Quais eram as principais tensões que abalavam equilíbrio mundial no período?

RESUMO

Este artigo analisa a política da Argentina quanto a Segunda Guerra Mundial e sua repercussão na geopolítica argentina em relação ao Rio da Prata. O argumento central do artigo é o de que a neutralidade argentina nesse conflito significava a recusa de Buenos Aires em aceitar a iniciativa do Presidente Roosevelt de um panamericanismo voltado para a defesa do hemisfério americano, de contenção do nazifascismo, sob liderança dos Estados Unidos. À política hemisférica de Roosevelt, a Argentina contrapôs o projeto de uma integração econômica do Rio da Prata, bloco do qual também participariam o Brasil e o Chile. Esse bloco seria instrumento de contenção dos Estados Unidos na América do Sul e, ainda, constituiria mercado consumidor para produtos argentinos.

PALAVRAS-CHAVE:
Rio da Prata e a Segunda Guerra Mundial; Argentina e a Segunda Guerra Mundial; geopolítica argentina e Rio da Prata

ABSTRACT

This article analyses Argentina’s foreign policy regarding World War II and its repercussion on the country’s geopolitics in relation to Rio da Prata. The central argument of the article is that the Argentine neutrality in the conflict meant the refusal by Buenos Aires in accepting Presidents’s Roosevelt initiative of a pan-Americanism towards the American Hemisphere of containing the nazifascism under the leadership of the United States. In opposition to the hemispheric policy of Roosevelt, Argentina countered the economic integration project of Rio da Prata, in which Brazil and Chile were supposed to take part. This group of countries would work as an instrument for containing the United States presence in South America, besides serving as a market for Argentine products.

KEYWORDS:
Rio da Prata and World War II; Argentina and World War II; Argentinian geopolitics and Rio da Prata

Na Argentina, em setembro de 1930, um golpe de Estado liderado pelo coronel José F. Uriburu derrubou o presidente Hipólito Yrigoyen, pondo fim aos 14 anos de governos reformistas da União Cívica Radical. Os golpistas dividiam-se em duas correntes, a conservadora-liberal e a nacionalista, liderada por Uriburu, que se tornou presidente provisório da República. A facção nacionalista caracterizava-se por posições antiliberais, chauvinistas e era influenciada pelo fascismo italiano, enquanto a conservadora-liberal tinha como líder o general Agustín P. Justo e opunha-se a medidas extremas. Esta última corrente se impôs e, assim, foi realizada a eleição presidencial, fraudada, sob tutela dos militares e sem a participação da União Cívica Radical. Nessas circunstâncias, Justo foi eleito presidente da República Argentina pela Concordancia, uma coalizão entre os conservadores do Partido Democrata Nacional, o Partido Socialista Independente, forte em Buenos Aires e que estava à direita do Partido Socialista tradicional, e os “radicais antipersonalistas” (contrários a Yrigoyen), o qual foi o mais importante grupo político argentino até o final da década de 1930 (ROCK, 1995ROCK, David. Argentina, 1516-1987: desde la colonización española hasta Raúl Alfonsín. Buenos Aires: Alianza Singular, 1995., p. 278-279).

Sob a presidência de Justo (1932-1938) a economia argentina recuperou-se rapidamente, graças à eficiente administração econômica do governo e à garantia do acesso ao mercado da Grã-Bretanha para produtos argentinos. Isto foi obtido pelo Pacto Roca-Runciman (1933), ao contornar a Convenção de Otawa (1932) que criara um sistema de tarifas preferenciais entre os membros da Commonwealth.1 1 Em 1939, o Produto Interno bruto argentino era 15% maior do que em 1929 (ROCK, 1995, p. 276). Continuou, assim, a colaboração entre a elite argentina e os interesses britânicos, mas as concessões da Argentina à Grã-Bretanha nesse Pacto galvanizaram a oposição do setor nacionalista, que acusou o governo Justo de ceder a interesses estrangeiros (HOWKINS, 2010HOWKINS, Adrian. A formal end to informal imperialism: environmental nationalism, sovereignty disputes, and the decline of British interests in Argentina, 1933-1955. British Scholar, Edinburgh, v. 3, n. 2, p. 235-262, 2010., p. 2010).

O pensamento nacionalista floresceu desde a década de 1920, penetrando em diferentes setores da sociedade argentina, inclusive no militar. Ele identificava como ameaças ao país o imperialismo britânico, os judeus e o comunismo e via nas disputas intereuropeias da década de 1930, que abalavam o sistema de relações internacionais e suas estruturas de dominação, uma oportunidade a ser explorada para a Argentina libertar-se da sua condição neocolonial e, ainda, projetar-se em termos geopolíticos na América Latina. Era um nacionalismo simpático ao nazifascismo, que coincidia com a ascendente presença econômica e cultural japonesa e alemã no continente americano (BEIRED, 2001BEIRED, José Luis Bendicho. “A grande Argentina”: um sonho nacionalista para a construção de uma potência na América Latina. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 21, n. 42, p. 303-322, 2001., p. 307).

A RESISTÊNCIA AO PAN-AMERICANISMO DE ROOSEVELT

Em março de 1933, Franklin Delano Roosevelt tomou posse como presidente dos Estados Unidos, quando ocorria a ascensão de países que colocavam em risco a paz mundial com políticas militaristas e de protecionismo econômico. Roosevelt contrapôs-lhes a orientação em favor do desarmamento, da redução das barreiras comerciais e, em relação à América Latina, substituiu a política de “Boa Vizinhança” pela política de intervenções militares norte-americanas nos países do continente (SUMNER, 1937, p. 445). Invocando o panamericanismo, Washington procurou organizar e liderar o continente americano, isolando-o dos problemas da Ásia e da Europa (IRIYE, 1993IRIYE, Akira. The Cambridge History of American Foreign Relations. New York, Cambridge University Press, 1993. v. III, p. 148). Nesse mesmo ano, na VII Conferência Pan-Americana de Montevidéu, o secretário de Estado Cordell Hull anunciou uma nova era de cooperação interamericana e, pressionado pelos países latino-americanos, aceitou que na Convenção sobre os Direitos e Deveres dos Estados constasse os princípios da igualdade jurídica entre eles e de que nenhum Estado americano tinha o direito de intervir nos assuntos internos e externos de outro (MORGENFELD, 2011MORGENFELD, Leandro. Vecinos en conflito; Argentina y Estados Unidos en las Conferências Pan-Americanas (1880-1955). Buenos Aires: Peña Lillo/Ediciones Continente, 2011., p. 241).

Três anos depois, em 1936, ocorreu em Buenos Aires a Conferência Interamericana de Consolidação da Paz, convocada em janeiro desse ano pelo presidente norte-americano. A importância do evento para os EUA está demonstrada pela presença do próprio Roosevelt na sua abertura e de Cordell Hull, como chefe da delegação norte-americana. Roosevelt acabara de ser reeleito e, confiante em contar com o respaldo dos seus compatriotas, chegou à capital argentina decidido a reafirmar o papel dos EUA nos assuntos mundiais. O objetivo imediato de sua diplomacia era o de construir, sob a liderança de Washington, um panamericanismo baseado na solidariedade e defesa hemisféricas, frente aos riscos extracontinentais. (IRIYE, 1993IRIYE, Akira. The Cambridge History of American Foreign Relations. New York, Cambridge University Press, 1993. v. III, p. 154)

Os objetivos norte-americanos encontraram resistência nos seus anfitriões. O chanceler argentino, Carlos Saavedra Lamas, recusou a proposta de Hull de criação do Conselho Interamericano Consultivo Permanente. Na realidade:

Tudo o que propunha a delegação norte-americana parecia-lhe mal. Em certa ocasião atacou Cordell Hull em termos que não são revelados pela documentação oficial. Saavedra Lamas opôs-se também aos princípios de neutralidade propostos pelos Estados Unidos. (...) como confessou mais tarde em suas Memorias, [Hull] não esqueceu as frases cortantes, sua hostilidade, sua soberbia e, ainda magoado, não perdoou o chanceler argentino não ter tido sequer “a cortesia normal usual de despedir-se”. (LANÚS, 2001LANÚS, Juan Archibaldo. Aquel apogeo; política internacional argentina 1910-1939. Buenos Aires: Emecé, 2001., p. 246)

Coube à delegação brasileira apresentar um projeto de resolução que reunia a ideia da “consulta” e o princípio da “não intervenção”. Desse modo, obteve-se consenso das delegações e aprovou-se declaração de princípios da solidariedade continental pois, frente ao aumento das tensões internacionais, todos os países, “salvo a Argentina”, estavam preocupados com os meios de defesa da sua integridade territorial e independência política (LANÚS, 2001LANÚS, Juan Archibaldo. Aquel apogeo; política internacional argentina 1910-1939. Buenos Aires: Emecé, 2001., p. 246). Para efeitos públicos, porém, o Secretário de Estado fez um balanço otimista da Conferência, apresentando como harmoniosos seus trabalhos e resultados (HULL, 1937HULL, Cordell. The results and significance of the Buenos Aires Conference. Foreign Affairs, Washington, v. 15, n. 3, p. 1-10, 1937., p. 8) quando na realidade foi nela que ocorreu o primeiro grande choque diplomático entre a Argentina e os Estados Unidos. No entanto, o resultado dela foi importante para a construção da unidade continental, na medida em que estabeleceu o princípio de que, em caso de ameaça à paz das repúblicas americanas, seus governos realizariam consultas com o objetivo de adotar medidas de cooperação pacífica. Consultas e medidas para as quais não era prevista obrigatoriedade, garantindo à Argentina autonomia nas suas decisões externas (MORGENFELD, 2011MORGENFELD, Leandro. Vecinos en conflito; Argentina y Estados Unidos en las Conferências Pan-Americanas (1880-1955). Buenos Aires: Peña Lillo/Ediciones Continente, 2011., p. 252-253).

No início de 1938 terminava o mandato presidencial de Justo e a Concordancia impôs a candidatura de Roberto Marcelino Ortiz à Presidência da República. A indicação era sinônimo de vitória, tendo em vista o caráter fraudulento das eleições argentinas, e Ortiz assumiu a presidência em fevereiro desse ano. Ele nomeou José M. Cantillo, diplomata de carreira, para Ministro das Relações Exteriores.

