RECONHECER para libertar os caminhos do cosmopolitismo multicultural pdf

Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural

Boaventura de Sousa Santos

Civilizaçáo Brasileira, 2003 - 614페이지

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Centra-se nas lutas pelo reconhecimento do direito à diferença dos movimentos dos povos indígenas, dos movimentos feministas, dos movimentos homossexuais, dos movimentos dos direitos humanos multiculturais.

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SANTOS,_Boaventura_de_S._(org.)_Reconhecer_para_libertar_os_caminhos_do_cosmopolitismo_cultural.Vários autores.

Boaventura de Sousa Santos

Reconhecer para libertar Os caminhos do cosmopolitismo multicultural

CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA Rio de Janeiro

2003

COPYRIGHT © 2003 by Boaventura de Sousa Santos

Sumário

CAll4

FBA. Ferrand, Bicker & Associados

CIP-BRASIL.CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATONACIONALDOSEDITORESDELIVROS,RJ

R248

Rec~nhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo mulucultural I Boaventura de Sousa Santos, organizador. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. . - (Reinventar a Emancipação Social: Para Novos Manifestos; v.3)

13

Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade 25 Boaventura de Sousa Santos e Jo~o Arriscado Nunes

ISBN 85-200-0617-5 1. Globalização - Aspectos sociais. 2. Multiculturalismo. 3. Movimentos sociais. 4. Mudança social. 1. Santos, Boaventura de Sousa, 1940- . II. Série.

02-2119

PREFÁCIO

CDD - 303.482 CDU - 316.42

1. A POSSIBILIDADE OE MULTICULTURALISMOS EMANCIPATÓRIOS 1.1. MULTICULTURALISMO: UM CONCEITO CONTESTADO

1.2- MULTICULTURALISMO E EMANCIPAÇÃO 2. OS ESTUDOS OE CASO

26

26

34

44

3. CINCO TESES SOBRE MULTICULTURALISMOS EMANCIPATÓRIOS E ESCALAS OE LUTA CONTRA A DOMINAÇÃO

59

DIREITOS COLETIVOS E SOCIEDADES MULTICULTURAIS 69

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmiss~o de parte~ deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autonzaçao por escrito. Direitos desta edição adquiridos pela EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA um selo da DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSAS.A. Rua Argentina 171 - Rio de Janeiro, RJ - 20921-380 - Tel.: 2585-2000 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052, Rio de Janeiro, RJ - 20922-970 Impresso no Brasil 2003

CAPITULO 1

Multiculturalismo e direitos coletivos 71 Carlos Frederico Marés de Souza Filho

INTRODUÇÃO 73 1. FORMAÇÃO DOS ESTADOS NA AMÉRICA LATINA 2. A FALACIOSA POLfTICA INTEGRACIONISTA 3. OS POVOS INVISiVEIS

74

77

80

3.1. O POVO XETÁ: CRONOLOGIA OE UM GENOciOIO

80

3.2. O LONGO CAMINHO GUARANI NA BUSCA DA TERRA SEM MALES 3.3. O RENASCER DOS PATAXÓ HÃHÃHÃE

84

5

82

BOAVENTURA DE

SOUSA

SANTOS

4. OS EQUÍVOCOS DA POLITICA DE CONTATO NA AMAZÔNIA 87

4.1. CAPITULAÇÃO E VOLTA DOS INDIOS GIGANTES 88 4.2. ALDEIAS VIRANDO CIDADES: UMA NOVA AMEAÇA AOS DIREITOS INDÍGENAS 90

5. OS NOVOS DIREITOS NA AMÉRICA LATINA 92 6. A APLICAÇÃO DO DIREITO E SUAS DIFICULDADES

RECONHECER

PARA

LIBERTAR

3. A OPOSIÇÃO DOS U'WA À EXPLORAÇÃO DO PETRÓLEO: O CENÁRIO NACIONAL 163

3.1. O CONTRATO DE EXPLORAÇÃO E OS PRIMEIROS CONTATOS DA OCCIDENTAL PETROLEUM COM OS U"WA

163

3.2. O CONFLITO RELATIVO AO PROCESSO DE CONSULTA PRÉVIA NAS INSTÂNCIAS ADMINIS-

96

7. A TERRITORIALIDADE COMPARTILHADA 101

8. OS DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS, CULTURAIS E AMBIENTAIS 105

CAPITULO 2

Olhos mágicos do Sul (do Sul): lutas contra-hegemônicas dos povos indígenas no Brasil 111 Lino Joao de Oliveira Neves

TRATIVAS

165

3.3. O CONFLITO RELATIVO AO PROCESSO DE CONSULTA PRÉVIA NAS INSTÂNCIAS LEGAIS: A PRIMEIRA RODADA (AGOSTO DE 1995 A MARÇO DE 1997)

167

4. O CONFLITO U'WA-OXY CHEGA AO CENÁRIO INTERNACIONAL 171

4.1. AS PRIMEIRAS VIAGENS DOS U'WAAOS ESTADOS UNIDOS 171 4.2. O GOVERNO COLOMBIANO BUSCA A MEDIAÇÃO DA OEA: O PROJETO AD HOC OEA/UNIVERSlDADE DE HARVARD

173

5. A NOVA DINÂMICA DOS CENÁRIOS NACIONAIS E INTERNACIONAIS 175

INTRODUÇÃO 113 1. MOVIMENTO INDÍGENA 115 1.1. ANOS 70: AS "ASSEMBLÉIAS INDfGENAS• 115

1.2. ANOS 80: DA ·uNIÃo· A .ATOMIZAÇÃO· 117 1.3. ANOS 90: CONSOLIDAÇÃO DE PROJETOS ÉTNICOS 121 2. REALIDADES INDÍGENAS EMERGENTES 126

5.1. A ESTRATÉGIA DO GOVERNO COLOMBIANO 176 5.1.1. A AMPLIAÇÃO DO RESGUARDO U'WA 176 5.1.2. A NOVA LICENÇA AMBIENTAL PARA A OCCIDENTAL PETROLEUM 178 5.2. O CRESCENTE APOIO AOS U'WA EM NfVEL LOCAL E GLOBAL 180 5.2.1. A SOLIDARIEDADE DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS DO DISTRITO DE ARAUCA 180

5.2.2. A MOBILIZAÇÃO DO MOVIMENTO INDÍGENA COLOMBIANO EM SOLIDARIEDADE AOS U'WA 181

2.1. •MARCHA" E •CONFERÊNCIA INDfGENA" 127 2.2. •AUTODEMARCAÇÃo• 130

J. TRILHAS SINUOSAS EM CAMINHOS CERTOS 143

5.2.3. AS REDES DE PROMOÇÃO DA CAUSA U'WA NOS ESTADOS UNIDOS 182 5.2.4. AS REDES DE PROMOÇÃO DA CAUSA U'WA NA EUROPA E NA AMÉRICA LATINA 184 5.3. AS NOVAS DINÂMICAS DA LUTA U'WA 186

CAPITULO 3

5.3.1. O NOVO DEBATE COM O MINISTRO DO MEIO AMBIENTE SOBRE A CONSULTA PRÉVIA 186

A luta contra a exploração do petróleo no território u'wa: estudo de caso de uma luta local que se globalizou 153

5.3.2. O NOVO CONFLITO SOBRE O PROCESSO DE CONSULTA PRÉVIA EM INSTÂNCIAS LEGAIS 188

Luis carlo5 Arenas

INTRODUÇÃO 155

5.3.3. OS ÚLTIMOS ACONTECIMENTOS NA ÁREA DE EXPLORAÇÃO DE PETRÓLEO 189 6. CONCLUSÕES 192

MOVIMENTOS SOCIAIS E JUSTIÇA(S) 199

1. AS LUTAS SOCIAIS ALÉM DAS FRONTEIRAS NAOONAIS 156 2. UMA ABORDAGEM AO POVO U'WA 160 2.1. O PROCESSO MODERNO DE ORGANIZAÇÃO SOCIAL ENTRE OS U'WA 161 2.2. A LUTA DOS U'WA PELA TERRA 162

CAPITULO 4

Uma localidade da Beira em protesto: memória, populismo e democracia 201 José Manuel de Oliveira Mendes

7

BOAVENTURA DE

SOUSA SANTOS RECONHECER

PARA LIBERTAR

INTRODUÇÃO 203 1. OS MOVIMENTOS E O ESTADO NA TRANSIÇÃO E NA NOVA DEMOCRACIA

205

1. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

2. CONTEXTUALIZAÇÃO E AS RAZÕES DE UMA LUTA

222

2.2. O REPERTÓRIO DE AÇÕES

229

318

11. REINVENTAR A EMANCIPAÇÃO SOCIAL

231

12. CONCLUSÃO

326

329

237

2.5. PROCESSOS IDENTITÁRIOS PESSOAIS E COLETIVOS 3. O POTENCIAL EMANCIPATÓRIO DE UMA LUTA 4. CONCLUSÃO

317

10. A INGERÊNCIA DO NEOLIBERALISMO

2.3. A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES 2.4. VIOLÊNCIA E EMOÇÕES

9. ENFRENTANDO NOVOS DESAFIOS

213

2.1. ORGANIZAÇÃO FORMAL E ÚDERES

313

8. A COLIGAÇÃO NACIONAL DE MULHERES

208

311

239

CAPÍTULO 1

Orientação sexual em Portugal: para uma emancipação 335

244

Ana Cristina Santos CAPITULO 5

Pactos paradoxais 249

INTRODUÇÃO 337

Francisco Gutiérrez Sanln e Ana Maria Jaramillo

1. CONSTRUINDO A IGUALDADE E A DIFERENÇA

339

1.1. (DES)IGUALDADES NO QUADRO CAPITALISTA 1. O CAOS E A TRADIÇÃO PACTISTA

251

2. CONDIÇÕES E ESPECIFICIDADES JURÍDICAS, SOCIAIS E RELIGIOSAS DO PAIS

2. IDEOLOGIAS E DISCURSOS DA CONTESTAÇÃO ARMADA 3. AS MILÍCIAS URBANAS EM MEDELLIN

5. CONCLUSÕES

259

2.1. O CATOLICISMO PORTUGUÊS

266

4. A EXPERIÊNCIA DO OCIDENTE DE BOYACÁ

341 347

350

J. A EMERGÊNCIA DO MOVIMENTO LGBT EM PORTUGAL 353

272

J.1. CONSTRUINDO REDES COM OUTROS GRUPOS DISCRIMINADOS 358

282

4. EMANCIPAÇÕES ALTERNATIVAS OU GLOBALIZADAS? 5. CONCLUSÃO

DIFERENÇAS E CONSTRUÇÕES IDENTITÁRIAS 289

363

373

CAPITULO 6

CAPITULO 8

Qu~ trabalhadores, que mulheres, que interesses? Raça, classe e gênero na Áfnca do Sul do p6s-apartheid 291

Fantasmas que assombram os sindicatos: mulheres sindicalistas e as lutas pela afirmação dos seus direitos; Moçambique, 1993-2000 381 Maria José Arthur

Shamim Meer

INTRODUÇÃO 383

INTRODUÇÃO 293 1. A CRISE DA POBREZA E DA DESIGUALDADE

1. CONTEXTOS DE CRIAÇÃO DOS COMITÊS DA MULHER TRABALHADORA NOS SINDICATOS

297

2. COMPREENDENDO A TRANSIÇÃO - PACTOS DE ELITES E ORGANIZAÇÕES-MOVIMENTO 3. O PROGRAMA DE RECONSTRUÇÃO DE DESENVOLVIMENTO (PRD) 4. ADOTANDO O GEAR

303

299

2.

