, 2003. DOI: https://doi.org/10.3989/revindias.2003.i227.552. Há muitas outras considerações a serem feitas ao suposto poder suficiente das doenças.
Livi-Bacci apresenta as bases darwinistas (evolutivas) da hipótese da epidemia em solo virgem, e considera que “o efeito catastrófico das epidemias tende a se atenuar com o tempo, à medida que se completam os processos graduais de adaptação e seleção” (Livi-Bacci, 2003LIVI-BACCI, Massimo. Las múltiples causas de la catástrofe: consideraciones teóricas y empíricas. Revista de Indias, Madrid, v. 63, n. 227, p. 31-48, 2003. DOI:
https://doi.org/10.3989/revindias.2003.i227.550.
Para a narrativa que estamos desenvolvendo, esses fatores proximais devem compor a equação que pretende explicar a conquista e o colapso populacional. A desestruturação da força de trabalho e da capacidade reprodutiva dessas populações sugere um quadro de extrema miséria material, associada a graus elevados de má nutrição e estresse. Até que ponto as epidemias causaram essa situação ou foram favorecidas por ela é a questão que foi aberta depois que a hipótese da epidemia em solo virgem se achou instituída. No mesmo ano de 2003, em que “O debate inesgotável” foi discutido na série de trabalhos introduzidos por Nicolás Sánchez-Albornoz, na Revista de Indias, independentemente, David S. Jones, membro do Departamento de Psiquiatria do Hospital McLean e do Hospital Geral de Massachusetts, publicou o artigo “Virgin soils revisited”, no qual discutia os limites da hipótese Crosby-MacNeill, de pontos de vista biológico (imunológico), demográfico e sociológico. Impossível sintetizar a riqueza crítica do texto de Jones. Focaremos em alguns aspectos que nos chamaram muita atenção, inclusive porque eles serão retomados em artigo do mesmo autor, publicado treze anos mais tarde. Por exemplo, para Jones (2003, p. 104, tradução nossa), é preciso qualificar a ideia de que os ameríndios eram imunologicamente virgens às doenças espanholas:
O problema para Jones, tal qual colocado também por Livi-Bacci, Sánchez-Albornoz, Assadourian, entre outros, é que não se pode e nem se deve, em termos filosóficos e morais, tentar explicar o fenômeno demográfico apelando ‘apenas’ para causas
distantes, sob o risco de obscurecer outras causas que merecem atenção. Segundo Jones (2003)JONES, David S. Virgin soils revisited. The William and Mary Quarterly, Virginia, v. 60, n. 4, p. 703-742, Oct. 2003. DOI: https://doi.org/10.2307/3491697.
Note-se que
Jones (2003)JONES, David S. Virgin soils revisited. The William and Mary Quarterly, Virginia, v. 60, n. 4, p. 703-742, Oct. 2003. DOI: https://doi.org/10.2307/3491697.
Jones (2003)JONES, David S. Virgin soils revisited. The William and Mary
Quarterly, Virginia, v. 60, n. 4, p. 703-742, Oct. 2003. DOI: https://doi.org/10.2307/3491697.
Em 2016, David Jones publicou um outro trabalho sobre o tema das epidemias como causa do colapso populacional dos ameríndios. Ele continua contestando a teoria da epidemia em solo virgem como explicação monocausal para a conquista espanhola. Assim como Henige
(2008)HENIGE, David. Recent work and prospects in American Indian contact population. History Compass, Hoboken, v. 6, n. 1, p. 183-206, Jan. 2008. DOI: https://doi.org/10.1111/j.1478-0542.2007.00490.x.