No plano externo, Ortiz logo teve de posicionar-se quanto ao panamericanismo defendido pelos EUA, pois estava marcada para dezembro de 1938 a realização da VIII Conferência Interamericana, em Lima. Em agosto, o chanceler Cantillo convidou seu colega uruguaio Alberto Guani para visitar Buenos Aires. Este era ministro do governo do general Alfredo Baldomir (1938-1943), do Partido Colorado, que foi eleito também com o apoio da corrente liderada por Luís Alberto Herrera, do Partido Nacional, pondo fim ao período autoritário do governo de Gabriel Terra (1931-1938). Baldomir havia designado uma Comissão Assessora para examinar os temas que seriam discutidos na VIII Conferência e ela instruiu Guani a evitar compromisso de caráter político com a Argentina. A Comissão concluiu “que o Uruguai não deve aparecer formando uma ‘entente’ com a Argentina, orientada em uma política de oposição aos Estados Unidos”. Esse posicionamento retrata “um dos elementos orientadores da política exterior uruguaia: a aliança estratégica com os EUA, como contrapeso à influência argentina” (RODRÍGUEZ AYÇAGUER, 1999RODRÍGUEZ AYÇAGUER, Ana María. El alineamiento internacional del Uruguay durante la Segunda Guerra Mundial. Algunas hipótesis y reflexiones. In: V Jornadas Internacionales de Historia de las Relaciones Internacionales, La Plata (Argentina), 1999., p. 6-7).

Na VIII Conferência Interamericana, a delegação argentina atuou para manter a autonomia da política externa do seu país e inviabilizou medidas, propostas pelos EUA, para o funcionamento do panamericanismo fundamentado na solidariedade continental. Como resultado, a declaração da Conferência de Lima aprovou a solidariedade continental apenas com princípios genéricos; decidiu pela colaboração entre os países americanos, contra intervenção ou atividade extracontinental que pudesse ameaçá-los, e criou um sistema de consultas entre eles, mas sem procedimentos obrigatórios. Esse resultado satisfez à Argentina, por não a vincular compulsoriamente a nenhum compromisso, e aos EUA, pois chegara-se a uma Declaração que dava à região um mecanismo de coordenação frente a ameaças externas (LANÚS, 2001LANÚS, Juan Archibaldo. Aquel apogeo; política internacional argentina 1910-1939. Buenos Aires: Emecé, 2001., p. 255).

A postura de resistência da Argentina frente aos Estados Unidos era facilitada também por sua posição geopolítica no Rio da Prata. No Paraguai, a influência argentina era esmagadora em todos os setores da vida nacional e o país alinhava-se a Buenos Aires, que o apoiou secretamente na Guerra do Chaco com informações e material bélico. (DORATIOTO, 2012DORATIOTO, Francisco. Relações Brasil-Paraguai; afastamento, tensões e reaproximação, 1889-1954. Brasília: FUNAG, 2012., p. 306-320) Não ocorria o mesmo por parte do Uruguai, cuja posição geográfica, atividades econômicas e processo histórico evitavam uma relação de dependência do poderoso vizinho do sul. No entanto, os governos de Montevidéu não podiam ignorar a importância da Argentina e sua influência, como o demonstra a visita do chanceler Guani a Buenos Aires. Esta foi feita com o cuidado de não assumir compromissos políticos, mas, ao mesmo tempo, de forma a não parecer um distanciamento entre os dois países, o que permitiu manter a cordialidade nas relações bilaterais.2 2 “Memoria de la labor desarrollada por la Embajada en el año 1939”, p. 2. Embaixada uruguaia em Buenos Aires, 30/4/1940. Archivo Histórico Diplomático - Ministerio de Relaciones Exteriores - Uruguai, caixa 1934-1941 (1), pasta A-21 (1940). Característica esta que também ocorria entre o Brasil e a Argentina, com o presidente Getúlio Vargas visitando Buenos Aires em 1935, às vésperas da assinatura nessa cidade do Protocolo de Paz que pôs fim à Guerra do Chaco. Na ocasião, os presidentes brasileiro e argentino assinaram importantes convênios de aproximação comercial, cultural e de infraestrutura entre seus países. Essa visita de Vargas, bem como o papel da diplomacia argentina na paz do Chaco e sua influência na América do Sul, representam o apogeu da influência argentina no Rio da Prata e, também, na América do Sul (DORATIOTO, 2014DORATIOTO, Francisco. O Brasil no Rio da Prata. 2. ed. Brasília: FUNAG , 2014., p. 109-114).

A Segunda Guerra Mundial pôs em xeque essa influência ao criar uma realidade internacional mais complexa e que se tornou crescentemente desgastante para a Argentina devido as opções externas feitas por seus governantes. Em outubro de 1939, realizou-se no Panamá a I Reunião de Consulta dos Ministros de Relações Exteriores Americanos, para tratar do posicionamento do continente quanto à guerra na Europa, iniciada no mês anterior. O presidente Ortiz e o chanceler Cantillo simpatizavam com os aliados, mas antes mesmo do encontro no Panamá declararam a neutralidade argentina no conflito. Esta postura garantia a continuidade da venda de alimentos às partes em luta, particularmente ao maior parceiro comercial argentino, a Grã-Bretanha. Argumenta-se que, na realidade, a Argentina não foi neutra do ponto de vista econômico pois abasteceu de comida os países aliados, particularmente o Reino Unido, ao qual forneceu 40% da carne consumida (RAPOPORT, 1995RAPOPORT, Mario. Argentina y la Segunda Guerra Mundial: mitos y realidades. Estudios Interdisciplinarios de América Latina, Tel Aviv, v. 6, n. 1, p. 5-21, 1995. , p. 10-11). Contudo, este comércio privilegiado não resultava da opção do governo argentino em favorecer os Aliados, mas sim era consequência do bloqueio naval da Marinha Real contra a Alemanha e a França ocupada.

O representante argentino na Reunião do Panamá, embaixador Leopoldo de Mello, opôs-se às medidas defendidas pelos Estados Unidos para o fortalecimento da solidariedade continental por facilitarem a liderança política e militar norte-americana nas Américas. No final da reunião, foi declarada a neutralidade dos países americanos no conflito europeu e criada uma zona de segurança marítima de até 300 milhas da costa americana, a qual deveria ficar livre de ato de guerra por parte dos beligerantes. A resistência de Leopoldo de Mello inviabilizou uma proposta dos EUA, que obrigava cada Estado americano a patrulhar o seu espaço marítimo, ao tornar facultativa essa atividade (SANCHÍS MUÑOZ, 1992SANCHÍS MUÑOZ, José R. La Argentina y la Segunda Guerra Mundial. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1992., p. 47-59).

A sociedade argentina, incluindo grupos pró-aliados, estava de acordo com a neutralidade do seu país. Esse consenso explica-se pelo precedente histórico, pois ocorrera o mesmo na Primeira Guerra Mundial; por atender ao interesse dos seus exportadores, pois supunham que garantiria suas vendas a toda a Europa, e, ainda, por satisfazer a corrente nacionalista de extrema direita (TULCHIN, 1980TULCHIN, Joseph S. Una perspectiva histórica de la política argentina frente al Brasil. Estudios Internacionales, Santiago, v. 13, n. 52, p. 460-480, 1980., p. 469; ESCUDÉ, 1988ESCUDÉ, Carlos. El boicot norteamericano a la Argentina en la década del 40. Buenos Aires: CEDAL, 1988. , p. 3). Para esta, cujo pensamento penetrara no meio militar, a Argentina devia ser a principal potência da América Latina, o que implicava em controlar o espaço geopolítico platino. A Argentina ver-se como líder das repúblicas latino-americanas era um sentimento “tão antigo quanto [sua] própria prosperidade” (ESCUDÉ, 1996ESCUDÉ, Carlos. Gran Bretaña, Estados Unidos y la Declinación Argentina: 1942-1949. 4. ed. Buenos Aires: Editorial Belgrano, 1996., p. 40).

Tal ambição nacionalista chocava-se com o projeto de liderança pan-americanista de Roosevelt e favorecia a posição da Alemanha na Argentina. A partir de 1940, a Embaixada alemã em Buenos Aires passou a financiar as publicações dos nacionalistas argentinos e, nos anos seguintes, elas atacaram a posição política e o desempenho militar dos Estados Unidos na Segunda Guerra. Os nacionalistas desejavam a vitória do Eixo, pois eram “no mínimo filofascistas e se consideravam os defensores austrais da causa da extrema direita europeia, e em especial das tradições latinas e da Espanha imperial e católica” (BEIRED, 2001BEIRED, José Luis Bendicho. “A grande Argentina”: um sonho nacionalista para a construção de uma potência na América Latina. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 21, n. 42, p. 303-322, 2001., p. 312-314).

Meses depois da Conferência do Panamá, o governo Ortiz propôs aos EUA a substituição do conceito de neutralidade dos países americanos pelo da não-beligerência Se adotada essa postura, a Argentina poderia apoiar a Grã-Bretanha mas manteria o intercâmbio comercial com a Alemanha e Itália, inclusive de material estratégico. Para o embaixador brasileiro em Londres, a iniciativa argentina “foi inspirada pelo governo britânico” com o objetivo de obter que Roosevelt adotasse uma política mais favorável aos interesses dos países aliados.3 3 Moniz de Aragão para Oswaldo Aranha, ofício 170, Londres, 17/5/1940. (BRAGA, 2018, p. 29). A proposta foi classificada como inoportuna pelo subsecretário de Estado Sumner Wells, pois o Congresso dos EUA recém aprovara a Lei de Neutralidade. De fato, os norte-americanos eram contrários à entrada do seu país na guerra e Roosevelt iniciava a campanha por sua reeleição, o que impunha-lhe a defesa da neutralidade (CISNEROS; ESCUDÉ, 1999CISNEROS, Andrés; ESCUDÉ, Carlos. Historia general de las relaciones exteriores de la República Argentina. Buenos Aires: CARI/Nuevohacer, 1999. Tomos X, XIII., t. 5, p. 281-282).