DISCURSOS E PRÁTICAS EM RELAÇÃO AOS COMITÊS DA MULHER TRABALHADORA

5. AS ORGANIZAÇÕES-MOVIMENTO DURANTE O APARTHEID

6. A ORGANIZAÇÃO DAS MULHERES SOB O APARTHEID

8

307

305

391

J. AS REPRESENTAÇÕES DAS SINDICALISTAS SOBRE os ·coMITÊS DA MULHER TRABALHADORA· 402 4. TR~S MULHERES, TRÊS PERCURSOS

303

387

5. CONCLUSÕES

417

409

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

RECONHECER

SOBERANIA, CIDADANIA E INTERNACIONALISMO SOLIDÁRIO 425

PARA LIBERTAR

6.3. UMA PLURALIDADE DE REGIMES JUR[DICOS SUPRANACIONAIS INCOMPAT[VEIS 6.4. AS ONGS COMO MEDIADORAS E CRIADORAS DE LEIS

503

CAPITULO 9

6.5. FRAGMENTAÇÃO DO DIREITO ESTATAL E SOBERANIA FRATURADA

Por uma concepção multicultural de direitos humanos 427

6.6. PLURALISMO JUR[DICO E A EMERGÊNCIA DO CIDADÃO ARDILOSO?

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

1. SOBRE AS GLOBALIZAÇÕES

Quem salvou limor Leste? Novas referências para o internacionalismo

2.1. A HERMEN~UTICA DIATÓPICA

438

solidário 513

443

José Manuel Pureza

2.2. AS DIFICULDADES DO MULTICULTURALISMO PROGRESSISTA

451

2.2.1. CONDIÇÕES PARA UM MULTICULTURALISMO PROGRESSISTA

454

INTRODUÇÃO 515

J. CONCLUSÃO 458

1. WESTFÁLIA E PÓS-WESTFÁLIA

516

2. POSITIVISMO E PÓS-POSITIVISMO CAPÍTULO 10

519 520

3. TIMOR LESTE: UMA LUTA PÓS-POSITIVISTA

Pluralismo jurídico, soberania fraturada e direitos de cidadania diferenciais: instituições internacionais, movimentos sociais e Estado pós-colonial na Índia 463 Shalini Randeria

521

3.1. EFETIVIDADE VERSUS LEGITIMIDADE 3.2. GEOPOL[TICA VERSUS LEGALIDADE

526

3.3. EFICIÊNCIA VERSUS MULTILATERALISMO 4. TIMOR LESTE: UMA LUTA PÓS-WESTFALIANA 4.1. O PAPEL DA CIDADANIA PEREGRINA

INTRODUÇÃO 465

467

528 532

533

4.2. PORTUGAL: UM ESTADO MILITANTE?

1- PlURALISMO JURÍDICO E ESTADOS SUBALTERNOS

537

546

5. EPÍLOGO: QUEM FOI SALVO, AFINAL7

2. DOMESTICAÇÃO DA DISCIPLINA NEOLIBERAL: A DANÇA DOS DOADORES COM OS ESTADOS

473

COMENTÁRIO GERAL 553

3. ALIANÇAS C[VICAS, DIREITO DE PROJETO (PROJECT LAW) E DIREITO ESTATAL: OS DIREITOS DAS COMUNIDADES PASTORIS VERSUS

os DllmTOS DOS LEÕES 479

CAPITULO 12

4. A LUTA DE NARMADA REFORMA O BANCO MUNDIAL MAS PERDE A BATALHA JURIDICA NA INDIA

486

Globalização, multiculturalismo e Direito 555 Yash Ghai

5. GOVERNO NO ESTADO E AÚM DELE: O PAINEL DE INSPEÇÃO DO BANCO MUNDIAL E O SUPREMO TRIBUNAL DA INDIA

488

INTRODUÇÃO 557

6. A ÁRVORE NEEM INDIANA EM JULGAMENTO EM MUNIQUE

495

6.1. GLOBALIZAÇÃO HEGEMÓNICA VERSUS GLOBALIZAÇÃO CONTRA-HEGEMÓNICA

1. DIREITOS HUMANOS

497

6.2. ESTADOS ARDILOSOS EM VEZ DE ESTADOS FRACOS? DEBATENDO OS LIMITES À AUTONOM~ DO ESTADO

506

CAPITULO 11

433

2. OS DIREITOS HUMANOS COMO ROTEIRO EMANCIPATÓRIO

DEPENDENTES

504

507

6.7. CONTINUIDADES PÓS-COLONIAIS?

INTRODUÇÃO: AS TENSÕES DA MODERNIDADE OODENTAL 429

502

499

561

1.1. REFORÇANDO O REGIME DE DIREITOS HUMANOS 1.1.1. AUTODETERMINAÇÃO 1.1.2. POVOS INDÍGENAS

1

o

568

570

1 1

565

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

1.1.3. DIREITOS CULTURAIS

571

1.2. O PLURALISMO DOS DIREITOS HUMANOS

576

1.2.1. DIREITOS DOS ABORÍGINES/INDÍGENAS 1.2.2. MULTICULTURALISMO

Prefácio

574

1.1.4. DIREITO AO DESENVOLVIMENTO

580

5 82

1.2.3. CLÁUSULA DE NÃO-CUMPRIMENTO POR RAZÃO SUPERIOR [NOTW/THSTANDING

CLAUSE]

584

2. MODELOS DE ESTADOS

593

2.1. AUTONOMIA CULTURAL l. CONCWSÁO

600

Este livro é o terceiro de um conjunto de sete livros em que são apresentados os resultados principais de um projeto de pesquisa internacional que eu dirigi nos últimos três anos, intitulado Reinventar a emancipação social: Para novos manifestos. A idéia central deste projeto é que a ação e o pensamento que sustentaram e deram credibilidade aos ideais modernos de emancipação social estão sendo profundamente questionados por um fenômeno que, não sendo novo, adquiriu nas duas últimas décadas uma intensidade tal que tem ' redefinido os contextos, os objetivos, os meios e as subjetividades das lutas sociais e políticas. Refiro-me ao que usualmente é chamado de globalização. De fato, o que chamamos globalização é apenas uma das formas de globalização, a globalização neoliberal, sem dúvida a forma dominante e hegemônica da globalização. A globalização neoliberal corresponde a um novo regime de acumulação do capital, um regime mais intensamente globalizado que os anteriores, que visa, por um lado, dessocializar o capital, libertando-o dos vínculos sociais e políticos que no passado garantiram alguma distribuição social e, por outro lado, submeter a sociedade no seu todo à lei do valor, no pressuposto de que toda atividade social se organiza melhor quando se organiza sob a forma de mercado. A conseqüência principal desta dupla transformação é a distribuição extremamente desigual dos custos e das oportunidades produzidos pela globalização neoliberal no interior do sistema mundial, residindo aí a razão do aumento exponencial das desigualdades sociais entre países ricos e países pobres e entre ricos e pobres no interior do mesmo país. A idéia deste projeto é que esta forma de globalização, apesar de hegemônica, não é a única e de fato tem sido crescentemente confrontada por uma outra forma de globalização, uma globalização alternativa, contrahegemônica, constituída pelo conjunto de iniciativas, movimentos e organi-

606

12

1 l

RECONHECER BOAVENTURA OE

PARA LIBERTAR

SOUSA SANTOS

zações que, por intermédio de vínculos, redes e alianças locais/globais, lutam contra a globalização neoliberal mobilizados pelo desejo de um mundo melhor, mais justo e pacífico que julgam possível e a que sentem ter direito. Esta globalização é apenas emergente e teve no Fórum Social Mundial de Porto Alegre em janeiro de 2001 e em janeiro de 2002 a sua manifestação mais dramática até hoje. Em minha opinião, é nesta globalização alternativa e no seu embate com a globalização neoliberal que estão sendo criados os novos caminhos da emancipação social. Este embate, que metaforicamente pode ser caracterizado como um embate entre o Norte e o Sul, tende a ser particularmente intenso nos países de desenvolvimento intermediário ou países semiperiféricos e, portanto, também é neles que os potenciais e os limites da reinvenção da emancipação social mais claramente se revelam. Daí que dos seis países em que foi realizado este projeto, cinco sejam países de desenvolvimento intermediário espalhados por diferentes continentes. Os seis países são: África do Sul, Brasil, Colômbia, Índia, Moçambique e Portugal. Os novos conflitos Norte/Sul têm lugar nos mais diversos campos da atividade social, econômica, política e cultural. Há, no entanto, alguns campos em que as alternativas criadas pela globalização contra-hegemônica são mais visíveis e consistentes, não só porque é neles que os conflitos são particularmente intensos, mas também porque é neles que as iniciativas, os movimentos e as organizações progressistas adquiriram níveis mais elevados de consolidação e densidade organizativa. Entre eles, selecionei os seguintes cinco campos ou temas para serem objeto de análise em cada um dos seis países integrados no projeto: democracia participativa; sistemas alternativos de produção; multiculturalismo progressista, justiça e cidadania cultural; defesa da biodiversidade e dos conhecimentos comunitários contra o regime da propriedade intelectual; novo internacionalismo operário. Sobre a escolha dos países e dos temas, bem como sobre os pressupostos que subjazem a este projeto e os desafios que ele pretende defrontar, aconselho a leitura da Introdução Geral no primeiro volume. A coleção é constituída por sete volumes. Os primeiros cinco volumes correspondem aos cinco temas referidos. Obviamente os temas não são estanques e, por isso, há uma intertextualidade, por vezes implícita, por vezes

explícita, entre os diferentes livros que os abordam. O Volume 3, que ora apresento, é dedicado ao tema do multiculturalismo. Trata das lutas e das políticas de reconhecimento da diferença que nas duas últimas décadas têm confrontado as identidades imperiais, os falsos universalismos e a colonialidade do poder, os quais são tão intrínsecos ao capitalismo histórico quanto a exploração do trabalho assalariado. Não espanta, pois, que também resida aí um confronto nuclear entre o Norte e o Sul. São analisados as lutas e os movimentos dos povos indígenas pela autodeterminação, as lutas e os movimentos feministas, homossexuais, pela autonomia local, pela justiça e pelos direitos humanos multiculturais. O argumento central deste volume é que a globalização hegemônica, ao mesmo tempo que suscita novas formas deracismo, tem também criado condições para a emergência do multiculturalismo. Este, porém, tanto pode ser conservador quanto emancipatório. Pela análise de iniciativas concretas e da reflexão teórica, este volume procura identificar as condições para um multiculturalismo emancipatório. Este volume começa com uma Introdução ao tema do multiculturalismo escrita por mim e por João Arriscado Nunes, em que procuramos identificar os principais debates em torno do multiculturalismo e em que apresentamos algumas teses que, a nosso ver, permitem distinguir entre multiculturalismo conservador e multiculturalismo emancipatório. O livro está dividido em três partes. A Parte 1, intitulada Direitos coletivos e sociedades multiculturais, aborda a relação entre o conceito de direitos coletivos e a redefinição das sociedades nacionais como sociedades multiculturais. No Capítulo 1, Carlos Marés apresenta um quadro histórico das lutas pelo reconhecimento dos direitos coletivos dos povos indígenas da América Latina desde o período colonial, salientando as dificuldades da compatibilização desses direitos com a matriz individualista do direito e das teorias constitucionais liberais. O efetivo reconhecimento desses direitos e a sua consagração na ordem constitucional de diferentes Estados é o resultado de um longo e complexo processo de lutas, de alianças com diferentes setores das sociedades nacionais e de invenção de fórmulas constitucionais inovadoras. A discussão pormenorizada do caso do Brasil leva o autor a salientar a ' 5

