A mesma dona angela interpretação de texto

A mesma dona angela interpretação de texto

Não vira em minha formosura,
Ouvia falar dela todo dia,
E ouvida me incitava, e me movia
A querer ver tão bela arquitetura:

Ontem a vi por minha desventura
Na cara, no bom ar, na galhardia
De uma mulher, que em Anjo se mentia;
De um Sol, que se trajava em criatura:

Matem-me, disse eu, vendo abrasar-me,
Se esta a cousa não é, que encarecer-me
Sabia o mundo, e tanto exagerar-me:

Olhos meus, disse então por defender-me,
Se a beleza heis de ver para matar-me,
Antes olhos cegueis, do que eu perde-me. 

    Gregório de Matos

      Este soneto exemplifica a lírica amorosa de Gregório de Matos Guerra que é, fortemente marcada pelo dualismo amoroso CARNE X ESPÍRITO, que leva, normalmente a um sentimento de culpa no plano espiritual. A mulher, muitas vezes, é a personificação do próprio pecado, da perdição espiritual.

      Observa-se que, neste poema, a mulher – identificada inicialmente com a figura de um anjo  o qual remete à pureza angelical contida no próprio nome ÂNGELA e depois com uma grandeza maior, – o SOL – é vista como um ser superior, dotado de grandezas absolutas e inacessíveis.

      Porém, o que se percebe nos tercetos é que, em vez de proteger – papel que caberia ao anjo, – a mulher, com sua beleza, leva-o ao desejo e, consequentemente, ao pecado. Por isso, o eu lírico, em um apelo dramático aos próprios olhos – centro de percepção visual e origem do desejo . – pede a eles que se ceguem. Do contrário ele será levado à morte, isto é, à perdição espiritual. Eis o drama amoroso do Barroco: o apelo sensorial do corpo se contrapõe ao ideal religioso, gerando sentimento de culpa.

REFERÊNCIA:

 CEREJA, William Roberto

                 Literatura Brasileira – 3ª edição – São Paulo: Atual, 2005.

À mesma D. Ângela
Anjo no nome, Angélica na cara!
Isso é ser flor, e Anjo juntamente:
Ser Angélica flor, e Anjo florente,
Em quem, senão em vós, se uniformara:
Quem vira uma tal flor, que a não cortara,
De verde pé, da rama fluorescente;
E quem um Anjo vira tão luzente,
Que por seu Deus o não idolatrara?
Se pois como Anjo sois dos meus altares,
Fôreis o meu Custódio, e a minha guarda,
Livrara eu de diabólicos azares.
Mas vejo, que por bela, e por galharda,
Posto que os Anjos nunca dão pesares,
Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda

Análise do poema

O soneto mostra-se paradoxal em uma contradição que organiza o poema todo com uma figura feminina que é ao mesmo tempo anjo e flor, espírito e matéria. 
Neste soneto Gregório mostra-se um poeta lírico falando de sua amada. Revela muito do estilo cultista por meio do jogo de palavras usado: “Ângela” = “Angélica” = “Anjo”, “flor” = “florente”, seguindo a tradição de Camões ao comparar a beleza da mulher à natureza. O seu tema central é a contradição da mulher Ângela, que no poema é colocada no lugar da flor (metáfora da beleza), o objeto do desejo e em ''anjo'' metáfora de pureza e símbolo da elevação espiritual, no qual ocorre o uso de vários trocadilhos. Angélica (que é pura como um anjo e ao mesmo tempo é o nome de uma flor que inspira sensualidade) trata-se de uma mulher que tem uma feição angelical tão bela e amorosa que passa a ideia de uma flor por ser muito delicada. Uma imagem de mulher construída a partir de duas palavras, que é associada ao seu nome e ao seu rosto: flor “Angélica na cara” e anjo “Anjo no nome”. Aqui podemos perceber a presença de uma contradição, já que a mulher amada é um anjo (plano espiritual) e flor (plano material). A sua imagem é a de um anjo, mas que tenta e não guarda, mostrando assim um grande toque barroco aparente no jogo de contradição revelado. Se essa mulher é um anjo, como é possível que, em lugar de garantir proteção, cause apenas tentação ao lírico? A contradição entre o amar e o querer desemboca no paradoxo dos versos finais: “Sois anjos, que me tenta, e não me guarda”. Assim o louvor e a exaltação de uma beleza angelical termina com uma tentação demoníaca e que gera a imagem angelical feminina, e a tentação da carne que atormenta o espírito.

Naara Silva