O governo brasileiro colocou-se contra essa proposta, interpretada como tentativa da Argentina de manter comércio exterior sem restrições e dissociar-se de obrigações pan-americanas (SEITENFUS, 2003SEITENFUS, Ricardo. O Brasil vai à guerra; o processo de envolvimento brasileiro na Segunda Guerra Mundial. 3. ed. Barueri: Manole, 2003., p. 204). Para o governo uruguaio, os países americanos terminariam envolvidos na guerra se aceitassem a proposta argentina. O chanceler Guani afirmou a Cantillo que um país era neutro ou beligerante e que a revisão da neutralidade era algo muito sério, somente podendo ser feita por decisão de nova reunião de chanceleres do continente (FIGALLO, 2004FIGALLO, Beatriz J. 1940, un año en revisión: la Argentina y la repercusión regional de la Segunda Guerra Mundial. Temas de Historia Argentina y Americana, Buenos Aires, n. 4, p. 45-83, 2004., p. 57).

Os setores exportadores argentinos ansiavam por soluções que não restringissem seu comércio com todos os países europeus. Afinal, entre 1930 e 1939, 76,5% das exportações argentinas iam para mercados europeus, sendo 34,3% para o Reino Unido, 7,5% para a Alemanha e 5% para a França, enquanto 10,5% seguiam para os EUA e 8,6% para América do Sul (5,4% para o Brasil). A eclosão da guerra perturbou ou impediu a manutenção de rotas marítimas comerciais no Atlântico Sul, enquanto a expansão do conflito retirou da Argentina o acesso a mercados relevantes, como o alemão e o francês. Para compensar as perdas de comércio com a Europa continental, buscou-se ampliar as vendas no continente americano e, entre 1940 e 1945, as exportações argentinas tiveram o seguinte destino: 17,8% para a América do Sul (7,1% para o Brasil); 25,3% para os EUA e a Grã-Bretanha manteve participação de 34,5% (PORCILE, 1995PORCILE, Gabriel. The challenge of cooperation: Argentina and Brasil, 1939-1955. Journal of Latin American Studies, Cambridge, v. 7, n. 1, p. 129-159, 1995., p. 132-133).

EM BUSCA DA INTEGRAÇÃO REGIONAL

A recusa norte-americana à não-beligerância enfraqueceu, na política interna argentina, a posição de Cantillo e do próprio Ortiz, o qual a diplomacia britânica considerava “totalmente simpático a nós”.4 4 PEROWNE, J. V. “Memorando sobre la situación política en los países del Río de la Plata en relación con Gran Bretaña y los Estados Unidos”, Londres, 3/11/1941. (NAHUM, 1999, p. 202). Logo em seguida, Ortiz licenciou-se da Presidência devido a um grave problema de saúde que o levaria à morte em julho de 1942. O resto do seu mandato foi exercido pelo vice-presidente Ramón S. Castillo, político extremamente conservador que discordava da política externa simpática aos aliados (SANCHÍS MUÑOZ, 1992SANCHÍS MUÑOZ, José R. La Argentina y la Segunda Guerra Mundial. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1992., p. 79-80).

Era real a simpatia pelo nazifascismo na cúpula militar argentina, resultado do pensamento nacionalista extremado e da forte influência alemã no Exército. No final da década de 1930, uma média anual de 20 oficiais argentinos faziam cursos na Alemanha, enquanto uma missão militar alemã em Buenos Aires, comandada por um general, assessorava o Estado Maior do Exército. Enquanto isso, os EUA mantinham apenas uma missão de sete oficiais junto à Aeronáutica local e inexistia presença militar do Reino Unido na Argentina, o que explica a contradição de se “contar com uma elite civil predominantemente pró-britânica e uma maioria da oficialidade pró-alemã”.5 5 Conforme Sanchís Muñoz (1992, p. 71), essa postura em grande parte do Exército argentino tinha origens no século XIX, em consequência da invasão, reconquista e defesa de Buenos Aires contra os ingleses (1806-1807) e da ocupação por estes das ilhas Malvinas, em 1833. Para esse autor, o fato de a oficialidade argentina ser pró-alemã não significava que fosse nazista. A Embaixada uruguaia em Buenos Aires calculava que, no Exército e na Marinha, 80% dos oficiais eram “germanófilos” e que boa parte dos militares golpistas de 1930 formava um núcleo de tendência nazista, ao qual aderiram civis. O totalitarismo contava com simpatizantes inclusive nos partidos políticos democráticos.6 6 Luiz Henrique AZAROLA GIL para Alberto GUANI, “Informe Confidencial”, Buenos Aires, 23/07/1940, anexo ao ofício 552/940. Archivo Histórico Diplomático - Ministerio de Relaciones Exteriores - Uruguai, caixa 131, pasta 22 - “Asuntos vários”

Poucos dias depois de Castillo assumir interinamente a presidência argentina, teve início da II Reunião Interamericana de Consulta de Havana. Ela ocorreu entre 21 e 31 de julho de 1940, sob o impacto da invasão alemã na Bélgica, Holanda, Luxemburgo e França. A essa altura, os Estados Unidos consideravam seriamente o risco de um ataque militar alemão à América do Sul e viam como urgente definir uma política de defesa do continente (IRIYE, 1993IRIYE, Akira. The Cambridge History of American Foreign Relations. New York, Cambridge University Press, 1993. v. III, p. 177-178).

Do lado argentino, em Havana persistiu a orientação política demonstrada nos encontros entre Lima e Panamá. O chanceler Cantillo tentou obter apoio do Paraguai à posição que a Argentina defenderia na II Reunião, antecipando-a para o embaixador desse país, Vicente Rivarola. Este informou-o de que a Argentina seria favorável à solidariedade americana, à “unidade moral” e à cooperação econômica continental, mas “resistiria energicamente” a compromissos que limitassem sua “liberdade de ação política ou econômica e que pudessem arrastá-la para a guerra”. Rivarola convenceu-se de que o encontro de Havana não produziria resultados e sugeriu a seu governo não enviar o chanceler Tomás Andrés Salomoni, mas sim alguém de menor hierarquia.7 7 RIVAROLA para Exteriores, telegrama, Buenos Aires 2/07/1940. Archivo Histórico - Ministerio de Relaciones Exteriores - Paraguai, DPI, pasta 353. No entanto, Paraguai e Uruguai enviaram seus ministros de Relações Exteriores à capital cubana, enquanto o Brasil não o fez pois Oswaldo Aranha não desejava afastar-se de Getúlio Vargas, devido a delicada situação internacional (SEITENFUS, 2003SEITENFUS, Ricardo. O Brasil vai à guerra; o processo de envolvimento brasileiro na Segunda Guerra Mundial. 3. ed. Barueri: Manole, 2003., p. 232).

A Reunião de Havana criou uma Comissão Interamericana, para administrar as colônias e possessões nas Américas dos países europeus ocupados pela Alemanha. Também decidiu-se instalar, em Washington, a comissão econômica encarregada de estudar formas de cooperação econômica entre os países americanos. Os EUA saíram fortalecidos, pois a Reunião decidiu que qualquer ataque extra-hemisférico a um país americano seria considerado agressão aos demais e, em caso de emergência, um Estado americano poderia tomar decisões, sem consulta prévia aos demais. A Resolução de Havana permitiu aos países do continente assinarem acordos de defesa militar entre dois ou mais deles, sem necessidade de autorização unânime dos Estados americanos. Deste modo, o governo norte-americano livrou-se de subordinação aos demais governos das Américas e teve a liberdade de estabelecer cooperação militar com os países que lhe interessasse. Em 1941, o governo Roosevelt implementou o programa “Lend and Lease”, de fornecimento de material militar para países que cooperassem na defesa da democracia e que se alinhassem à política de segurança hemisférica (BOERSNER, 1990BOERSNER, Demetrio. Relaciones internacionales de America Latina. 4. ed. Caracas: Nueva Sociedad, 1990. , p. 219).

Enquanto o governo argentino resistia à liderança continental norte-americana, a elite político-militar brasileira aceitou-a, após certa indecisão. Em setembro de 1940, os Estados Unidos concordaram em fornecer os meios para a construção de uma usina siderúrgica no Brasil e o governo Vargas retribuiu colocando à disposição da economia norte-americana os recursos naturais brasileiros. Em junho de 1941, esse ditador aprovou a construção de bases aéreas norte-americanas no nordeste do país e, em outubro desse ano, os EUA concederam e arrendaram material bélico para o Brasil no montante de cem milhões de dólares, valor que atualizado é cerca de US$ 1,68 bilhão. Até o final da guerra, o país recebeu de Washington cerca de US$ 360 milhões em equipamentos bélicos, valor que hoje representa uns US$ 5,6 bilhões.8 8 As atualizações dos valores em dólar foram feitas, no caso dos US$ 100 milhões, considerando a inflação em dólar norte-americano de 1597,82% entre 1/11/1941 e 31/01/2020. Quanto aos outros 260 milhões, estes representam material que foi recebido pelo Brasil espaçadamente, entre 1941 e 1945, sendo que o grosso do armamento foi fornecido até o final de 1944. Por isso, optou-se por utilizar a inflação em dólar de 1.354,39%, entre 31/12/1944 e 31/01/2020. Os cálculos foram feitos no sítio: <https://fxtop.com/pt/calculadora-de-inflacao.php> Acesso em: 17 fev. 2020. Coube ao Brasil 74% do total de ajuda militar norte-americana enviada à América Latina durante a guerra (McCANN, 2016McCANN, Frank D. The rise and fall of the Brazilian-American military Alliance, 1942-1977. Revista Esboços, Florianópolis, v. 22, n. 34, p. 13-60, 2016., p. 16-17; GARCIA, 2005GARCIA, Eugênio Vargas. Cronologia das Relações Internacionais do Brasil. 2. ed. rev. amp. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005., p. 155).