1 4

BOAVENTURA DE

SOUSA

SANTOS

RECONHECER

PARA ~IBERTAR

importância da afirmação de uma "lógica dos povos" como base de uma soberania nacional que reconheça e defenda efetivamente a diversidade cultural. O tema das lutas e dos direitos di povos indígenas do Brasil é retomado por Lino João Neves no Capítulo 2. São analisadas, em particular, as formas de mobilização e de organização dos indígenas da Amazônia e a progressiva ampliação e consolidação do movimento indígena e das suas organizações em escala nacional, forjando alianças entre etnias distintas e criando novos tipos de relações - marcadas por muitas tensões - com o Estado e com outros setores da sociedade brasileira. O processo de demarcação das terras indígenas permite confrontar a prática da "autodemarcação", de cunho emancipatório, com a da "demarcação participada", conduzida segundo a lógica do Estado e dos seus agentes, ilustrando duas concepções distintas da autonomia dos povos indígenas. No Capítulo 3, Luis Carlos Arenas analisa a luta dos U'wa, uma comunidade indígena da Colômbia, contra as tentativas de uma multinacional petrolífera de realizar prospecções no seu território. Graças a um processo de construção de alianças tanto em escala nacional quanto transnacional, a luta dos U'wa conseguiu uma visibilidade que permitiu que um conflito que parecia condenado ao âmbito local se tornasse num caso exemplar de ampliação bemsucedida, em escala global, de uma luta pelos direitos coletivos. O autor chama a atenção para a importância decisiva dos atores coletivos locais como condição para uma efetiva solidariedade transnacional, baseada em relações horizontais - tanto Norte/Sul quanto Sul/Sul-, não hierárquicas, entre os protagonistas locais das lutas e as forças transnacionais que os apóiam. A Parte li, intitulada Movimentos sociais e justiça(s), centra-se nas relações entre movimentos sociais e concepções alternativas de justiça. José Manuel Mendes analisa, no Capítulo 4, a luta de uma população do Centro de Portugal pelo reconhecimento do direito ao autogoverno. Essa luta apóia-se na mobilização da memória de um passado de combate à opressão e à exploração, na luta pelo poder local e no forjar de uma identidade baseada em relações familiares e de trabalho. Os seus alvos e interlocutores são as instituições políticas nacionais. O repertório de ações, de imagens e de narrativas mobilizado nessa luta suscita importantes questões sobre o que permite caracterizar um movimento social enquanto movimento eman-

cipatório e sobre os riscos de eventuais desvios populistas e autoritários em processos de ação coletiva. O Capítulo 5, de autoria de Francisco Gutiérrez e Ana Maria Jaramillo, centra-se na experiência "pactista" na Colômbia. Com um estudo pormenorizado de duas situações locais, em Medellín e Boyacá Ocidental, os autores mostram como os pactos entre o Governo nacional e certas forças locais permitem administrar a tensão entre formas macroinstitucionais estáveis e conflitos armados múltiplos e difusos. Contudo, nos casos estudados, esses pactos resultam no reconhecimento pelo Estado do poder de grupos armados e no sacrifício dos direitos democráticos dos cidadãos em nome da paz e da defesa da comunidade. Nestas condições, as soluções pactistas, podendo ser desejáveis em escala nacional, podem ter conseqüências perversas em escala local, comprometendo a possibilidade de dinâmicas emancipatórias e preservando o poder dos grupos armados e dos setores da sociedade que recorrem à violência. O tema da Parte III, intitulada Diferenças e construções identitárias, é o das relações entre as lutas pelo reconhecimento das diferenças e as identidades emergentes ou em construção. No Capítulo 6, Shamim Meer faz uma análise das transformações, na África do Sul, das relações entre os diferentes movimentos sociais e de cidadãos no período da luta contra o apartheid e na era p6s-apartheid, focando, em particular, as diferentes trajetórias dos ativistas em função da constelação classe social/raça/diferença sexual. A emergência de uma elite negra no período pós-apartheid não alterou significativamente a situação da maioria da população. A passagem pelo governo de antigos ativistas de movimentos anti-apartheid em um quadro configurado pelo neoliberalismo e por uma concepção liberal de democracia contribuiu para a "despolitização" dos problemas da desigualdade e das assimetrias de poder, reduzindo-os a questões a serem resolvidas por via legislativa. A resposta a esta situação tem-se materializado, nos últimos anos, em novos movimentos sociais e iniciativas de cidadãos com origem nos setores mais pobres e marginalizados da sociedade, e da luta destes pela sobrevivência e pela dignidade. O Capítulo 7, de autoria de Ana Cristina Santos, traça o desenvolvimento recente das lutas pela liberdade de orientação sexual em Portugal e

, 6

11

BOAVENTURA OE

SOUSA SANTOS RECONHECER

a emergência de movimentos pelos direitos das minorias sexuais. Essas lutas têm sido travadas no quadro da reivindicação da diferença e, ao mesmo tempo, da defesa da igualdade. No caso de Portugal, e em resposta ao peso cultural e ideológico de um conservadorismo de raiz católica e ao descompasso entre uma legislação relativamente avançada neste campo e práticas sociais restritivas, os movimentos pelos direitos das minorias sexuais procuraram não só integrar as iniciativas de ativistas e associações gays, lésbicas, bissexuais e transexuais, como forjar alianças com outros movimentos, contra as discriminações e exclusões de todos os tipos, num processo de acentuada "politização" e de promoção de uma participação política e social inclusiva. No Capítulo 8, Maria José Arthur analisa a tensão entre identidades de classe e diferença sexual no movimento sindical em Moçambique, a partir da relação entre as direções sindicais e os Comitês da Mulher. Seguindo as trajetórias distintas de várias mulheres sindicalistas, a autora mostra como, em conseqüência da reorganização dos sindicatos levada a cabo na década de 1990, a identidade da "mulher trabalhadora" foi redefinida em um novo quadro marcado pelo processo de privatizações e por um agravamento das condições de vida da maioria da população. Neste contexto, são caracterizados tanto os discursos justificatórios da discriminação das mulheres por parte das direções sindicais quanto as estratégias e práticas das mulheres visando novas articulações das identidades de mulher e de trabalhadora e o seu reconhecimento. Na Parte Iv, intitulada Soberania, cidadania e internacionalismo solidário, são abordadas as condições e experiências de um novo internacionalismo solidário. No capítulo 9, Boaventura de Sousa Santos discute as condições de elaboração de uma concepção dos direitos humanos que reconheça e integre a diversidade cultural, de modo a permitir a reinvenção dos direitos humanos como uma linguagem da emancipação. Contra um falso universalismo baseado na definição dos direitos humanos como eles são concebidos no Ocidente, como se essa fosse a única definição possível desses direitos, o autor propõe o diálogo intercultural entre diferentes concepções da dignidade humana que reconheça a incompletude de todas as culturas e a articulação,

PARA LIBERTAR

em tensão, entre as exigências do reconhecimento da diferença e da afirmação da igualdade, entre direitos individuais e direitos coletivos. A hermenêutica diatópica é proposta como o meio para realizar o diálogo entre essas diferentes concepções. O Capítulo 10, de autoria de Shalini Randeria, é dedicado ao estudo das interações entre movimentos sociais, ONGs e instituições internacionais, por um lado, e os Estados nacionais, por outro. Tomando a Índia como campo de estudo, a autora analisa a constituição de novas formas de pluralismo jurídico, no quadro do que chama de Estados "ardilosos" (como o Estado indiano), dando origem a "soberanias fraturadas" e a configurações variáveis (e de sentido ambíguo) de alianças entre atores locais, nacionais e transnacionais. O próprio Estado aparece como um campo de conflitos e de tensões entre diferentes ordens jurídicas e diferentes experiências de regulação. Neste quadro, é conferida especial atenção às novas oportunidades para ações emancipatórias protagonizadas por movimentos de base 'local e ONGs. Finalmente, no Capítulo 11, José Manuel Pureza estuda em pormenor as condições que permitiram o surgimento e o desenvolvimento da ação coletiva, em escala global, em defesa dos direitos humanos e pela libertação de Timor Leste da ocupação indonésia. O autor caracteriza as transformações recentes nas respostas às violações de direitos humanos e dos direitos dos povos como sendo respostas "pós-realistas" e solidárias baseadas em um ethos da democracia cosmopolita. A responsabilidade partilhada e a ética do cuidado, protagonizadas pela figura do "cidadão peregrino", são evocadas como dimensões cruciais do novo internacionalismo solidário. Neste quadro, surge um novo papel para o Estado, o do "Estado militante", assumido pelo Estado português enquanto protagonista central da articulação entre atores coletivos internacionais e entre estes e a resistência do povo do Timor à ocupação. Como disse, este volume é o terceiro de uma coleção de sete. Justificase, por isso, uma breve referência aos restantes. O Volume 1, intitulado Democratizar a democracia: Os caminhos da democracia participativa, é dedicado ao tema da democracia participativa. O

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argumento central deste livro é que o modelo hegemônico de democracia (democracia liberal, representativa), apesar de globalmente triunfante, não garante mais que uma democracia de baixa intensidade baseada na privatização do bem público por elites mais ou menos restritas, na distância crescente entre representantes e representados e em uma inclusão política abstrata feita de exclusão social. Paralelamente a este modelo de democracia, sempre existiram, ainda que marginalizados, outros modelos. Em tempos recentes, um desses modelos, a democracia participativa, tem conseguido uma nova dinâmica, protagonizada por comunidades e grupos sociais subalternos em luta contra a exclusão social e a trivialização da democracia, mobilizados pelo desejo de contratos sociais mais inclusivos e de democracia de mais alta intensidade. Essas iniciativas são abordadas nesse volume. O Volume 2, intitulado Produzir para viver: Os caminhos da produção não capitalista, trata das alternativas de produção não capitalista que ganharam for_ça nas duas últimas décadas como resistência à exclusão social e à exploração selvagem engendrada pela globalização neoliberal. São analisados modelos alternativos de desenvolvimento capitalista, como a economia solidária e o swadeshi de Gandhi, e são apresentados estudos de caso de organizações econômicas populares, de cooperativas, de gestão comunitária ou coletiva da terra e de associações de desenvolvimento local. O confronto entre este mundo não capitalista e o mundo da globalização neoliberal constitui um dos pontos centrais do conflito Norte/Sul nos próximos tempos. O Volume 4, intitulado Semear outras soluções: Os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais, aborda uma dimensão crescentemente importante do conflito Norte/Sul, o confronto entre conhecimentos rivais e o acesso cada vez mais desigual à informação e ao conhecimento como conseqüência da mercantilização global destes últimos. Estes confrontos decorrem dos avanços da biologia, da biotecnologia e da microeletrônica, que transformaram a reserva de biodiversidade em um dos "recursos naturais" mais preciosos e mais procurados. Como grande parte desta biodiversidade está localizada nos países do Sul e é sustentada por conhecimentos populares, camponeses ou indígenas, a questão (e o conflito) reside em como defender essa biodiversidade e esses conhecimentos da voracidade com que o 2