O que nos chama a atenção é que Jones (2016)JONES, David S. Population, health, and public welfare. In: HOXIE, Frederick E. The Oxford Handbook of American Indian History. Oxford: Oxford University Press, 2016. p. 413-435. procura conjugar o poder certamente brutal das epidemias com a ‘subsistência interrompida’. Isso parece indicar que as doenças, para chegarem a esse poder devastador no nível das populações, precisaram ser favorecidas por condições ambientais, aqui traduzidas por ações humanas, intencionais ou não:
Essa conjugação de causas biológicas distantes, como as epidemias, e causas sociais próximas, como escravidão, fome, excesso de tributos, desalento moral
(entre outras), pode ter criado o cenário que resultou no colapso demográfico do século XVI. Talvez também esteja relacionado com os limites agroecológicos das sociedades ameríndias, que não dominavam o aço e as técnicas de produção de alimentos dependentes do arado com tração animal, capazes de sustentar grandes populações por muitas gerações (Brooks, 1993BROOKS, Francis J. Revising the conquest of Mexico: smallpox, sources, and populations. The Journal of
Interdisciplinary History, Cambridge, v. 24, n. 1, p. 1-29, Summer 1993. DOI: https://doi.org/10.2307/205099. Embora tenhamos tomado as categorias de causas distantes e causas próximas da medicina evolutiva, ela própria, até agora, não interpretou o fenômeno que nos prende aqui, com excessão da breve referência de Stearns e Medzhitov (2016)STEARNS, Stephen C.; MEDZHITOV, Ruslan. Evolutionary medicine. Sunderland: Sinauer Associates, 2016., apresentada anteriormente. Isso pode se relacionar ao fato de que a medicina evolutiva está mais preocupada com questões que afligem as populações humanas vivas, e não com as extintas. Todavia, autores como Jones, Livi-Bacci e Henige atribuem uma importância política muito atual à forma como interpretamos o fenômenos do colapso dos ameríndios ao longo do século XVI. E isso tem implicações na forma como compreendemos as doenças hoje. Nas palavras de Jones (2016, p. 413, tradução nossa): “As narrativas que os historiadores contam sobre a história demográfica influencia como nós pensamos sobre as desigualdades hoje, e isso pode ter uma profunda consequência para a saúde da população e política de saúde”. Ou seja, se pensarmos que epidemias são as causas únicas do colapso, tenderemos a compreender as doenças hoje apenas como matéria de parasitos e anticorpos, pouco ou nada relacionadas a condições sociais, que deveriam também ser investigadas e combatidas. Livi-Bacci (2007)LIVI-BACCI, Massimo. Conquista: a destruição dos índios americanos. Lisboa: Edições 70, 2007. talvez seja mais explícito na importância de conjugar causas biológicas com causas sociais. Seu livro “Conquista: a destruição dos índios americanos” vai muito além do colapso populacional dos ameríndios no século XVI, buscando as implicações desse fenômeno demográfico nas populações dos séculos seguintes, chegando mesmo a tempos mais atuais. Ele aponta, com muita clareza, uma mudança nas formas de compreender o colapso relacionado ao encontro entre ameríndios e europeus, e defende que, muitas vezes, a hipótese da epidemia em solo virgem foi usada com viés político. Do ponto de vista epidemiológico, Livi-Bacci (2007, p. 57) foca muitos dos seus estudos na varíola, porque ela “[...] foi a patologia mais violenta e mais letal pelos seus efeitos, de longe mais desatrosos do que os das outras novas doenças na América”; e porque as considerações epidemiológicas referentes à varíola “[...] podem estender-se a outras patologias, que partilham muitas das suas características” (Livi-Bacci, 2007LIVI-BACCI, Massimo. Conquista: a destruição dos índios americanos. Lisboa: Edições 70, 2007., p. 57). Ele salienta vários aspectos biológicos da varíola: como o fato de ela ser definida como uma “patologia de rebanho”, uma doença de multidão, assim como o sarampo e a escarlatina; que a varíola se transmite por via aérea; que há um período de latência; que a infecciosidade é muito alta e aumenta devido às condições de alta densidade populacional. Acompanhemos um modelo teórico desenvolvido por Livi-Bacci (2007)LIVI-BACCI, Massimo. Conquista: a destruição dos índios americanos. Lisboa: Edições 70, 2007. para infecciosidade da varíola, que, ao ser criticado por ele mesmo, irá manifestar a importância de conjugar casuas próximas e causas distantes:
Ele segue esse raciocínio matemático ao longo de algumas gerações dessa aldeia hipotética, afetadas de quinze em quinze anos pela doença, para concluir: “Trinta anos depois da primeira chegada da varíola, a população estaria reduzida a pouco mais de quatro décimos da quantidade inicial e isto pode, sem dúvida, definir-se como uma verdadeira catástrofe” (Livi-Bacci, 2007LIVI-BACCI, Massimo. Conquista: a destruição dos índios americanos. Lisboa: Edições 70, 2007., p. 63). Mas, para Livi-Bacci (2007, p. 63)LIVI-BACCI, Massimo. Conquista: a destruição dos índios americanos. Lisboa: Edições 70, 2007., esse exemplo é extremo principalmente por três razões:
A segunda razão de Livi-Bacci para considerar o exemplo inicial extremo é justamente a articulação de causas biológicas e sociais contribuindo para certo resultado demográfico, não inevitável, do encontro dos espanhóis com os ameríndios. Como se depreende, melhores condições de vida (água potável, comida, diminuição de tributos, alívio da carga de trabalho) e ajuda humanitária poderiam ter contribuído para uma mortalidade menor. Nesse âmbito, Jones (2016)JONES, David S. Population, health, and public welfare. In: HOXIE, Frederick E. The Oxford Handbook of American Indian History. Oxford: Oxford University Press, 2016. p. 413-435. assinala que pensar que as epidemias são causas suficientes para explicar o colapso impacta na forma como entendemos as doenças hoje, pois tendemos, então, a desprezar o quanto ações humanas podem potencializar ou amenizar a transmissão e o impacto das doenças. Jones (2016)JONES, David S. Population, health, and public welfare. In: HOXIE, Frederick E. The Oxford Handbook of American Indian History. Oxford: Oxford University Press, 2016. p. 413-435. nos chama a atenção de que os historiadores têm responsabilidade política, por conta de suas interpretações do passado, pois elas afetam a forma como interpretamos o presente, as doenças no presente:
CONSIDERAÇÕES FINAISApesar de todas as ressalvas sobre o poder causal insuficientes das epidemias, que aos olhos da nossa própria narrativa parece justo e
incontornável, o debate continua vivo, inesgotável. Em 2017, no artigo “The one health concept – the Aztec empire and beyond” (Puente; Calva, 2017PUENTE, José Luis; CALVA, Edmundo. The one health concept – the Aztec empire and beyond. Patogens and Disease, Oxford, v. 75, p. 1-2, June 2017. DOI: https://doi.org/10.1093/femspd/ftx062. Trabalhos ainda mais recentes trazem novas
descobertas sobre epidemias que se abateram sobre o hemisfério americano, sem, contudo, levar em consideração as relações entre causas próximas e causas distantes. Vågene et al. (2018)VÅGENE, Åshild J.; HERBIG, Alexander; CAMPANA, Michael G.; ROBLES GARCÍA, Nelly M.; WARINER, Christine; SABIN, Susanna; SPYROU, Maria A.; ANDRADES VALTUEÑA, Aida; HUSON, Daniel; TUROSS, Noreen; BOS, Kirsten I.; KRAUSE, Johannes. Salmonella enterica genomes from victims of a major
sixteenth-century epidemic in Mexico. Nature Ecology & Evolution, London, v. 2, p. 520-528, Jan. 2018. DOI: https://doi.org/10.1038/s41559-017-0446-6. Em 2019, uma hipótese
surpreendente que envolvia as estimativas populacionais do hemisfério ocidental e a força das epidemias veio à luz: as epidemias relacionadas à conquista espanhola teriam sido responsáveis pelo que os climatologistas chamam de ‘pequena idade do gelo’, um resfriamento no planeta que começou a ocorrer logo ao fim da Idade Média e se estendeu até o início da Revolução Industrial. Segundo os autores do trabalho, as epidemias levaram ao abandono dos campos de cultivo das populações ameríndias, que
foram afetadas por sucessão ecológica secundária, trazendo de volta à paisagem florestas com grandes árvores. Tais florestas fixariam gás carbônico (CO2), subtraindo-o da atmosfera, o que explicaria o resfriamento do planeta (Koch et al., 2019KOCH, Alexander; BRIERLEY, Chris; MASLIN, Mark M.; LEWIS, Simon L. Earth system impacts of the European arrival and Great Dying in the Americas after 1492. Quaternary Science Reviews, Amsterdam, v. 207, p.