O Paraguai e o Uruguai também buscaram aumentar a capacidade militar de suas forças armadas. Em Havana, o chanceler paraguaio Salomoni foi convidado e aceitou viajar com Hull até Washington para tratarem da colaboração entre os seus países. Nessa capital, Salomoni encontrou-se com Roosevelt e dele recebeu garantias de ajuda militar ao Paraguai.9 9 SALOMONI para o presidente ESTIGARRIBIA, telegrama cifrado n. 78, Washington, 6.8.1940. Archivo del Ministerio de Relaciones Exteriores - Paraguai, DPI 353. O Uruguai, por sua vez, já em agosto de 1941 recebeu crédito norte-americano de US$ 17 milhões - uns US$ 297 milhões em valores atualizados - para compra de material bélico. No final desse ano, chegaram a Montevidéu dois oficiais norte-americanos que se reuniram com chefes militares locais, chegando a acordo oficioso autorizando a instalação de base militar dos Estados Unidos no litoral uruguaio. Anteriormente, em outubro, esses dois oficiais estiveram em Buenos Aires, onde ouviram de comandantes militares locais, inclusive do Ministro da Marinha, ser desnecessária para a defesa da Argentina a cooperação militar com Washington (FIGALLO, 2001FIGALLO, Beatriz J. Desde la crisis internacional a los conflictos regionales: la Argentina y el Uruguay, 1940-1955. Anuario del CEH, Córdoba, n. 1, p. 329-350, 2001., p. 33).

No início de setembro de 1940, Julio A. Roca foi nomeado Ministro das Relações Exteriores da Argentina e deu continuidade à posição de manter o país longe da guerra, mas sem afastar-se das duas partes em luta. Esse verdadeiro equilibrismo diplomático era comprometido pela realidade comercial, pois houve redução das exportações argentinas para a Alemanha e a países por ela ocupados, o que produziu déficit no comércio exterior da Argentina. Esta teve as contas externas ainda mais abaladas quando, no final de 1939, o Reino Unido declarou-se incapaz de pagar suas importações, o que resultou em um acordo pelo qual o saldo positivo argentino no comércio bilateral seria depositado em libras esterlinas no Banco da Inglaterra. Elas ficariam bloqueadas, exceto para serem utilizadas pelo governo argentino no pagamento da importação de bens e serviços britânicos ou para saldar obrigações financeiras na praça bancária de Londres. Contudo, o crescimento econômico da Argentina dependia de importações dos EUA de manufaturados, combustíveis e lubrificantes que, até 1939, eram pagas com recursos obtidos nos superávits comerciais, principalmente com o Reino Unido. Portanto, ficou abalado esse esquema comercial triangular, pelo qual “esses polos opostos mantinham um equilíbrio para sustentar a autonomia e os interesses da Argentina no Atlântico Sul” (DOSMAN, 2006DOSMAN, Edgard J. Prebisch y los mercados regionales: primera fase. In: POLLOCK, David H (org.). Raúl Prebisch: el poder, los principios y la ética del desarrollo. Buenos Aires: BID-INTAL, 2006. p. 109-123., p. 111).

A resposta argentina a esse problema foi a de implementar medidas de estímulo ao comércio com os países vizinhos e os EUA. Em novembro de 1940, o ministro argentino da Fazenda, Federico Pinedo, apresentou o “Plano de Reativação Econômica”, que foi idealizado por Raúl Prebisch, presidente do Banco Central. O plano demandava estímulos estatais à produção agrícola e industrial, esta resultante do processo de substituição de importações, e previa aumento e diversificação das exportações para países americanos (DOSMAN, 2006DOSMAN, Edgard J. Prebisch y los mercados regionales: primera fase. In: POLLOCK, David H (org.). Raúl Prebisch: el poder, los principios y la ética del desarrollo. Buenos Aires: BID-INTAL, 2006. p. 109-123., p. 113).

No mês anterior, entre 3 e 6 de outubro, realizara-se no Rio de Janeiro a Conferência Econômica Argentino-Brasileira. Encabeçava a delegação argentina o próprio Pinedo, que era acompanhado por Prebisch, enquanto a brasileira era chefiada pelo Ministro da Fazenda, Arthur Souza Costa. Este, no discurso de abertura, afirmou que a guerra na Europa eliminara antigos mercados consumidores de produtos americanos e que “o caminho a seguir” era o da estreita colaboração entre países das Américas. Disse haver disposição do Brasil por um melhor entendimento com a Argentina, de modo a aumentar o comércio bilateral pois “as nossas economias podem complementar-se, [desde que] orientadas e disciplinadas nesse sentido”.10 10 “Já está funcionando a Conferência Econômica Argentino-Brasileira”. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 4/10/1940, p. 1-11. Disponível em: <http://memoria.bn.br/pdf/103730/per103730_1940_00232.pdf> Acesso em: 6 nov. 2018. No final do encontro, Pinedo e Souza Costa assinaram documento recomendando ações dos respectivos governos para criar um regime progressivo de livre intercâmbio comercial. O ministro brasileiro discursou, afirmando que os resultados do encontro representavam “uma expressão objetiva” do panamericanismo e convidou os países vizinhos a integrarem-se a esse novo espaço econômico. Para Pinedo, por sua vez, estavam lançadas as bases “de uma nova época de fraternidade”.11 11 “Créditos recíprocos entre o Brasil e a Argentina; o acordo argentino-brasileiro”. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 8/10/1940, p. 5. Disponível em: <http://memoria.bn.br/pdf/103730/per103730_1940_00235.pdf> Acesso em: 6 nov. 2018. A Presidência argentina, em mensagem ao Congresso, informou que a busca da união aduaneira com países vizinhos era ato de uma “nova ordem” nas relações econômicas interamericanas. 12 12 Congresso Nacional, Sessão 28/05/1941, p. 18. Disponível em: <https://www.hcdn.gob.ar/secparl/dgral_info_parlamentaria/dip/archivos/1941_Mensaje_presidencial_Ortiz.pdf> Acesso em: 13 out. 2019.

No marco da ofensiva diplomático-comercial argentina, em janeiro de 1941 realizou-se em Montevidéu a Conferência Regional do Prata, convocada por Bolívia e Paraguai, mas que era, na realidade, iniciativa do governo argentino. A reunião foi convocada para discutir a situação mediterrânea desses dois países e criar uma cooperação econômica e fiscal entre os Estados platinos. Era objetivo da diplomacia argentina, no plano político, construir um bloco que enfrentasse a política panamericana dos Estados Unidos e robustecesse a posição de neutralidade da Argentina. No aspecto econômico, o governo argentino buscava impulsionar a união aduaneira dos países do Rio da Prata (MORGENFELD, 2009MORGENFELD, Leandro. La neutralidad argentina y el sistema interamericano: Panamá, La Habana y Río de Janeiro (1939-1942). Ciclos en la Historia, la Economía y la Sociedad, Buenos Aires, v. XVIII, n. 35-36, p. 145-172, 2009., p. 160). Além da Bolívia e Paraguai, participaram desse encontro Argentina, Brasil e Uruguai, bem como Chile, Estados Unidos e Peru na condição de observadores. O resultado foi a assinatura de nove Convênios e a aprovação de 17 resoluções, criando comissões técnicas encarregadas de estudos setoriais para uma união aduaneira.13 13 Congresso Nacional, Sessão 28/05/1941, p. 17. Disponível em: <https://www.hcdn.gob.ar/secparl/dgral_info_parlamentaria/dip/archivos/1941_Mensaje_presidencial_Ortiz.pdf> Acesso em: 13 out. 2019.

Na busca de novos mercados, a Argentina contribuiu para a criação de um ambiente favorável à cooperação regional. Por duas vezes, em agosto de 1940 e em janeiro de 1941, os Ministros de Relações Exteriores do Paraguai visitaram Buenos Aires, mantendo diálogo e vínculos cordiais com o governo Castillo. Em dezembro de 1940, os chanceleres Roca e Guani encontraram-se na cidade uruguaia de Colônia do Sacramento, em reunião praticamente imposta pelo ministro argentino.14 14 MARTÍNEZ THEDY, nota 910/940, H-1-H, Buenos Aires, 18.11.1940. Archivo Histórico Diplomático - Ministerio de Relaciones Exteriores _ Uruguai, caixa 131 - “Rio de Janeiro (1920-1968) pasta 9 “Asuntos de Defensa Continental - 1940” O objetivo formal era o de discutir a atuação dos dois países no plano de cooperação continental, decidido na Reunião de Havana. No encontro, os dois chanceleres decidiram criar uma Comissão Mista “para o estudo do tratado de comércio em trâmite e exame posterior de uma possível união aduaneira entre os dois países”.15 15 Congresso Nacional, Sessão 28/05/1941, p. 16. Disponível em: <https://www.hcdn.gob.ar/secparl/dgral_info_parlamentaria/dip/archivos/1941_Mensaje_presidencial_Ortiz.pdf> Acesso em: 13 out. 2019. Tratava-se de uma decisão pragmática, frente à resistência de Guani em aceitar a proposta dessa união sob o argumento de que precisaria ser analisada com cuidado por seu país, considerando-se que seria feita com a Argentina e o Brasil, que tinham economias mais industrializadas. No encontro, Roca pediu explicações sobre os contatos entre oficiais uruguaios e norte-americanos em Montevidéu e sobre a autorização para a instalação de uma base militar norte-americana no litoral do Uruguai. Guani respondeu que os contatos tinham o mesmo caráter daqueles mantidos, pouco antes, por esses oficiais norte-americanos com autoridades argentinas e assegurou que comunicaria ao governo argentino caso seu país assinasse acordos com os EUA ou outro país (FIGALLO, 2001FIGALLO, Beatriz J. Desde la crisis internacional a los conflictos regionales: la Argentina y el Uruguay, 1940-1955. Anuario del CEH, Córdoba, n. 1, p. 329-350, 2001., p. 338; AROCENA OLIVERA, 1984AROCENA OLIVERA, Enrique. Apogeo y evolución de la diplomacia uruguaya, 1828-1948. Montevideo: Imprenta del Palacio Legislativo, 1984., p. 209). Esse foi o único encontro entre esses chanceleres, pois ainda em janeiro Roca e Pinedo renunciaram a seus cargos ministeriais, por discordarem da neutralidade argentina na guerra. Pinedo estava convencido de que o “centro” do mundo havia mudado e era favorável à aproximação com os Estados Unidos (RAPOPORT, 1995RAPOPORT, Mario. Argentina y la Segunda Guerra Mundial: mitos y realidades. Estudios Interdisciplinarios de América Latina, Tel Aviv, v. 6, n. 1, p. 5-21, 1995. , p. 17).