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conhecimento científico-tecnológico-industrial transforma uma e outros em objetos e conhecimentos patenteáveis. É analisado um vasto conjunto de conflitos entre conhecimentos rivais, da biodiversidade às medicinas, ao impacto ambiental e às calamidades naturais. O Volume 5, intitulado Trabalhar o mundo: Os caminhos do novo internacionalismo operário, é dedicado às novas formas do conflito capital/trabalho, contradição fundamental das sociedades capitalistas e portanto um dos aspectos centrais do conflito Norte/Sul. As novas formas do conflito decorrem, por um lado, do fim da guerra fria e, por outro, do fato de o trabalho ter sido transformado nas duas últimas décadas em um recurso global sem que, no entanto, tenha sido criado um mercado global de trabalho. Desse descompasso resultou o enfraquecimento do movimento sindical tal como o conhecemos. Entretanto, hoje é visível que a solidariedade operária está se reorganizando sob novas formas, quer em nível local e nacional, quer em nível global. O livro analisa em detalhes algumas dessas ,novas formas. O Volume 6, intitulado As vozes do mundo, é um livro distinto dos anteriores, porque em vez de se centrar na análise científico-social das alternativas, centrou-se no discurso e no conhecimento prático dos protagonistas dessas alternativas. Uma das preocupações centrais do projeto Reinventar a emancipação social é a renovação das ciências sociais. Uma das formas de renovação é confrontar o conhecimento que elas produzem com outros conhecimentos (práticos, plebeus, vulgares, tácitos) que, apesar de serem parte integrante das práticas sociais que as ciências sociais analisam, são sempre ignorados por estas. Nesse livro ganham voz os ativistas líderes de movimentos sociais, iniciativas e organizações, muitos deles estudados nos livros anteriores, por intermédio de entrevistas. Finalmente, o Volume 7, intitulado Reinventar a emancipação social, dá conta da minha reflexão teórica, analítica e epistemológica sobre as temáticas que dominaram este projeto, sobre os seus resultados principais e também sobre o projeto em si como processo de construção de uma comunidade científica em condições e segundo regras nada convencionais. Participaram deste projeto 69 pesquisadores e foram analisadas mais de 60 iniciativas. Um projeto com esta dimensão foi possível graças a um con:z

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junto exigente de condições. Em primeiro lugar, exigiu um financiamento adequado. Agradeço vivamente à Fundação MacArthur pelo financiamento e também por ter apoiado incondicionalmente o projeto ao longo da sua execução com total compreensão pela sua complexidade e pelas exigências de autonomia do diretor do projeto. A parte portuguesa deste projeto foi financiada pela Fundação Calouste Gulbenkian que, mais uma vez, apoiou generosamente o trabalho de pesquisa realizado pelo Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, apoio que muito agradeço. Outra condição para a execução deste projeto foi ter podido dispor de coordenadores de projeto, um em cada país, que me ajudaram na seleção dos temas e dos pesquisadores na execução da pesquisa. Assim, pude contar com a colaboração de Sakhela Buhlungu na África do Sul, Maria Célia Paoli no Brasil, Maurício Garcia-Villegas na Colômbia, Shalini Randeria e Achyut Yagnik na Índia, Teresa Cruz e Silva em Moçambique e João Arriscado Nunes em Portugal. A todos, o meu agradecimento muito sincero. Este projeto não teria sido possível se eu não tivesse contado com uma dedicada e competentíssima equipe de secretariado. Sílvia Ferreira, Paula Meneses e Ana Cristina Santos dividiram entre si tarefas administrativas, científicas e editoriais, mas todas fizeram de tudo um pouco. Ao longo de três anos realizaram um trabalho notável na criação de condições que agilizassem as minhas reuniões com os coordenadores de países, com os pesquisadores, que ajudassem os pesquisadores em todas as suas solicitações e que garantissem a produção dos textos. Foi um trabalho gigantesco que tem de ser citado e agradecido para não ficar oculto dentro dos milhares de linhas que constituem esta coleção de livros. Last but not least, este projeto foi sediado no Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e contou com todo o apoio da direção e do pessoal administrativo do CES. Como sempre, não poderia deixar de mencionar com um sublinhado muito forte Lassalete Simões, minha colaboradora, secretária, assistente e amiga há mais de dez anos. O meu agradecimento muito sentido. Da Faculdade de Economia, dos seus órgãos diretivos, dos colegas do departamento de sociologia, tive sempre a solidariedade e o apoio, uma dá2 2

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diva tanto mais preciosa quanto vai sendo rara em instituições universitárias. O meu muito obrigado, pois. Maria Irene Ramalho esteve presente das formas mais insuspeitadas na execução deste projeto. Daí que o agradecimento, por mais intenso, fique sempre aquém do devido e só ela saiba o porquê.

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Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade Boaventura de Sousa Santos João Arriscado Nunes

Multiculturalismo, justiça multicultural, direitos coletivos, cidadanias plurais são hoje alguns dos termos que procuram jogar com as tensões entre a 'diferença e a igualdade, entre a exigência de reconhecimento da diferença e de redistribuição que permita a realização da igualdade. Essas tensões estão no centro das lutas de movimentos e iniciativas emancipatórios que, contra as reduções eurocêntricas dos termos fundamentais (cultura, justiça, direitos, cidadania), procuram propor noções mais inclusivas e, simultaneamente, respeitadoras da diferença de concepções alternativas da dignidade humana. Como é possível, ao mesmo tempo, exigir que seja reconhecida a diferença, tal como ela se constituiu através da história, e exigir que os "outros" nos olhem como iguais e reconheçam em nós os mesmos direitos de que são titulares? Como compatibilizar a reivindicação de uma diferença enquanto coletivo e, ao mesmo tempo, combater as relações de desigualdade e de opressão que se constituíram acompanhando essa diferença? Como compatibilizar os direitos coletivos e os direitos individuais? Como reinventar as cidadanias que consigam, ao mesmo tempo, ser cosmopolitas e ser locais? Que experiências existem neste campo e o que nos ensinam elas sobre as possibilidades e as dificuldades de construção de novas cidadanias e do multiculturalismo emancipatório? As contribuições incluídas neste volume procuram, em contextos distintos e a partir de lutas coletivas em diferentes escalas, envolvendo uma diversidade de atores e em torno de uma pluralidade de temas, ajudar a identificar 2 5

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as condições em que o multiculturalismo, as diferentes concepções de justiça e de direitos e novas formas de cidadania têm sido postos à prova. Importante sublinhar, contudo, que os próprios termos que usamos para descrever estas lutas e iniciativas coletivas são problemáticos, podendo encerrar pressupostos eurocêntricos e revelar-se inadequados para lidar com estas situações. Por outro lado, e na medida em que estes termos têm sido utilizados, no Norte e não só, para a promoção de causas emancipatórias e da solidariedade com as vítimas de opressão e com os povos do Sul, o seu uso estratégico é, sem dúvida, um importante recurso para construção de novas formas de solidariedade. Faz sentido, por isso, começar por uma desconstrução crítica desses conceitos, antes de passar a examinar as formas como os estudos de caso incluídos neste volume sugerem formas de reconstrução de um vocabulário e de instrumentos emancipatórios para a invenção de novas cidadanias, baseados no recurso a uma sociologia das ausências, capaz de identificar os silêncios e as ignorâncias que definem as incompletudes das culturas, das experiências e dos saberes, e de uma teoria da tradução, que permita criar inteligibilidades mútuas e articular diferenças e equivalências entre experiências, culturas, formas de opressão e de resistência. 1

1. A POSSIBILIDADE DE MULTICULTURALISMOS EMANCIPATÓRIOS

1.1. Multiculturalismo: um conceito contestado

~ressão multic~r~iJ:~~gna, ~iginalmente,

A a coexistência de formas f!_llturais ou de gruQ__os caracterizados por culturas diferentes no seio de ~a2es "modernas". Rapidamente, contudo, o termo se tornou um modo de descrever as diferenças culturais em um contexto transnacional e global. Existem diferentes noções de multiculturalismo, nem todas de sentido emancipatório. O termo apresenta as mesmas dificuldades e os mesmos potenciais do conceito de "cultura", um conceito central das humanidades e das ciências sociais e que, nas últimas décadas, se tornou um terreno explícito de lutas políticas. 1

Sobre a sociologia das ausências e a teoria da tradução ver Santos, 2000; 2001a, 2001b.

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A idéia de cultura, em um dos seus usos mais comuns, está associada a -J1 ~ um dos campos do saber institucionalizados no Ocidente, as humanidades. ~ ~nida como repositório do que de melhor foi pensado e produzi~la 'j humanidade, a cultura, neste sentido, é baseada em _9}!_érios de valor, estétili 'OOs, morais ou cogmttvos gue, definindo-se a si próprios COJll.O univ~s, ~ a diferença cultural ou a especificidade histórica dos objetos qy_e classificam. O cânone é a expressão por excelência desta concepção de cultura, '~ estabelecendo os critérios de seleção e as listas de objetos especialmente valorizados como patrimônio cultural universal, em áreas como a literatura, as artes, a música, a filosofia, a religião ou as ciências (Santos, 1998). Uma outra concepção, que coexiste com a anterior, reconhece a pluralid~e de culturas, definindo-as com.o. totalidades complexas que se confundem com as sociedades, permitindo caracterizar modos de vida baseados em condições materiais e simbólicas. Esta definição leva a estabelecer distinções entre cultu, ras que podem ser consideradas seja como diferentes e incomensuráveis, e avaliadas segundo padrões relativistas, seja como exemplares de estágios em uma escala evolutiva que conduz do "elementar" ou "simples" ao "complexo" e do "primitivo" ao "civilizado". A antropologia, como disciplina, adotou até meados do século XX diferentes variantes desta concepção. A sua expressão por excelência é a coleção - seja sob a forma da etnografia, seja sob a forma do espólio museológico - , que permite reunir, classificar e "nomear" uma cultura, garantindo uma autenticidade de que as instituições culturais ocidentais ou as instituições organizadas segundo concepções eurocêntricas nos países do Sul ou do Oriente seriam os guardiães (Clifford, 1988). Estes dois modos de definir a cultura permitiam estabelecer uma distinção entre as sociedades modernas - as sociedades coincidentes com espaços nacionais e com os territórios sob a autoridade de um Estado - , estruturalmente diferenciadas, que "têm" cultura, e as "outras" sociedades "prémodernas" ou "orientais" que "são" culturas. Essas duas formas foram consagradas e reproduzidas por instituições típicas da modernidade ocidental como as universidades, o ensino obrigatório, os museus e outras organizações, e exportadas para os territórios coloniais ou para os novos países emergentes dos processos de descolonização, reproduzindo nesses contextos concepções eurocêntricas de universalidade e de diversidade.