13-36, Mar. 2019. DOI: https://doi.org/10.1016/j.quascirev.2018.12.004. Não é difícil de imaginar como autores como Jones e Livi-Bacci reagiriam a esses trabalhos. Que a desnutrição, por exemplo, possa favorecer a disseminação de Samolnella não é uma hipótese absurda. Também não é improvável que a extenuação da força de trabalho, a apropriação da capacidade reprodutiva das populações dos astecas, entre outros fatores sociais, também pudessem pavimentar a falta de resistência a essa bactéria. A responsabilidade que nos cabe sempre é de não desconsiderar que ambas as causas, próximas e distantes, são conjuntamente necessárias e individualmente insuficientes para explicar qualquer fenômeno biológico, como enfatizou Mayr e como propõe a medicina evolutiva. Como nos chama a atenção Massimo Livi-Bacci, nas últimas linhas de seu livro “Conquista: a destruição dos índios americanos”: “A catástrofe, portanto, não foi um destino obrigatório, antes efeito da interação entre fatores naturais e comportamentos humanos e sociais, cujo resultado não estava determinado à partida” (Livi-Bacci, 2007LIVI-BACCI, Massimo. Conquista: a destruição dos índios americanos. Lisboa: Edições 70, 2007., p. 237). O exercício de conjugar as causas próximas com as causas distantes demanda reconhecer que um processo histórico, como a conquista espanhola, não pode ser compreendido ou explicado até que se tenha um quadro consensuado do peso de cada fator para o desfecho desastroso. Considerando que nenhum entendimento da derrocada dos ameríndios pode ser sugerido sem a participação das epidemias, atestadas em inúmeras fontes históricas, seu peso deve ser cuidadosamente examinado à luz de trabalhos que têm nos ensinado sobre a estrutura social e reprodutiva dos povos culturalmente heterogêneos que habitavam as Américas do Sul, Central e do Norte. Tais interpretações indicam que devemos ter cuidado para não oferecer, hoje, oportunidades ambientais e socioculturais para que doenças possam tornar-se epidêmicas e até pandêmicas, principalmente entre populações mais socialmente fragilizadas. REFERÊNCIAS
Datas de Publicação
Histórico
Quais as causas da dizimação das populações indígenas na conquista da América pelos espanhóis?A chegada dos europeus ao continente americano trouxe um fator biológico que foi mortal aos indígenas: as doenças contagiosas. Os historiadores estimam que cerca de ¾ da população nativa tenha perecido vítima de doenças contagiosas. A varíola foi a pior delas e castigou os astecas durante as lutas contra os espanhóis.
Quais as principais causas da vitória dos espanhóis sobre os nativos da América?Estima-se que cerca 100 mil espanhóis tenham ido em direção a América. Superioridade no armamento espanhol. Utilização de Cavalos, visto que os animais eram novidade para os nativos. Outro ponto que facilitou a vitória dos espanhóis sobre os americanos e marcou esse momento, foi a questão biológica.
Quais foram as consequências da chegada dos espanhóis à América para a população indígena americana?Ao passo que o processo de dominação, imposta por violência, ia se desenvolvendo, mais as terras da América tornavam-se sujas de sangue: estima-se que mais de 30 milhões de índios foram mortos durante o processo de colonização espanhola.
Quais as consequências da conquista e ocupação da América pelos espanhóis?O processo de conquista e colonização da América pelos europeus provocou significativa devastação ambiental e morte das populações nativas. O objetivo dos conquistadores espanhóis, portugueses, ingleses e franceses era explorar as suas colônias e proporcionar o maior lucro possível para as metrópoles.
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