Em novembro de 1941, Oswaldo Aranha e o novo chanceler argentino Enrique Ruiz Guiñazú assinaram o Tratado de Livre Comércio Progressivo, tendo como objetivo alcançar a união aduaneira entre Argentina e Brasil (GARCIA, 2005GARCIA, Eugênio Vargas. Cronologia das Relações Internacionais do Brasil. 2. ed. rev. amp. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005., p. 155). Porém, tanto este acordo quanto o projeto de desenvolvimento do Rio da Prata, estabelecido na Conferência de janeiro de 1941, foram inviabilizados pelo contexto geopolítico decorrente do engajamento dos EUA na Segunda Guerra.

O ataque japonês à base norte-americana de Pearl Harbor, em dezembro de 1941, comprometeu o movimento iniciado nesse ano pelo presidente Castillo para melhorar as relações entre a Argentina e os Estados Unidos. Fez parte desse movimento a proibição do acesso de submarinos beligerantes a águas territoriais argentinas, bem como a decisão de Castillo de vender exclusivamente aos EUA, durante três anos, da totalidade da produção nacional de tungstênio. Quanto ao comércio bilateral, sobre o qual desde 1937 e até 1939 os dois países haviam negociado infrutiferamente um acordo (LANÚS, 2001LANÚS, Juan Archibaldo. Aquel apogeo; política internacional argentina 1910-1939. Buenos Aires: Emecé, 2001., p. 476), foi assinado um tratado em 14 de outubro de 1941. Por este, eram reduzidas em 75% as tarifas aduaneiras sobre mercadorias argentinas que entrassem no mercado norte-americano, exceto grãos e carnes. Eram justamente estes os produtos dos quais a Argentina tinha grandes excedentes e para os quais não encontrava mercados compradores. Já as mercadorias norte-americanas, importadas pela Argentina, sofreram redução de 18% nas tarifas de importação. O acordo não era relevante para ampliar o comércio bilateral, mas serviu para reduzir tensões comerciais entre os dois países (SANCHÍS MUÑOZ, 1992SANCHÍS MUÑOZ, José R. La Argentina y la Segunda Guerra Mundial. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1992., p. 121).

O ataque japonês ao território norte-americano levou à convocação da III Reunião de Consulta dos Chanceleres Americanos, realizada no Rio de Janeiro. A diplomacia argentina tentou formar um bloco de chanceleres, que nela atuasse independente dos interesses dos Estados Unidos. Ruiz Guiñazú teve conversas nesse sentido com seus colegas da Bolívia, Chile, Peru e Paraguai, quando os aviões que os transportavam fizeram escala em Buenos Aires a caminho do Rio de Janeiro, mas não conseguiu convencê-los (CONIL PAZ; FERRARI, 1971CONIL PAZ, Alberto; FERRARI, Gustavo. Política exterior argentina, 1930-1962. Buenos Aires: Circulo Militar, 1971., p. 76). No Paraguai a Argentina não tinha a mesma influência de poucos anos antes, pois esta vinha sendo substituída pela crescente presença política, econômica e militar brasileira, demonstrada na assinatura de 10 acordos de cooperação entre os governos paraguaio e brasileiro, em junho de 1941, e na bem sucedida visita de Vargas a Assunção, dois meses depois (DORATIOTO, 2012DORATIOTO, Francisco. Relações Brasil-Paraguai; afastamento, tensões e reaproximação, 1889-1954. Brasília: FUNAG, 2012., p. 449-450). O delegado uruguaio, por sua vez, partiu para a capital brasileira com instruções de assegurar que a defesa do Uruguai na guerra fosse feita preferencialmente pelos Estados Unidos ou, então, pelo Reino Unido, mas não pela Argentina, “devido à atitude geral desse país e [de] suas pretensões com respeito ao Rio da Prata.”16 16 DAWSON para WELLES, telegrama “urgente”, Montevidéu, 10/01/1942. (RODRÍGUEZ AYÇAGUER, 1999, p. 10-11).

O governo argentino, por sua vez, tinha definido que na reunião de chanceleres não aderiria a qualquer declaração de guerra ou de ruptura de relações diplomáticas com o Eixo. Ademais, decidiu que acatar a cooperação interamericana não poderia implicar envolver a Argentina em operações militares em atos alheios à defesa de seu próprio território. Na III Reunião, Argentina e Chile recusaram a proposta norte-americana daquele rompimento, que foi sustituída por recomendação nesse sentido. Também recomendou-se a aplicação de restrições às atividades de empresas e cidadãos do Eixo nos países americanos. A solução de recomendar, em lugar de impor a obrigatoriedade, contribuiu a diplomacia brasileira, que preocupava-se com as consequências imprevisíveis de um isolamento argentino no continente. Essa solução foi possível porque Sumner Welles, chefe da delegação norte-americana, priorizou a unidade continental, em lugar de seguir a posição de Cordel Hull em favor de impor aquele rompimento (MORGENFELD, 2009MORGENFELD, Leandro. La neutralidad argentina y el sistema interamericano: Panamá, La Habana y Río de Janeiro (1939-1942). Ciclos en la Historia, la Economía y la Sociedad, Buenos Aires, v. XVIII, n. 35-36, p. 145-172, 2009., p. 163-167; CASTAGNOLA, 2012CASTAGNOLA, Gustavo. La Argentina en el mundo. In: CATTARUZZA, Alejandro (coord.) América Latina en la Historia Contemporánea: Argentina. Madrid: MAPFRE/Taurus, 2012. t. IV, p. 91-138., p. 108). Em parte, por essa desobediência, Welles foi obrigado a renunciar a seu cargo no Departamento de Estado (RAPOPORT, 1995RAPOPORT, Mario. Argentina y la Segunda Guerra Mundial: mitos y realidades. Estudios Interdisciplinarios de América Latina, Tel Aviv, v. 6, n. 1, p. 5-21, 1995. , p. 13).

No Rio de Janeiro, a Argentina teve a oportunidade de somar-se a um projeto de segurança continental, comum com os demais países, pautado pelo antinazismo e mantendo-se ao lado de seu maior parceiro comercial, a Grã-Bretanha. Se adotasse essa posição cooperativa, Buenos Aires talvez pudesse encontrar modus vivendi com Washington, sem implicar em mera submissão. A postura cooperativa seria desdobramento coerente com aquelas assumidas pela diplomacia argentina nas conferências anteriores, nas quais posicionara-se genericamente a favor da solidariedade hemisférica. No entanto, no início de 1942, as potências do Eixo estavam em posição ofensiva e se Cantillo optasse pelo lado aliado, correria o risco de juntar-se a futuros derrotados. Ademais, esta opção possivelmente desestabilizaria a política interna argentina, ao provocar reação nacionalista contrária ao governo. Porém, para Roosevelt era inaceitável tanto a falta de apoio aos EUA por um país americano após Pearl Harbor, quanto a tolerância do governo Castillo para com os interesses nazistas em território argentino. Reduzia-se, assim, dramaticamente para a Argentina o espaço de manobra diplomática, e colocou-se em posição solitária no continente - pois logo o Chile romperia relações com o Eixo -, inviabilizando o projeto de liderá-lo. Ademais, essa postura argentina criou condições para o fortalecimento da influência do Brasil no Rio da Prata.

Após complicadas negociações, em maio de 1942 os governos dos EUA e do Brasil assinaram uma aliança político-militar, enquanto fracassava o esforço da missão militar-naval argentina, enviada a Washington para obter o fornecimento de armamento norte-americano. Durante a Segunda Guerra, os Estados Unidos tiveram em Natal, no nordeste brasileiro, sua maior base aérea no exterior e construíram estruturas de apoio e pistas de pouso da Amazônia ao Rio Grande do Sul. A IV Frota da US Navy instalou sua base no porto de Recife, de onde atuou para pôr fim à ameaça dos submarinos alemães no Atlântico Sul. Como represália a essa aliança, submarinos alemães afundaram 21 embarcações mercantes brasileiras, algumas delas no próprio litoral do país, o que levou Vargas a declarar guerra à Alemanha e à Itália em agosto de 1942 (McCANN, 2016McCANN, Frank D. The rise and fall of the Brazilian-American military Alliance, 1942-1977. Revista Esboços, Florianópolis, v. 22, n. 34, p. 13-60, 2016., p. 196).

Em janeiro de 1943, o governo chileno rompeu relações diplomáticas com o Eixo, restando no continente americano apenas a Argentina a mantê-las. Esse isolamento e a crescente pressão norte-americana sobre o seu governo, levaram o presidente Castillo a considerar rever a posição de neutralidade. Esta perspectiva, bem como questões internas relacionadas à sucessão presidencial, levaram à deposição de Castillo por um golpe militar em 4 de junho de 1943 (SANTÍS MUÑOZ, 1992, p. 172-173).

O ISOLAMENTO ARGENTINO

O golpe contra Castillo teve motivações e orientações heterogêneas, inclusive contraditórias, e nele predominou o até então secreto Grupo de Oficiais Unidos (GOU). Tratava-se de uma espécie de loja militar maçônica, impregnada pela ideologia nacionalista a favor do neutralismo, e que implantou na Argentina o regime da “família dos fascismos”, motivado “por um nacionalismo visceral e ambições de potência: seus inimigos jurados eram o liberalismo, o capitalismo, o imperialismo, o protestantismo” (ZANATTA, 2005, p. 26). De fato, um objetivo dos golpistas era o de garantir a ascendência militar argentina na região, que viam como ameaçada pelo Brasil e preocupavam-se com a aliança deste com os Estados Unidos, a qual poderia ser “o ponto de partida para sua [brasileira] hegemonia sul-americana” (HALPERÍN DONGHI, 2000HALPERÍN DONGHI, Tulio. La democracia de masas. 3. ed. Buenos Aires: Paidós, 2000., p. 35).

A chefia do Estado argentino foi entregue ao general Pedro Pablo Ramírez, apoiado pelo GOU, após efêmera tentativa de ocupá-la por parte do general Arturo Rawson. Os golpistas defendiam a industrialização, para que o país produzisse os seus próprios meios de defesa. Por essa perspectiva, era interesse nacional argentino vencer a competição geopolítica com o Brasil, o que seria obtido, segundo os axiomas tradicionais da política externa da Argentina, com a ação externa autônoma e não unindo-se ao esforço de guerra dos Aliados (TULCHIN, 1980TULCHIN, Joseph S. Una perspectiva histórica de la política argentina frente al Brasil. Estudios Internacionales, Santiago, v. 13, n. 52, p. 460-480, 1980., p. 470).