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No período pós-!dias depois, os u'wa denunciaram que o notário público de Pamplona que os tinha ajudad1> a registrar a compra tinha sido assassinado em circunstâncias obscuras (Comunicado U'wa, 3 1de janeiro de 2000). 34Após. d1>is meses de protestos, os u'wa declararam: "os objetivos da nossa mobilização são tão im]lflrtantes que conseguiram apoio internacional para nossa causa. Entre outros, temos o apoio -0.i Parlamento Europeu, de organizações ambientalistas e de direitos humanos não governami11tais de países como Suécia, Canadá, Alemanha, França, China, Espanha, Béigica e etnias dos Estados Unidos da América, que recomendam e exigem do governo colombiano e da multinacional o respeito pelos convênios assinados pelo governo colombiano com a OIT (Legislaiá.O indígena, Convênio 169)" (Comunicado U'wa, 3 de abril de 2000). , 9

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ação de desocupação das suas fazendas Bellavista e Santa Rita. O Tribunal Superior de Pamplona, em primeira instância, decidiu parcialmente a favor dos u'wa e ordenou ao presidente da Câmara a devolução dos terrenos das fazendas Bellavista e Santa Rita que não foram afetados pela ordem judicial que concedeu à Occidental Petroleum uma faixa de terreno nas referidas propriedades (Tribunal Superior de Pamplona, 2000). No dia 8 de julho de 2000 os u'wa regressaram às suas fazendas após o processo legal de devolução das terras, com exceção de alguns hectares onde está localizado o poço Gibraltar 1, e os u'wa denunciaram que o exército tinha colocado minas na área (Comunicado U'wa, 22 de agosto de 2000). No dia 11 de setembro de 2000, após vários conflitos com a polícia e o exército, os u'wa declararam: O povo u'wa rejeita a atitude despótica do governo de Andrés Pastrana, a mentira e a fraude de quem pretende legalizar, por intermédio de relatórios informativos à sociedade nacional e internacional, um processo de respeito que não existe, pois enquanto se dialoga numa mesa nacional, a maquinaria está chegando ao lugar da perfuração e o processo de violência fortalece-se (Comunicado U'wa, 11 de setembro de 2000).

Conseqüentemente, alguns dias depois os u'wa decidiram abandonar a mesa de negociações com o Governo. Em outra ação inesperada, os u'wa anunciaram em entrevista coletiva terem encontrado os títulos de propriedade dos seus territórios outorgados pelo Rei de Espanha no ano de 1661 (U'wa Defense Working Group, 15 de setembro de 2000). Porém, o governo colombiano e os grandes meios de comunicação da Colômbia ignoraram completamente o novo argumento dos u'wa e, graças à forte militarização da zona, conseguiram que a Occidental Petroleum iniciasse os trabalhos de exploração no final de 2000. As mobilizações realizadas em 2000 encerraram outro ciclo da luta local direta. Perante a extraordinária militarização da zona e a repressão dos protestos pacíficos, pouco restava a fazer. No momento em que está sendo redigido este capítulo, não há notícias sobre a existência de petróleo no poço Gibraltar 1. Seja qual for o resultado final das prospecções, o resultado final do conflito Oxy-U'wa é ainda bastante incerto. 191

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6. CONCLUSÕES

Tem sido a tenaz resistência ao desaparecimento e a adaptabilidade histórica das suas lutas o que melhor caracteriza os povos indígenas latino-americanos. As últimas décadas demostraram mais uma vez a novidade e riqueza das lutas dos povos indígenas. Em uma época de transnacionalização, as lutas indígenas conseguiram construir um dos mais dinâmicos e originais vínculos entre o local, o nacional e o transnacional. Como Boaventura de Sousa Santos tem defendido, quando uma luta inicialmente local se transforma em luta nacional, continua a ser local, como acontece quando se transnacionaliza. Mas, ao mesmo tempo, quando uma luta se transnacionaliza, desterritorializase e cria novas dinâmicas nacionais e locais (Santos, 2001: 211); e, por sua vez, essas novas dinâmicas locais transformam e influenciam permanentemente os atores e os espaços transnacionais. Já foi sugerido que a solidariedade aos u'wa teve origem na dramática estratégia de ameaça de suicídio coletivo, fato que despertou uma solidariedade inimaginável. A verdade é que a ameaça de suicídio contribuiu inicialmente para atrair a atenção para os u'wa nacional e internacionalmente. Porém, como tenho demonstrado ao longo deste capítulo, eu, as pessoas e organizações que conhecemos de perto os u'wa ficamos impressionados com a riqueza da sua cultura, o carisma de alguns dos seus porta-vozes e originalidade, exemplaridade e potencial emancipatório do seu discurso e da sua luta. Para a imensa maioria das pessoas que os apóiam, a conservação da cultura u'wa e a sua muito especial relação com a natureza tornaram-se um motivo de solidariedade. É preciso ressaltar, contudo, que à medida que o tempo passa o tema do suicídio coletivo vai ficando esquecido entre as notícias sobre os u'wa, embora a solidariedade para com eles não deixe de crescer a cada dia que passa. 31 35 Para os u'wa, obviamente, o tema do suicídio foi sempre um assunto muito sério e teve um forte impacto na comunidade. Os u'wa perguntavam a si mesmos e às suas autoridades tradicionais o que iria acontecer. As autoridades tradicionais reinterpretaram a sua mensagem original, em mais uma prova de adaptabilidade cultural e indicaram que os u'wa não cometerão suicídio, mas poderão ser assassinados pelo governo colombiano e pela Occidental Petroleum, porque para protegerem o seu território sagrado estão dispostos a dar as suas vidas (Entrevista de Gilberto Kubaru'wa, 15 de junho de 2000).

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O caso u'wa apresentava uma série de particularidades que ajudaram a transnacionalizar sua luta com tão grande sucesso: 1) a forte herança cultural do povo u'wa; 2) a inacreditável capacidade e orgulho do povo u'wa para falar com voz própria e a sua capacidade de apresentar seus argumentos nos mais diferentes cenários; 3) o extenso uso feito pelos u'wa dos comunicados públicos e das cartas abertas (tive acesso a 31 deles), o que tem ajudado a manter informados os seus aliados, e a permanente atualização dos fatos relacionados ao caso; 4) a existência de um movimento de direitos humanos nacional e internacional especializado no caso colombiano (com os seus mais importantes escritórios em cidades como Washington, Madison e Bruxelas), com uma grande experiência em trabalho legal e de lobby, com contatos e recursos nacionais e internacionais que têm facilitado o apoio e a construção de redes de promoção da luta dos u'wa na Europa e nos Estados Unidos; 5) o fato de a companhia petrolífera Occidental Petroleum ter a sua sede nos EUA, poder hegemônico global e ator principal no desenvolvimento político e econômico colombiano. Ao longo deste capítulo tenho procurado demonstrar a complexidade social e institucional que se esconde por trás de uma luta social específica, antes que ela seja tema de uma "rede transnacional de promoção". Desta forma, analisei em detalhes o processo em que se encontrava envolvida a comunidade u'wa antes de o assunto da exploração do petróleo a tornar o centro das atenções no país e no mundo. O conflito motivado pelo petróleo encontrou os u'wa imersos em um processo ascendente de reconstrução cultural e de identidade, ligado à consolidação da sua organização social, à disposição de lutar pela recuperação de grande parte do seu território ancestral e ao crescente prestígio do movimento indígena no país. Paralelamente, debrucei-me sobre o complexo desenvolvimento institucional burocrático e judicial que pode ser acionado em casos como este, que ajuda a pôr em movimento e a questionar as instituições. Muitas das instituições nacionais envolvidas no caso são recentes, surgindo como resultado da aplicação da Constituição de 1991 - a Defensoría dei Pueblo e o Tribunal Constitucional. Algumas das figuras legais e regulamentos são também novos, como a ação de tutela e o Convênio nº 169 da OIT. 1g3

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Bibliografia

Procurei atribuir o mesmo valor aos processos locais (o desenvolvimento do moderno processo de organização social entre os u'wa, as suas lutas pela terra e a primeira abordagem aos u'wa feita pela companhia petrolífera), aos processos regionais (as lutas sociais no distrito de Arauca), aos processos nacionais (as respostas dos aparelhos administrativos e legais ao conflito entre a Oxy e os u'wa, a solidariedade nacional entre o movimento indígena colombiano e outros) e aos processos transnacionais (a construção de solidariedades ou redes de promoção) e procurei demonstrar a forma como processos de transnacionalização têm criado novas dinâmicas e inter-relações entre o local, o nacional e o transnacional.

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Movimentos sociais e justiça(s)

CAPÍTULO 4

Uma localidade da Beira em protesto: memória, populismo e democracia José Manuel de Oliveira Mendes

Introdução

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"O universal é o local sem paredes."

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Miguel Torga

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Não pretendo aqui testar teorias ou construir um quadro analítico geral dos movimentos de protesto. Pretendo, sim, ver como na prática se produz e se mantém uma luta, que argumentos, recursos e relações são mobilizados e que adversários e aliados são indicados. Em uma lógica mais descritiva, é meu objetivo perceber a dinâmica, as contradições, os paroxismos e as continuidades do protesto, isto é, apreender uma prática e uma mundaneidade das ações de protesto. E aqui sigo as recomendações de Michael Lynch e David Bogen (1996) que, partindo de uma perspectiva etnometodológica que chamam de pós-analítica, procuram explicitar como a história, o espetáculo e a memória são construídos ativa e localmente pelos atores envolvidos. O grande contraste era, no caso que estudaram, entre os documentos escritos e as histórias contadas localmente organizadas e relevantes no nível biográfico. A recomendação central destes autores é a de que, em vez de aplicar ou testar uma dada teoria, as histórias e os documentos devem ser vistos como recursos que os intervenientes usam para clamar, repudiar, resistir ou imputar, de forma justificável e responsável, certas relações entre biografia e história. A memória e o esquecimento são mobilizados, ou não, para fazer algo, para justificar atitudes e ações. 20J

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Escolhi como estudo de caso o Movimento de Restauração do Concelho de Canas de Senhorim. 1 Este movimento obteve nos últimos três anos grande visibilidade na opinião pública nacional, sobretudo devido ao caráter espetacular das ações empreendidas. Essa maior visibilidade deriva de uma mudança na liderança do movimento e em uma conseqüente ampliação das redes de contato. O movimento assume agora como interlocutores e interpela os órgãos políticos nacionais {presidente da República; Assembléia da República; direções nacionais dos partidos, etc.). Assim, a exigência de reconhecimento político tem passado, neste caso, pela tentativa de projeção e de visibilidade do espaço local no nível nacional. Procuro ver, neste capítulo, até que ponto o sentimento de injustiça tem afastado os participantes do movimento dos elementos de identidade e de proximidade com o país. Na relação tensa entre pessoas e espaços, tento ver também como os imperativos globais (e nacionais) tendem a distorcer as lealdades locais, sobretudo no seu componente político-partidário. O capítulo é dividido em três seções. Na primeira seção apresento de forma sintética as referências teóricas que me orientaram na pesquisa empírica e na análise dos dados recolhidos. Na segunda seção apresento uma longa descrição das origens do movimento, sua organização formal e o papel dos líderes, o repertório de ações utilizado, a importância da participação das mulheres, a presença da violência e das emoções e os processos identitários pessoais e coletivos dos participantes do Movimento. Na terceira seção, faço uma reflexão sobre o potencial emancipatório desta luta concreta, dialogando com os objetivos e as proposições teóricas mais abrangentes do projeto no qual se insere este capítulo. 1

Este trabalho baseia-se na observação, de fevereiro a dezembro de 2000, das reuniões semanais do Movimento para a Restauração do Concelho de Canas de Senhorim com a população, na participação em comícios e manifestações do movimento e em entrevistas de dirigentes e simpatizantes do mesmo. Para a análise documental, uso documentos produzidos pelo movimento, uma análise sistemática do Jornal de Notícias de 1974 a 2000 e notícias de outros diários e semanários, além das atas das reuniões da assembléia de freguesia de Canas de Senhorim de 1977 a 1998. Queria agradecer a Germano Simão e a Horácio Peixoto a cessão desinteressada dos seus arquivos pessoais de imprensa para consulta. Agradeço também aos dirigentes do movimento e às pessoas de Canas que partilharam comigo as suas opiniões e ações, sobretudo a Jorge Ferreira, que despertou em mim o interesse pelo que acontece na sua terra. 204

PARA LIBERTAR

1. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

Se, como dizem Sonia Alvarez et al. (1998), a distinção entre velhos e novos movimentos sociais - os primeiros com uma lógica reivindicativa de interesses e os segundos com uma lógica identitária - é uma distinção que deve ser abandonada, porque todos os movimentos propõem argumentos culturais e identitários Uohnston e Klandermans, 1995), as propostas desses autores não enfatizam suficientemente a importância das emoções e do lúdico na dinâmica dos movimentos sociais Uasper, 1996). Com efeito, e seguindo a proposta de Vincianne Despret, as emoções são modos de definição e de negociação das relações sociais e da pessoa em uma ordem moral local (1999: 302). O papel das emoções é crucial não só na negociação de identidades mas também como forma de saber viver em uma ordem moral, como forma de resistência. As emoções, mais do que algo que invade ou domina os indivíduos, impõem-se aos dispositivos sociais e culturais existentes. Isto é, as emoções manifestam-se em corpos e em culturas, sendo articulações de possíveis descobertas permanentes de possibilidades de ser e de fazer. Assim, cada indivíduo encontra-se inserido em teias e trajetórias de relações familiares, de trabalho, associativas, políticas e culturais que lhe conferem uma posição, provisória e negociada, em uma hierarquia de credibilidade (Becker, 1970: 126-134). E, como sugere Roger Gould (1995), as identidades pessoais são baseadas em experiências diretas e capacitam para a ação a partir da interação de pequena escala, local.2 As organizações formais são importantes porque agregam redes interpessoais diversas e aumentam a escala da ação coletiva, permitindo o diálogo, a negociação e o confronto com os outros identitários, em um processo de equilíbrio provisório e instável entre transcendência e imanência. Por outro lado, e segundo a análise proposta por Lena Jayyusi, procuro indagar dos fundamentos morais da mundaneidade, pois, segundo esta autora, "a constituição das pessoas, das ações, dos acontecimentos, da factualidade, da objetividade, da previsibilidade e da conseqüencialidade são irremedia2

Para uma discussão teórica sobre os conceitos de identidade pessoal e social, ver Mendes (no prelo).

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velmente moral" Uayyusi, 1991: 241). As controvérsias e os casos polêmicos são o ponto privilegiado em que se explicitam as referências comuns, os esquemas perceptivos e os quadros axiológicos. Permitem ver os sistemas de valores em confronto, os argumentos e os princípios de justiça utilizados. Como exemplos paroxísticos dessas controvérsias e polêmicas, temos as situações que podem originar atos de violência. E, como bem mostrou Allen Feldman (1991: 20), embora em um contexto de violência quotidiana como a Irlanda do Norte, é importante tratar a violência como uma prática transformativa que constrói novos pólos e modalidades de atuação e de recepção das ideologias políticas. Contra a linearidade causal e a aplicação de explicações socioestruturais é preciso salientar, segundo este autor, a autonomia prática e simbólica dos atos de violência que constituem as identidades dos intervenientes e os limites das suas ações presentes e futuras. Pretendo também, neste capítulo, analisar as categorias da indignação (Boltanski e Chiapello, 1999; Heinich, 1999), procurando detectar que mobilizações se estabelecem, que redes se criam e que inscrições são feitas (em objetos, instituições ou espaços). Tendo como objeto as categorias comuns da indignação, pergunto que condições e constrangimentos conduzem ao distanciamento dos intervenientes que permite a crítica. Quando se transformam a indignação e a crítica em ação coletiva? Que democracia e que participação surgem nesses processos de mobilização? Que aliados e que adversários são produzidos? Que recursos materiais, relacionais e discursivos são utilizados? Qual o papel dos líderes, e serão estes incontornáveis? Argumento também que a identidade e o reconhecimento pessoais são distintos da identidade e do reconhecimento coletivos. Cabe, assim, tentar perceber como se articulam estes dois tipos de reconhecimento, levando em consideração a pluralidade dos princípios de justiça ou de grandeza (Boltanski e Thévenot, 1991). É importante verificar em que valores se baseiam as operações de avaliação dos atores, quais os modos de justificação das suas ações e o grau de estabilidade e reversibilidade desses valores (Boltanski, 1990). Para o caso concreto que irei analisar parece-me importante também invocar o mapa de leitura da relação estrutura/ação das sociedades capitalistas que propõe Boaventura de Sousa Santos (2000: 253-285), que permite articular uma análise mais estrutural com a produção de subjetividades

pessoais e coletivas. Dos seis lugares estruturais ou seis modos de produção da prática social das sociedades capitalistas definidos pelo autor (espaço doméstico, espaço da produção, espaço do mercado, espaço da comunidade, espaço da cidadania e o espaço mundiaP), fixarei as características e as lógicas do espaço da comunidade e do espaço da cidadania. Isto sem esquecer que, sendo cada espaço estrutural autônomo e animado por uma lógica endógena, articula-se com as relações sociais dos outros espaços estruturais. A lógica de desenvolvimento de cada espaço estrutural não é mais do que uma forma sustentada de hibridação. O espaço da comunidade é baseado nas relações sociais de produção e reprodução dos territórios simbólicos e físicos e das identidades e identificações comunitárias. Apesar da produção e reprodução das identidades estarem presentes e incorporadas nos seis espaços estruturais, cristalizam-se no espaço da comunidade. Aqui a lógica de desenvolvimento, definida como a maximização da identidade, caracteriza-se por mobilizar uma forte energia emocional, uma busca contínua de raízes. A dinâmica deste espaço é organizada a partir de obrigações políticas horizontais (relação cidadão/cidadão, família/família). A forma de poder, que o autor salienta ser a mais complexa e ambígua, opera pela criação de alteridade, pelo privilégio de criar o outro, de separar o nós dos outros. No nível do direito, o espaço estrutural da comunidade pode ser reivindicado e instrumentalizado para a constituição de identidades agressivas e imperiais ou, pelo contrário, para dar expressão a identidades defensivas e alternativas. As formas de conhecimento sendo definidas, em cada espaço estrutural, como hegemonias locais, como produção de seis formas de senso comum, são sempre parciais e contextualizadas. No espaço da comunidade o conhecimento local, a tradição e as culturas locais são preponderantes. O espaço da cidadania é o conjunto das relações sociais que constituem a esfera pública, em particular as relações de produção de obrigação política vertical entre os cidadãos e o Estado. Aqui a lógica de desenvolvimento, definida como a maximização da lealdade, é baseada na legitimação e na hegemonia. Sendo o investimento emocional fraco, este precisa ser

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Ver o quadro de síntese reproduzido em Santos (2000: 254).

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constantemente reproduzido pelo Estado simbólico. A forma de poder no espaço da cidadania é a dominação, caracterizando-se pela sua forte institucionalização e pela auto-reflexividade. O direito territorial ou estatal marca o espaço da cidadania e, por estar disseminado pelos diferentes espaços estruturais, concebe-os como um todo integrado. As formas de conhecimento no espaço da cidadania são o nacionalismo educacional e cultural e a cultura cívica. Apesar de me concentrar nestes dois espaços estruturais, convém relembrar o que diz Boaventura de Sousa Santos: A tarefa da teoria pós-moderna(... ) é promover em cada um dos seis conjuntos de relações sociais, através da retórica dial6gica, a emei:gência de topoi e de argumentos emancipatórios ou de senso comuns contra-hegemônicos. (... ) Estas lutas de conhecimento devem ser travadas em todos os seis conjuntos de relações sociais. Tal como o conhecimento-regulação, o conhecimentoemancipação também s6 funciona em constelações de conhecimentos. Negligenciar este fato equivale a correr o risco de a retórica emancipatória, conquistada em uma das formas epistemológicas, se constelar "ingenuamente" com a retórica regulatória de outra forma epistemológica (Santos, 2000: 285).

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l 2. CONTEXTUALIZAÇÃO E AS RAZÕES DE UMA LUTA

Canas de Senhorim situa-se na Beira Alta, no distrito de Viseu, em um planalto entre o rio Mondego e o rio Dão. Tendo-lhe sido atribuído foral em 1196, este foi confirmado por segundo foral de 1514 (D. Manuel 1), passando a reger-se como concelho até 1852. Nesta data, os antigos concelhos de Aguieira, Canas de Senhorim, Folhadal e Senhorim fundiram-se e deram origem ao concelho de Nelas (AAW, 1975). A nova organização administrativa de 1867 permitiu a Canas readquirir o seu estatuto de concelho. Com a revolução da Janeirinha de 1868, Canas de Senhorim passou a ser de novo 4 uma freguesia do concelho de Nelas, situação que se mantém até hoje. •Para alguns dados sobre a história e a arqueologia de Canas de Senhorim, ver Mouraz (1996).