Um dos mais influentes ideólogos do GOU era o coronel Juan Domingo Perón, que participou do golpe de 1930, inicialmente ao lado da facção nacionalista para logo passar-se para a do general Justo. Em 1930, Perón foi, por um mês, secretário do Ministro da Guerra e, em seguida, ocupou a função de professor de História Militar da Escuela de Guerra, acumulando-a com a de Ajudante de Campo do ministro da Guerra (1932-1936). No exterior, ele exerceu a função de Adido Militar na Embaixada argentina no Chile (1936-1938) e, em fevereiro de 1939, foi enviado para a Itália, onde aperfeiçoou-se em práticas de guerra em montanha e observou o movimento fascista mobilizar o povo italiano em torno de Mussolini. Perón ficou impactado com sua experiência italiana e anteviu no corporativismo “o caminho da genuína democracia social (...) para controlar os desafios da luta de classes”. Ele permaneceu na Europa até o início de 1941, presenciando as vitórias militares iniciais do Eixo na Segunda Guerra (TORRES, 2014TORRES, Juan Carlos. A propósito del factor Perón. Estudios Sociales, Santa Fe, v. 46, n. 1, p. 299-310, 2014., p. 302-303).

A diplomacia norte-americana tentou coordenar um reconhecimento simultâneo pelos países americanos do governo militar argentino, tendo como pré-requisito que Ramírez definisse uma política externa pró-aliada. A diplomacia brasileira opôs-se à coordenação, sob o argumento de que essa exigência ia contra os precedentes diplomáticos. Itamaraty também argumentava que, enquanto se aguardava tal definição, os países do Eixo poderiam fazer o reconhecimento e, assim, aproximarem-se de Ramírez. Para o embaixador uruguaio no Rio de Janeiro, a posição brasileira visava evitar uma aproximação entre os EUA e a Argentina, o que a tornaria rival do Brasil na obtenção de material militar norte-americano e, ainda, nos aspectos comercial e financeiro.17 17 César G. GUTIERREZ para Ministro Relações Exteriores José SERRATO, ofício 253/943, “muy confidencial”, Rio de Janeiro, 28/06/1943. Archivo Histórico Diplomático - Ministerio de Relaciones Exteriores - Uruguai, caixa 61 “Rio de Janeiro (1920-1968)”. Na opinião do chanceler uruguaio Serrato, do novo governo eleito do presidente Juan José de Amézaga e que tinha como vice-presidente Alberto Guani, a reação brasileira “atendia aos propósitos de preeminência continental que o Brasil está avidamente decidido a alcançar”.18 18 SERRATO para GUTIERREZ, ofício reservado 384/1943, Montevidéu, 10.07.1943. Idem.

O governo Ramírez foi reconhecido em 9 de julho por Brasil, Paraguai, Uruguai, Bolívia e Chile, no que foram seguidos nos dias seguintes por Alemanha, Grã-Bretanha e Estados Unidos. Havia a expectativa norte-americana e uruguaia de que Ramírez romperia relações com o Eixo.19 19 GUANI para embaixador uruguaio no Rio de Janeiro Cesar G GUTIERRÉZ, nota “muy confidencial”, Montevideo, 24/08/1943. Archivo Histórico Diplomático - Uruguai, caixa 61 (Rio de Janeiro 1920-1968), pasta “Memoria - año 1943”. No entanto, o embaixador brasileiro em Buenos Aires, Rodrigues Alves, logo soube que isso não ocorreria e comunicou o fato em reunião que realizou com os embaixadores norte-americano, Norman Armour, e uruguaio, Martínez Thedy. Esclareceu Rodrigues Alves que o subsecretário de Relações Exteriores argentino, Roberto Gache, lhe declarou não poder o novo governo alterar a política externa de forma brusca e radical, sem preparar a opinião pública, e que tal mudança não poderia ser vista como resultado de influências externas. Gache afirmou que o novo chanceler, almirante Segundo R. Storni, estava convencido do triunfo dos países aliados na guerra e que lhes era simpático.20 20 MARTÍNEZ THEDY PARA chanceler SERRATO, telegrama 2095/943, “absolutamente reservado”, Buenos Aires, 8/6/1943. Id., caixa 70, pasta 1943-43, subpasta 29 “Política Exterior argentina - actitud frente a las Potencias del Eje (1943-1944)”.

De fato, não houve tal rompimento e, como forma de manifestar seu descontentamento, o Departamento de Estado chamou para consultas em Washington o embaixador Armour. Este, antes de partir, solicitou a Ramírez uma declaração sobre o rompimento de relações com o Eixo e, como resposta, recebeu uma carta confidencial de Storni a Cordell Hull, na qual negava ser o governo argentino totalitário. Storni argumentou que seu país mantinha comércio com os Aliados, os quais contavam com a simpatia do povo argentino e que o Eixo nada tinha a esperar da administração de Ramírez. Também solicitou que os EUA fornecessem armas e maquinaria, para “restituir à Argentina a posição de equilíbrio que lhe correspondia em relação a outros países sul-americanos”, em uma referência à modernização militar brasileira (SANCHÍS MUÑOZ, 1992SANCHÍS MUÑOZ, José R. La Argentina y la Segunda Guerra Mundial. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1992., p. 229-234).

O ministério de Ramírez estava dividido entre os ministros pró-aliados e os nacionalistas simpáticos ao Eixo. Se fossem obtidas armas dos EUA, a facção pró-aliados sairia fortalecida na luta interna contra os simpatizantes do nazifascismo (ROCK, 1995ROCK, David. Argentina, 1516-1987: desde la colonización española hasta Raúl Alfonsín. Buenos Aires: Alianza Singular, 1995., p. 316), mas isso não foi percebido em Washington ou, então, já não interessava obter a adesão argentina ao panamericanismo anti-Eixo. A situação da guerra mudara, pois com a vitória aliada no norte da África e o controle do Atlântico pela US Navy, o governo Roosevelt avaliava que diminuíra o perigo militar alemão às Américas, cujas necessidades de defesa deixaram de ser consideradas urgentes. Como consequência, a América Latina recebeu apenas 1,1% do total da ajuda militar norte-americana do programa Leand-Lease (IRIYE, 1993IRIYE, Akira. The Cambridge History of American Foreign Relations. New York, Cambridge University Press, 1993. v. III, p. 196).

O fato é que Hull tornou pública a carta de Storni, questionou os argumentos nela apresentados e não atendeu o pedido de armas e máquinas. O chanceler argentino ficou com sua posição comprometida perante os nacionalistas e o Eixo, ao expor as opiniões negativas sobre este, bem como com o Brasil. Como resultado, Storni demitiu-se e foi substituído pelo coronel Alberto Gilbert, do GOU. Em outubro de 1943 o general Edelmiro Julián Farrell foi nomeado vice-presidente da República e dois dias depois demitiram-se os restantes ministros simpáticos aos aliados, que eram Jorge Santamarina, da Fazenda, Almirante Galíndez, de Obras Públicas, e General Anaya, da Instrução Pública. Os nacionalistas extremados foram, assim, vitoriosos no assalto ao poder na Argentina (CONIL PAZ; FERRARI, 1971CONIL PAZ, Alberto; FERRARI, Gustavo. Política exterior argentina, 1930-1962. Buenos Aires: Circulo Militar, 1971., p. 123-125).

No esforço de obter armamento alemão para a Argentina, o coronel nacionalista González, Secretário da Presidência da República, colocou Ramírez em contato direto com o espião nazista Hans Harnisch. O presidente e o espião encontraram-se várias vezes a partir de julho e, no dia 15 desse mês, Harnisch enviou a Berlim o relato do primeiro encontro. Neste, Ramírez disse que a Argentina necessitava de armamento, por haver a possibilidade de uma guerra entre países da América do Sul e o Brasil. O ditador comentou que o litoral do seu país se encontrava indefeso e que a situação argentina era cada vez mais perigosa, devido à ajuda dos Estados Unidos ao Brasil. Ramírez perguntou se o Japão e a Alemanha poderiam manter submarinos nos litorais argentino e chileno para protegê-los, o que seria retribuído com a repressão à espionagem aliada na Argentina (GOÑI, 1998GOÑI, Uki. Perón y los alemanes; la verdad sobre el espionaje nazi y los fugitivos del Reich. 2. ed Buenos Aires: Sudamericana, 1998., p. 98, 104).

Os canais diplomáticos normais foram contornados por Ramírez, pois esses e outros contatos ocorreram entre membros do GOU no governo e representantes do Serviço de Segurança do Partido Nacional-Socialista - o SD -, de Henrich Himmler. A partir de 1943, o SD na Argentina foi chefiado por Siegfried Becker, que relatou sobre o encontro entre Harnisch e o chefe de Estado argentino:

Ramírez expressou que, com o passar do tempo, a única maneira da Argentina sobreviver e contrapor-se à pressão norte-americana, seria a formação de um bloco de nações no sul do continente americano e que a aproximação como Paraguai era o primeiro passo nesse sentido, sendo que uma política similar estava sendo aplicada em relação a Bolívia, Uruguai, Chile e Peru. (...).21 21 Informe Boss 21 de HARNISCH a Berlim sobre a reunião com Ramírez, 15 de julho de 1943. (GOÑI, 1998, p. 104-105).

O contato entre Harnisch e a cúpula do governo argentino foi propiciado por Osmar Alberto Hellmuth, agente secreto da Marinha argentina e vinculado à espionagem nazista. O coronel Juan Domingo Perón, pessoalmente, encarregou Hellmuth de viajar secretamente a Berlim para dar garantias da lealdade da Argentina a Hitler, em troca de armas que permitissem ao país resistir às pressões dos Estados Unidos. O governo Ramírez não confiava em Luis Luti, seu encarregado de negócios em Berlim antipático ao nazismo e que nada soube da missão de Hellmuth. A hipótese de derrota nazista não foi considerada pelos militares do GOU que, “com ingenuidade quase infantil, esperavam receber, via submarinos alemães, material bélico, técnico e humano do Führer” (GOÑI, 1998GOÑI, Uki. Perón y los alemanes; la verdad sobre el espionaje nazi y los fugitivos del Reich. 2. ed Buenos Aires: Sudamericana, 1998., p. 95-115).