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Se já antes havia registro de escritos e de posições contra a situação existente, é após o 25 de abril de 1974 que as reivindicações para a restauração do concelho serão acentuadas. 5 Em 1975, em pleno processo revolucionário, e após algumas assembléias populares, foram elaborados uma lista de reivindicações e um abaixo-assinado, ambos enviados ao ministro da Administração Interna. Nessa lista de reivindicações pode-se ler que, ''Apesar da sua ampla participação na economia e no erário nacionais, [Canas] foi, desde sempre, vítima da mais dura opressão e exploração" (AAW, 1975). A ação da Câmara de Nelas era denunciada como explícita na subtração de infra-estruturas à freguesia de Canas de Senhorim, e apelava-se à consagração jurídica da descentralização da administração local. Era fixado um prazo de 90 dias para a obtenção de respostas às reivindicações e, findo este prazo, a assembléia popular de Canas delegaria poderes à Junta de Freguesia para cobrar e aplicar os impostos localmente. Ainda segundo o manifesto, as sedes das grandes empresas que funcionavam na freguesia deveriam ser transferidas para Canas, pois "Nelas e Lisboa não podem continuar a colonizar Canas". Neste documento eram citados como interlocutores legítimos para a aplicação das medidas propostas, representantes do povo de Canas livremente eleitos, delegados do governo ou do MFA (Movimento das Forças Armadas) 6 , considerando-se impossível qualquer negociação com as au-

5Note-se

que Canas de Senhorim era, até há pouco tempo, uma freguesia fortemente industrializada. Em 1924 começou a funcionar a Fábrica de Carboneto de Cálcio, mais tarde transformada na Companhia Portuguesa dos Fornos Elétricos. Esta empresa seria fechada em 1987. Chegou a ter perto de mil trabalhadores, entre técnicos e operários. Situam-se também nesta freguesia as minas da Urgeiriça, exploradas hoje pela Empresa Nacional de Urânio e que se encontram em fase de desativação. Chegaram a empregar um elevado número de trabalhadores, sendo estes hoje só cinqüenta, e estando prevista a manutenção num futuro próximo de apenas dois ou três postos de trabalho. 6 Este movimento corresponde à organização dos oficiais, na sua maioria capitães, que planejaram e executaram o golpe militar que culminaria na Revolução de 25 de abril. Foi sob este nome que ficou conhecido o programa político da revolução (o Programa do MFA), que foi instituído como Lei Fundamental do País até a promulgação da Constituição de 1976. 209

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toridades do concelho. 7 Os mentores da ação reivindicativa procuravam projetar a questão da autonomia administrativa de Canas para um plano de relevância nacional, tentando mobilizar as autoridades recentemente constituídas no âmbito do processo revolucionário em curso no país. Faziam-no salientando a base operária da população de Canas e o poderio socioeconômico desta localidade no contexto do concelho, do distrito e do país. Basicamente, os argumentos permanecem os mesmos hoje. Em documento que consta do "Processo Relativo à Restauração do Concelho de Canas de Senhorim" elaborado pelo Movimento de Restauração do Concelho de Canas de Senhorim (MRCCS) (1999), apela-se para que "deixem de vez Canas de Senhorim ser livre e digna, expurgando-a definitivamente das velhas provocações sob a forma do chamado NEOCOLONIALISMO INTERIOR [ênfase no original]". Nesse documento, o Movimento também propõe, como forma de contornar os critérios demográficos impostos pela Lei Quadro de Criação de Municípiosª, dois processos de criação de municípios: pela lei (concelhos quantitativos, urbanos ou administrativos) e pela vontade das populações (qualitativos, rurais ou histórico-municipalistas). São os argumentos apresentados para justificar esta segunda modalidade que me interessa realçar. Eles são justificados pela idéia de interioridade e da necessidade de desenvolvimento socioeconômico equilibrado e sustentado. Assim, para que seja criado um concelho é necessário, segundo o Movimento, existirem condições e estruturas iguais ou semelhantes às do concelho-mãe; haver vontade da população, manifestada em vários atos públicos (argumento da representatividade local) e a existência de tradições municipalistas (argumento histórico). Entre os protestos e reivindicações anteriores 9 e os atuais, contudo, há uma diferença marcante. Antes eram feitas referências constantes ao fato de Canas 'Estas reivindicações e as assembléias populares em Canas tiveram como acontecimento desencadeador o cerco e seqüestro, a 15 de maio de 1975, por habitantes de Nelas, dos representantes das diferentes freguesias na Assembléia Municipal de Nelas. Aqueles mostravam, assim, o seu descontentamento e sua recusa à hipótese do posto clínico de Nelas ser fechado e transferido para Canas (jornal de Notícias, 30 de maio de 1975). 8 Lei nº 142/85, de 18 de novembro de 1985. 9 De 1975 a 1986. 21

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ser das freguesias mais populosas e industrializadas do distrito de Viseu, contribuindo com metade do seu produto interno bruto. Atualmente, os documentos do movimento salientam, após a perda da influência econômica no concelho e no distrito, o espírito de progresso e a grande qualificação dos recursos humanos da freguesia de Canas. Considera-se que um dos principais obstáculos ao desenvolvimento de Canas é a necessidade que têm os trabalhadores qualificados de buscar emprego fora da freguesia (deslocamento forçada). Mas a data fundadora das reivindicações em Canas, citada constantemente nas conversas e celebrada anualmente, é o 2 de agosto de 1982. Em março de 1982 o Centro Democrático Social (CDS) tinha apresentado na Assembléia da República um projeto de lei para a criação do concelho de Canas de Senhorim. Tal iniciativa legislativa, institucionalizando politicamente a luta pelo concelho e congregando os diferentes setores da população de Canas, faria reativar o processo reivindicativo na localidade. Em maio daquele ano, a Comissão Pró-Criação do Concelho dava uma entrevista coletiva apresentando como exigências a criação de um código postal próprio, a parada dos trens expressos, um posto clínico e a discussão na Assembléia da República do projeto apresentado pelo CDS (Jornal de Notícias, 10 1° de maio de 1982). Este jornal adotou, nesta época, uma posição favorável às reivindicações do movimento de Canas publicando várias notícias que denunciavam as condições deploráveis da infra-estrutura na freguesia e enquadrando historicamente a luta pelo concelho (]N, 20 de maio e 1° de julho de 1982). A 30 de julho de 1982 o projeto de lei do CDS não foi votado na Assembléia da República por falta de quórum. A 2 de agosto de 1982, a população de Canas concentrou-se junto à estação dos Correios para não deixar sair a correspondência e exigir um código postal próprio. Tendo sido constatado que a correspondência havia sido retirada antecipadamente, o edifício foi tomado pela população. De forma espontânea, decidiram em seguida cortar a ferrovia. Como salienta o articulista do ]N, esta medida tinha grande impacto por ser a linha internacional e servir como ponto de passagem de muitos emigrantes. Foram retirados mais de 100 metros de trilhos. Entretanto, a Guarda Nacional Republicana (GNR), aproveitando o fato de os populares 10

A partir de agora usarei a abreviaturaJN para Jornal de Notícias. 211

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estarem concentrados na linha férrea, tinha ocupado o edifício dos CTT. Tocou a sirene e o povo voltou aos Correios. A GNR utilizou a força, e foram registrados como feridos entre os populares e alguns guardas feridos sem gravidade. A população retomou o edifício, formando um piquete. Quando os populares voltaram à ferrovia, depararam-se com a presença do Corpo de Intervenção da GNR. Foi feito um acordo com o comandante da GNR. A polícia não intervinha e as pessoas permaneciam na linha. No dia seguinte, após reunião com autoridades no Governo Civil de Viseu, o movimento, em plenário popular, decidiu suspender o bloqueio. Foi também decidido observar, a partir de então, o 2 de agosto como símbolo do futuro concelho de Canas, contra o feriado municipal de Nelas, celebrado a 24 de junho (]N, 4 de agosto de 1982). No dia 26 de setembro de 1982 seria inaugurada uma placa comemorativa do 2 de agosto. Até hoje houve apenas um ano em que esta data não foi comemorada. A comemoração reveste-se de um caráter popular e solidário, sendo distribuídas sardinhas, vinho e broa a todos os presentes. Como afirma um dos entrevistados, após aquela data:

processo de reivindicação dos concelho, mostrando a resistência local às imposições das autoridades do concelhos, do distrito e nacionais. A comemoração anual dessa data inscrevia na prática a memória da resistência e da solidariedade. 13 Outra data politicamente marcante para o movimento foi ter concorrido em 1986 com uma lista própria às eleições para a junta de freguesia, apresentando-se como único opositor o Partido Socialista (PS). Saiu vencedor o movimento, por larga margem. Esta data iria coincidir com o início da crise da Companhia Portuguesa dos Fornos Eléctricos. A junta de freguesia assumiu posição denunciando a situação crítica daquela empresa, e o desemprego na região iria sobrepor-se na prática às exigências de autonomia administrativa. No restante deste capítulo, concentrar-me-ei nos anos mais recentes da luta pela restauração do concelho de Canas, renovada e intensificada a partir de 1998.

A única ação do Movimento era o 2 de agosto. (... ) Falhou uma vez, um ano

No final de 1997, após uma fase de estagnação'\ alguns dos dirigentes remanescentes permanecido de 1975 contataram Luís Pinheiro para reativar o movimento. Luís Pinheiro procurou instituir uma estrutura de direção colegiada do movimento que tivesse representantes de todos os partidos. 15 Em uma reunião ampla, foi informalmente escolhido como líder. A direção do movimento teria a presença de dirigentes anteriores 16• que simbolizavam a continuidade da luta e o seu enraizamento popular, e representantes do

[... ] O dia 2 de agosto passou a ser a festa do povo. A festa do povo. Muita gente tinha, tínhamos aqui, às vezes pessoas que apareciam e diziam: 'eh pá', emigrantes e estrangeiros que apareciam aí, 'eh pá, isto é inédito, num país destes haver uma festa em que a gente come, bebe e não paga. Onde é que se viu isto?' (... ) As pessoas se cotizavam e todos saíam pedindo (Carlos Henrique 11 , 8 de agosto de 2000).

Porém, mais importante, esta data representa na memória coletiva a capacidade de mobilização da população em torno do ideal de restauração do concelho, projetando a luta em nível nacional. 12 Foi a primeira ação violenta no 11 Todos os nomes citados neste capítulo são pseudônimos, à exceção do líder do movimento que, pela sua visibilidade e por opção concordou que eu utilizasse o seu nome verdadeiro. Apesar de alguns entrevistados terem concordado com a utilização do nome verdadeiro, optei por usar pseudônimos. 12 0s acontecimentos do 2 de agosto de 1982 em Canas de Senhorim figuram na cronologia sobre o poder local produzida por Henrique Barrilaro Ruas (1994).