No início de outubro de 1943, Hellmuth partiu no navio espanhol Cabo de Hornos com destino à Espanha, supostamente para assumir o cargo de vice-cônsul argentino em Barcelona, mas, na realidade, seu destino era Berlim. A espionagem britânica acompanhava as atividades nazistas em Buenos Aires e, quando o Cabo de Hornos fez escala na ilha de Trinidad Tobago, prendeu Hellmuth sob a acusação de ser agente inimigo. Com ele foram apreendidos documentos reveladores das vinculações do governo militar argentino com a Alemanha nazista. Hellmuth foi, então, enviado à Inglaterra para interrogatório, onde confessou as articulações entre as autoridades argentinas e os nazistas. O Reino Unido impôs à ditadura argentina um acordo, o de não publicar o interrogatório de Hellmuth, mas mantendo-o preso, bem como de não apoiar as sanções que os EUA preparavam contra a Argentina. Em troca, o governo Ramírez romperia relações diplomáticas com o Eixo, desmantelaria a rede de espionagem nazista em seu território, prendendo seus espiões, e continuaria a fornecer alimentos para os britânicos, apesar dos riscos de ataque de submarinos alemães após tal rompimento (GOÑI, 1998GOÑI, Uki. Perón y los alemanes; la verdad sobre el espionaje nazi y los fugitivos del Reich. 2. ed Buenos Aires: Sudamericana, 1998., p. 12-115; SANCHÍS MUÑOZ, 1992SANCHÍS MUÑOZ, José R. La Argentina y la Segunda Guerra Mundial. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1992., p. 253-255).

Enquanto isso, no plano regional, a Argentina agia para garantir sua liderança na América do Sul. No final de julho de 1943, o chanceler chileno Fernández y Fernandez assinou com o seu colega Storni um documento para a realização de estudos visando propor as bases de uma união aduaneira entre seus países. Em dezembro, o ditador paraguaio Morínigo visitou Buenos Aires, sendo recebido com calculada pompa oficial, e assinou tratado comercial e de união aduaneira com a Argentina. O Uruguai, porém, resistiu à ofensiva de Ramírez e opôs-se a acordos econômicos regionais, por serem contrários a “um panamericanismo sincero e prático”. O governo uruguaio opunha-se à “pretensão de excluir os Estados Unidos da política sul-americana” e a qualquer outra que ameaçasse ou debilitasse a unidade continental.22 22 SERRATO para GUTIÉRREZ, embaixador uruguaio no Brasil, nota 807-1943, reservada, Montevidéu, 13/12/1943. Archivo Histórico Diplomático - Ministerio de Relaciones Exteriores - Uruguai, caixa 61 “Rio de Janeiro (1920-1968)”.

Essa busca de liderança regional era tradicional na política externa argentina, mas com Ramírez surgiu nova e agressiva versão, promovendo a “ação subversiva e a entronização nos países vizinhos de governos simpatizantes da Argentina” (CONIL PAZ; FERRARI, 1971CONIL PAZ, Alberto; FERRARI, Gustavo. Política exterior argentina, 1930-1962. Buenos Aires: Circulo Militar, 1971., p. 126). Em 20 de dezembro de 1943, um golpe de militares nacionalistas bolivianos, com a participação do político Victor Paz Estenssoro, derrubou o presidente Enrique Peñaranda que declarara guerra aos países do Eixo. Pouco antes, em julho, Estenssoro estivera em Buenos Aires e mantivera contato com nacionalistas argentinos. O reconhecimento unilateral por Ramírez do novo governo boliviano do general Gualberto Villarroel, em 3 de janeiro de 1944, foi interpretado pelos EUA como “um aberto desafio à unidade hemisférica” (ZANATTA, 2006ZANATTA, Loris. The rise and fall of the third position: Bolivia, Perón and the Cold War, 1943-1954. Desarrollo económico, Buenos Aires, v. 1, p. 1-27, 2006., p. 3).

O Comitê de Defesa Política do Continente, criado na III Reunião de Chanceleres no Rio de Janeiro, reuniu-se para tratar do golpe boliviano, com a presença de representantes dos países americanos, exceto da Argentina e da própria Bolívia. Os 19 representantes aprovaram a proposta do uruguaio Alberto Guani, a de não se reconhecer governos surgidos por atos de força sem prévia consulta entre as repúblicas americanas e, ainda, de se exigir desses novos regimes a adesão aos compromissos interamericanos. O governo argentino classificou essa recomendação como abuso de autoridade e de intervenção nos assuntos internos de um país. Em 19 de janeiro de 1944, o Comitê de Defesa Política do Continente divulgou relatório atribuindo o golpe de Estado boliviano a militares locais pró-Eixo, apoiados por colegas argentinos (SANCHÍS MUÑOZ, 1992SANCHÍS MUÑOZ, José R. La Argentina y la Segunda Guerra Mundial. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1992., p. 245-246).

Roosevelt acreditava na tendência de repetição dessa interferência argentina em países vizinhos e que esse risco deveria ser “cortado pela raiz”. Os Estados Unidos planejaram fortalecer militarmente o Brasil, embora o Departamento de Guerra considerasse improvável naquele momento um ataque armado da Argentina a país vizinho. No entanto, esse Departamento via positivamente o fortalecimento militar brasileiro, pois produziria impacto psicológico favorável à posição norte-americana na região (McCANN, 2016McCANN, Frank D. The rise and fall of the Brazilian-American military Alliance, 1942-1977. Revista Esboços, Florianópolis, v. 22, n. 34, p. 13-60, 2016., p. 17).

Foram diversas as retaliações dos EUA contra o governo Ramírez. O Departamento de Tesouro congelou fundos argentinos em bancos norte-americanos; navios da US Navy fundearam no porto de Montevidéu, em demonstração de força, enquanto o Departamento de Estado informou ao governo argentino que divulgaria Memorandum, acusando-o de intervir na Bolívia e em outros países. Acuado e já tendo chegado a um acordo com o Reino Unido para a ruptura com a Alemanha, Ramírez comunicou a Washington que seu país romperia relações diplomáticas com Berlim. Solicitou que não fosse divulgado o Memorandum, pois pareceria que o rompimento resultava de pressão norte-americana. O GOU, reunido em assembleia, foi comunicado dessa decisão de Ramírez como fato consumado (SANCHÍS MUÑOZ, 1992SANCHÍS MUÑOZ, José R. La Argentina y la Segunda Guerra Mundial. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1992., p. 252-254).

Ramírez rompeu relações com a Alemanha e o Japão em 26 de janeiro, sob o pretexto de que a Argentina fora vítima da espionagem alemã no caso Hellmuth. Um mês depois, o GOU deu um golpe de Estado e colocou na presidência o general Edelmiro Farrell, que desde 1943 era ministro da Guerra e vice-presidente da República. Os “coronéis do GOU”, dentre eles Perón, haviam acumulado mais influência do que o próprio Ramírez e derrubaram-no calculando que Farrell seria um instrumento mais dócil (HALPERÍN DONGHI, 2000HALPERÍN DONGHI, Tulio. La democracia de masas. 3. ed. Buenos Aires: Paidós, 2000., p. 38).

Aplicava-se ao governo Farrell a chamada Doutrina Guani. Os Estados Unidos, porém, não conseguiram articular uma consulta entre todos os países americanos quanto ao reconhecimento desse governo, que o obteve no início de março de 1944 por parte de Chile, Paraguai e Bolívia. Já a Grã-Bretanha e os EUA retiraram seus embaixadores de Buenos Aires, assim como outros países americanos (ESCUDÉ, 1996ESCUDÉ, Carlos. Gran Bretaña, Estados Unidos y la Declinación Argentina: 1942-1949. 4. ed. Buenos Aires: Editorial Belgrano, 1996., p. 130). O governo de Churchill somente retirou seu embaixador por pressão norte-americana, pois o interesse primordial do Reino Unido era o de garantir o fornecimento de carne argentina para a alimentação da sua população e tropas. Ademais, não passava despercebido a Londres que o esforço de Washington em impor-se à ditadura argentina facilitaria, no pós-guerra, substituir a presença predominante britânica no Rio da Prata pela norte-americana (MORGENFELD, 2011MORGENFELD, Leandro. Vecinos en conflito; Argentina y Estados Unidos en las Conferências Pan-Americanas (1880-1955). Buenos Aires: Peña Lillo/Ediciones Continente, 2011., p. 325).

A posição do Uruguai era delicada, por ser fronteiriço com a Argentina e com ela manter laços comerciais, tornando-o alvo fácil para eventuais represálias por não reconhecer o governo Farrell. No entanto, era mais forte a aliança com os Estados Unidos e o Uruguai apoiou a posição norte-americana de não reconhecimento, mas com a diplomacia uruguaia posicionando-se com “sensato equilíbrio”, de modo a não colidir com o regime argentino (CERRANO; LÓPEZ D’ALESSANDRO, 2017CERRANO, Carolina; LÓPEZ D’ALESSANDRO, Fernando. Dictadura militar argentina 1943-46. Temor, rechazo y desconfianza en el Uruguay. Anuario de Estudios Americanos, Sevilla, v. 74, n.1, p. 323-352, 2017., p. 326-330).

À medida que transcorria a guerra e os aliados aproximavam-se da vitória, o governo argentino ficava cada vez mais próximo do Eixo. Segundo Carlos Escudé, a explicação desse comportamento encontra-se em dois níveis de causalidade, sendo o mais imediato o fato de os governantes argentinos terem optado pelo confronto com os Estados Unidos, enquanto o segundo nível é o de não terem sido feitas reflexões sobre alternativas àquela que, afinal, mostrou-se autodestrutiva. A hipótese explicativa para tanto, apresentada por Escudé, é a dos argentinos terem sido permanentemente doutrinados, desde o início do século XX, com o dogma da superioridade do seu país. Assim, durante a Segunda Guerra Mundial, a população acreditava ter a Argentina enorme importância, que não poderia ser marginalizada com facilidade no cenário internacional e nem precisava temer as sanções das grandes potências. Havia, em todos os níveis da sociedade argentina, um superdimensionamento do poder nacional e a cultura oficial, entranhada na população, estava mais próxima do fascismo europeu do que da democracia liberal (ESCUDÉ, 1995ESCUDÉ, Carlos. Un enigma: la “irracionalidad” argentina frente a la Segunda Guerra Mundial. Estudios Interdisciplinarios de América Latina, Tel Aviv, v. 6, n. 2, p. 5-33, 1995. , p. 25-27).

O homem forte do governo Farrell era o coronel Juan Domingo Perón. Ele ocupou o cargo de secretário do Departamento do Trabalho, desde dezembro de 1943, e reorganizou-o como Secretaria de Trabalho e Bem-Estar Social, na qual implementou um conjunto de leis trabalhistas que lhe deram prestígio junto aos trabalhadores. O apoio destes e sua influência no GOU levaram-no a ser nomeado ministro da Guerra e, cumulativamente, vice-presidente da República. Perón tornou-se mais influente no governo do que o próprio Farrell (ROCK, 1995ROCK, David. Argentina, 1516-1987: desde la colonización española hasta Raúl Alfonsín. Buenos Aires: Alianza Singular, 1995., p. 321-322).

As opiniões geopolíticas de Perón foram expostas em conferência feita em junho de 1944PERÓN, Juan Domingo. Significado de la defensa nacional desde el punto de vista militar”. Conferencia no Colégio Nacional de la Universidad de la Plata, 10/6/1944. Disponível em: http://www.jdperon.gov.ar/material/discursos/discurso_10_jun_1944.pdf Acesso em: 26 nov. 2018.
http://www.jdperon.gov.ar/material/discu...
, na Universidad de La Plata. Nela afirmou ser a Argentina uma “nação satisfeita”, que não necessitava fazer a guerra pois possuía tudo de que necessitava, mas que não podia estar segura de que a paz dos argentinos não seria ameaçada por outro país. Por esse motivo, argumentou, a Argentina necessitava de Forças Armadas poderosas, abastecidas em armamentos produzidos por fábricas nacionais então inexistentes e que, por isso, era necessária a ação estatal para criá-las. Afirmou Perón que, nos litígios internacionais, a ação diplomática seria tão mais segura, quanto maior fosse a força a respaldá-la. A diplomacia argentina deveria estreitar relações com os demais países, particularmente com os do continente “e, entre eles, nossos vizinhos”, contando com o respaldo das forças armadas que “devem ser aumentadas”.23 23 Juan Domingo PERÓN, Significado de la defensa nacional desde el punto de vista militar”, conferencia no Colégio Nacional de la Universidad de la Plata, 10/6/1944, p. 3-6, 9-10. Disponível em: <http://www.jdperon.gov.ar/material/discursos/discurso_10_jun_1944.pdf> Acesso em 26/11/2018. Eram ideias alarmantes para os Estados vizinhos, especialmente para os que se recusavam a reconhecer a ditadura argentina.

Roosevelt reforçou a política de isolar o regime argentino e, além de retirar seu embaixador de Buenos Aires, congelou o ouro argentino no valor de US$ 400 milhões - uns US$ 5,9 bilhões em valor atualizado - 24 24 A atualização dos US$ 400 milhões foi calculada a partir de uma inflação em dólar de 1.382,17% entre 1/01/1944 e 1/01/2020. Disponível em: <https://fxtop.com/pt/calculadora-de-inflacao.php> Acesso em: 15 jan. 2020 depositado nos EUA, bem como proibiu exportações de máquinas e peças norte-americanas para a Argentina (CISNEROS; ESCUDÉ, 1999CISNEROS, Andrés; ESCUDÉ, Carlos. Historia general de las relaciones exteriores de la República Argentina. Buenos Aires: CARI/Nuevohacer, 1999. Tomos X, XIII., t. XIII, p. 44-45). Esta era, na opinião de Cordell Hull, esconderijo de nazistas alemães fugitivos da derrota militar que se avizinhava e acusou o governo Farrell de planejar uma guerra imperialista contra os países vizinhos. No final de outubro de 1944, o ditador argentino saiu da defensiva e fez uma inteligente manobra diplomática, ao solicitar à União Panamericana a convocação de reunião para discutir as relações exteriores argentinas, o que não ocorreu devido a veto norte-americano. (ESCUDÉ, 1996ESCUDÉ, Carlos. Gran Bretaña, Estados Unidos y la Declinación Argentina: 1942-1949. 4. ed. Buenos Aires: Editorial Belgrano, 1996., p. 158) Houve redução de tensão devido à substituição de Hull, que se demitiu por motivo de saúde em dezembro desse ano, por Edward Stettinius, enquanto Nelson Rockefeller assumiu o novo cargo de secretário assistente para Assuntos Latino-Americanos. Ambos tinham posturas mais conciliadoras e reduziram as proibições de comércio com a Argentina (CISNEROS; ESCUDÉ, 1999CISNEROS, Andrés; ESCUDÉ, Carlos. Historia general de las relaciones exteriores de la República Argentina. Buenos Aires: CARI/Nuevohacer, 1999. Tomos X, XIII., t. XIII, p. 45; ROCK, 1995ROCK, David. Argentina, 1516-1987: desde la colonización española hasta Raúl Alfonsín. Buenos Aires: Alianza Singular, 1995., p. 327-328).

No final de 1944, os Estados Unidos propuseram a realização da Conferência Interamericana sobre Problemas da Guerra e da Paz, para tratar do sistema interamericano no contexto internacional do pós-guerra. Coube ao México organizá-la em Chapultepec, entre 21 de fevereiro e 8 de março de 1945, e a Argentina foi impedida de participar, basicamente pela ação neste sentido da diplomacia norte-americana. Na reunião, discutiram-se as condições para o reconhecimento do governo Farrell e sua reincorporação ao sistema interamericano. O plano norte-americano era o de que o regime argentino atendesse a quatro exigências: declarasse guerra ao Eixo; implementasse medidas práticas que contribuíssem para a defesa continental; reduzisse o número de tropas nas suas fronteiras e aceitasse todas as resoluções resultantes dessa conferência. A ditadura argentina recusou-se a atendê-las e negociou-se, então, uma alternativa entre os países participantes da Conferência, chegando-se à fórmula de compromisso da Resolução LIX. Esta foi elaborada depois de negociações secretas em Buenos Aires, entre uma missão norte-americana e Perón, e por essa Resolução a Argentina foi reincorporada ao sistema interamericano e estabeleceu-se que o país participaria na Conferência de São Francisco (MORGENFELD, 2011MORGENFELD, Leandro. Vecinos en conflito; Argentina y Estados Unidos en las Conferências Pan-Americanas (1880-1955). Buenos Aires: Peña Lillo/Ediciones Continente, 2011., p. 337).

Perón preparou a opinião dos militares nacionalistas para a necessidade de declarar-se guerra ao Eixo, o que foi feito em 27 de março de 1945 (CISNEROS; ESCUDÉ, 1999CISNEROS, Andrés; ESCUDÉ, Carlos. Historia general de las relaciones exteriores de la República Argentina. Buenos Aires: CARI/Nuevohacer, 1999. Tomos X, XIII., t. XIII, p. 47). A declaração foi redigida de forma a não repudiar a Alemanha, em uma concessão do governo “aos elementos germanófilos e nazis que [a ela] se opunham”.25 25 AZAROLA GIL para SERRATO, nota 1945-217, Buenos Aires, 26/03/1945. Archivo Histórico Diplomático - Ministerio de Relaciones Exteriores - Uruguai, caixa 70, pasta n. 33 “Año 1945” - “Política Argentina - Informaciones” Para tanto, fez-se uso de uma sutileza de redação, declarando-se guerra ao Império japonês e à Alemanha, “como aliada do Japão”. O Departamento de Estado considerou que o regime argentino havia aderido aos princípios da Ata de Chapultepec e o governo Farrell pôde assiná-la, sendo reconhecido pelos Estados Unidos e demais países do continente (CISNEROS, ESCUDÉ, 1999CISNEROS, Andrés; ESCUDÉ, Carlos. Historia general de las relaciones exteriores de la República Argentina. Buenos Aires: CARI/Nuevohacer, 1999. Tomos X, XIII., t. XIII, p. 47, 50).

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No final da década de 1930, após meio século de ganhos com o modelo agroexportador, a Argentina via a si própria como uma nação poderosa, destinada a liderar a América Sul como já o fazia no Rio da Prata. A Segunda Guerra Mundial, porém, abalou sua autonomia financeira e atividades econômicas, devido à redução das exportações para a Europa e ao congelamento, no Reino Unido, das libras esterlinas obtidas em superávits comerciais com esse país. A expectativa argentina de liderança foi, ainda, comprometida pelo panamericanismo dos Estados Unidos, que visava promover a união e a defesa das Repúblicas americanas contra ameaças extracontinentais. Estimulados por uma percepção equivocada do poder nacional e pelo nacionalismo de extrema direita favorável à Alemanha hitlerista, os governantes argentinos declararam o país neutro na guerra e recusaram-se a compor a frente comum continental antinazista, liderada pelos EUA. Desde 1940 tais governantes buscaram construir uma união aduaneira no Rio da Prata, da qual também deveriam fazer parte o Brasil e o Chile, em um bloco que inviabilizaria a liderança norte-americana na região. O plano não somente fracassou, mas também isolou a Argentina nas Américas, além de permitir a ascensão da influência brasileira no Rio da Prata.

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NOTAS

O que marcou o período entre as duas guerras mundiais?

1-O período entre as duas guerras mundiais (1919-1939) foi marcado por: a) Crise do capitalismo, do liberalismo e da democracia e polarização ideológica entre fascismo e comunismo.

Como pode ser considerado o período entre guerras entre 1919 e 1938?

Resposta. Resposta: Neste período ocorreram: O Tratado de Versalhes (1919), surgimento do Fascismo na Itália, Tratado de Latrão (1929), Quebra da Bolsa de Valores (1929), Adolf Hitler torna-se chanceler da Alemanha (1933), New Deal (1933), Guerra Civil Espanhola (1936) e Anexação da Áustria pela Alemanha (1938).