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2.1. Organização formal e líderes

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código postal próprio seria atribuído a Canas de Senhorim cm 1983. Um dos mais ativos dirigentes do Movimento foi convidado no início dos anos 90 para a lista do Partido Socialista (PS) candidata à Câmara de Nelas. Esta estratégia dos responsáveis políticos locais e distritais de cooptação dos dirigentes do movimento foi denunciada em muitas das conversas que tive com as pessoas em Canas. 15 Na entrevista que me concedeu, Luís Pinheiro afirmou: uAs pessoas de todos os partidos conhecem-me, sabem que gosto muito da minha terra(... )] e não tenho nada contra qualquer partido e muito menos contra pessoas de outros partidos que sejam da minha terra". 16Antigos operários da Companhia dos Fornos Eléctricos, exceto Edgar Figueiredo, um advogado que desde 1975 apareceu como um dos rostos do Movimento e que se afastou recentemente por razões pessoais. 14

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Partido Socialista (PS), do Partido Social Democrata (PSD), do Centro Democrático Social/Partido Popular (CDS/PP) 17 e de outros partidos de esquerda. Atualmente o PS mantém permanentemente um único representante e os outros partidos de esquerda, nenhum. Apesar do esforço em manter o movimento suprapartidário, as lógicas político-partidárias acabam por ser o fator de maior atrito e de tensão no movimento e entre os simpatizantes. 18 Com efeito, a identificação político-partidária é um marcador identitário crucial, sobretudo pelas divisões pessoais, familiares e relacionais que cria. Nesta fase da luta, o grande inimigo do movimento é.o Partido Socialista em nível nacional, distrital e de concelho, sobretudo algumas figuras marcantes, como o presidente da Câmara de Nelas, José Lopes Correia 19 , o líder da distrital de Viseu, José Junqueiro, o presidente da Assembléia da República, Almeida Santos, e o líder da bancada parlamentar, Francisco Assis. Aqueles que na freguesia são do PS e também se sentem próximos do movimento encontram-se divididos entre as solidariedades e as pressões locais e a fidelidade biográfica, política e ideológica ao partido. A resolução ou atenuação dos dilemas ideológicos em que se encontram enredados passa pela personalização das atitudes negativas do partido a que pertencem. Salvaguardando o partido, que em Canas sempre teve forte expressão eleitoral, os simpatizantes ou militantes do PS atribuem as posições negativas do seu partido em relação a Canas a traços de personalidade e a interesses pessoais de alguns dirigentes de concelhos, distritais e nacionais. A orientação partidária pessoal de algumas das pessoas que entrevistei, quase todas decidida logo após o 25 de abril, exerce uma influência decisiva e marcante nos níveis identitários ativados e nos níveis de implicação política e social mais amplos. Esses níveis vão do pessoal e único às identificações partir de 1991 o CDS, adotando uma orientação mais conservadora, passaria a designarse Partido Popular (PP). Posteriormente este partido adotaria a designação CDS/PP. tRAlgumas das pessoas que contatei procuraram partidarizar a luta, associando o Uder do movimento a uma atitude não-crítica em relação às posições do seu partido (PSD) em nível distrital e nacional e a uma estratégia explícita de afastamento dos representantes do PS. t•Em um primeiro mandato José Correia foi presidente da Câmara de Nelas pelo PSD. 11A

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espaciais e institucionais intermediárias e às de cunho mais abrangente (por exemplo, com o país). 20 Por razões de identificação com o líder do partido, por escolha ideológica assumida, por influência das dinâmicas locais, dos ódios e paixões e sobretudo pela escolha partidária dos adversários pessoais e familiares, o partido escolhido marcará indelevelmente as opiniões e as posições políticas. 21 No movimento atual, estamos perante o cruzamento de diferentes memórias, com espessuras temporais distintas. Para o novo líder, as referências marcantes reportam-se aos anos mais recentes (1998-2000). Para aqueles que estão no movimento desde 1975, o que é saliente, com altos e baixos, é a permanência da luta e da capacidade de resistência. E vale dizer que alguns entrevistados distinguiram claramente, nos objetivos e métodos adotados, o movimento atual do anterior. A capacidade estratégica de mobilização depende, assim, do apelo orientado às diferentes memórias e às histórias e narrativas comuns. Como afirmaJeffrey Rubin, "estas ambigüidades e contradições sugerem que é a coexistência de formas múltiplas de diferença que anima um movimento social radical" (1998: 160). A maior tensão que perpassa o Movimento, visível em muitas das reuniões de que participei, advém do equilíbrio precário entre os radicais e os moderados. Os moderados, representados pelo líder, têm uma visão mais política e de médio e longo prazo. Situam a luta numa lógica de estratégia políticopartidária, favorecendo a negociação e a viabilização institucional, aguardando, se necessário, um alinhamento nacional das forças políticas que seja mais favorável ao processo de constituição do novo concelho. 22 Os radicais, menos ligados à lógica partidária, baseiam os seus argumentos em uma lógica moral, de ofensa e de indignação pessoal e coletiva. O argumento central

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20Para os diferentes níveis de identificação ver Augé (1998). 21com a apresentação do projeto lei de criação do concelho de Canas pelo CDS em 1982, mostraram-se favoráveis o PS, o PCP (Partido Comunista Português) e o MDP (Movimento Democrático Português), partidos da oposição ON, 5 de abril de 1982). Na fase atual (19982000), em que o PS é governo, mostram-se favoráveis à elevação a concelho o PSD, o CDS/PP, o PCP e o BE (Bloco de Esquerda), ou seja todos os partidos da oposição. 22como afirmam Doug McAdam e Sidney Tarrow (2000: 151), todos os movimentos sociais se deparam com a necessidade de escolher entre três opções estratégicas: ação institucionalizada ou não; ações legais ou não; ações violentas ou não violentas. 2 15

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qut fundamenta esta posição moral foi bem resumido por Manuel Alves quando afirmou que:

Além das capacidades pessoais de organização e de retórica, o grande trunfo do atual líder foi ter mobilizado e interessado um partido com grande projeção nacional como o PSD para a causa da elevação de Canas a concelho. 26 O projeto apresentado em 1982 tinha sido iniciativa do CDS, e nos anos seguintes (1983, 1986 e 1988) a iniciativa foi do PCP27, dois partidos com representação parlamentar pouco expressiva. O apoio do PSD relançou a esperança daqueles que lutavam pelo concelho e ampliou a base de apoio ao Movimento.

Isto é assim. Há pessoas que gostam de viver sob domínio de outros. Há outros que não gostam. Canas de Senhorim não gosta. É uma terra que acha que não deve viver subjugada a outras. Portanto, acham que deve ser libertada, como qualquer outra terra. Como Portugal achou e como outras nações acharam, para não serem subjugadas a outras (24 de agosto de 2000). 23

O grande atenuante para uma polarização de posições entre os participantes mais radicais e os moderados, e que permite alguma tolerância mútua, é a ideologia de irmandade e o papel crucial da família na estruturação das relações sociais. A grande proximidade entre os homens é tudo de um passado comum como empregados da Companhia de Fornos Eléctricos ou das Minas da Urgeiriça. Muitos participaram juntos em ações de protesto e o fato de terem trabalhado em conjunto dava-lhes uma comunhão e um capital de confiança muito difíceis de quebrar. Esta idéia de irmandade e a memória de trabalho comum levam à radicalização de posições contra aqueles que se mostram menos favoráveis ou contrários ao movimento. Embora se ouçam algumas vozes ameaçando com ações mais extremas contra aqueles que se mostram contrários ao movimento, estas não têm sido concretizadas. Em muitos casos é dado o exemplo do radicalismo de Vizela24, mas com o intuito de lamentar a não aplicação local de ações semelhantes. Basicamente, pelas posições presentes, temos um contraponto entre um pragmatismo político e uma visão moral baseada nos princípios da dignidade, da honra e do vínculo familiar. 25

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No nível de organização e logístico é importante o apoio da junta de freguesia de Canas ao movimento 28 • É na sua sede que se realizam as reuniões semanais do movimento com a população. Estas reuniões, instituídas a partir de 1998, são um exercício de confrontação e de exposição de argumentos. Como disse em conversa uma pessoa:

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As reuniões são pedagógicas. No início era uma grande confusão. Falava-se de tudo e mais alguma coisa. As pessoas vinham com os ódios e os rancores

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pessoais. Pensou-se em acabar com as reuniões. As pessoas aprenderam a estar

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nas reuniões. Aprenderam a apresentar temas pertinentes, a não se exalta1

rem e a exporem os seus pontos de vista. 1

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Este aprendizado de debate democrático atualiza e ritualiza a proximidade da liderança do movimento às pessoas. Embora as reuniões sejam pautadas pelos temas apresentados por Luís Pinheiro, dado o seu relacio-

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aspecto importante nos argumentos sobre a bondade da luta tem a ver com a perseverança das pessoas em optarem por viverem no interior e quererem dar na terra um futuro aos filhos. Citando um documento do Movimento: "(... ) Pão-pão-queijo-queijo - porque é que nós reivindicamos a restauração do nosso concelho? Nós - quem ? Nós - nós. Nós- Canas-real. Nós que ficamos. Nós que vamos ficando. Nós que temos por esta nossa terra essa coisa mesclada, essa coisa feita de consciência, de instinto, de vontade, de teimosia, de brio, de vaidade, de hábito, de emoção, de raiva, de adjetivos, de sangue, de trabalho, de história, que se chama - municipalismo". 14 Com relatos em que se afirma que em Vizela foram expulsas pessoas que, embora sendo naturais daquela localidade, eram contrárias à sua elevação a concelho. 11 Este vínculo familiar é fator de unidade entre as pessoas e de mobilização política, distinguindo-se do que se convencionou chamar, na esteira dos trabalhos de Edward Banfield, de familismo amoral. Para uma aplicação deste conceito às dinâmicas e aos processos políticos em Portugal, ver Cabral (1999).

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Projeto de lei 478NII, apresentado em 28 de fevereiro de 1998. Nessa legislatura, o PCP também apresentou projeto para a elevação de Canas a concelho (494NII de 27 de fevereiro de 1998). Na legislatura seguinte, o PSD voltaria a apresentar projeto no mesmo sentido (72/ VIII de 13 de janeiro de 2000), tendo também apresentado projetos para a elevação de Canas a concelho o CDS/PP (106NIII de 23 de fevereiro de 2000) e o Bloco de Esquerda (202NIII de 9 de maio de 2000). 27 A apresentação dos projetos por parte do PCP afastou do movimento, segundo um dos entrevistados, muitos simpatizantes influentes da localidade que se situavam politicamente mais à direita. 28 Desde o início de 1999, por demissão da assembléia de freguesia, a gestão da junta de freguesia de Canas de Senhorim está a cargo de uma comissão administrativa (presidente e secretários que estavam em exercício. O presidente é do PS, um secretário é do PSD e o outro do PP). Desde então, os atos eleitorais para a constituição de nova junta têm sido sistematicamente boicotados pela população.

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namento privilegiado com os órgãos políticos nacionais e com os meios de comunicação, muitas pessoas interferem nas reuniões. Estas são vistas pelos dirigentes como uma oportunidade para controlar os elementos mais radicais, pois permitem que expressem seu descontentamento e racionalizarem os argumentos. Mas também obrigam os dirigentes a confrontarem-se com resistências, a explicitarem atitudes, afirmações e ações. Embora as decisões sobre ações concretas do Movimento sejam tomadas no grupo restrito dos dirigentes, a justificação semanal dessas decisões tornou-se um imperativo. Por outro lado, cabe dizer que as pessoas que regularmente vão às reuniões29 são, na sua maioria, consideradas privilegiados mediadores políticos e de opinião. Possuem grandes redes de contatos e de conhecimentos, sendo atribuída a eles uma posição de destaque na hierarquia de credibilidade local. Vale salientar também que os participantes das reuniões ativam constantemente uma política de vigilância em relação a tudo o que se diz ou escreve nos meios de comunicação locais, regionais e nacionais quanto a Canas. Desde os diários desportivos, com incorreções quanto à localização de Canas ou dos seus lugares, até declarações de dirigentes políticos, jornalistas etc. nas rádios e nas televisões, os participantes das reuniões fazem uma leitura fina, desconstrutiva, das notícias ou dos relatos, imputando intenções, definindo aliados ou adversários, categorizando posições favoráveis ou desfavoráveis e, conseqüentemente, colocando os analisados num continuum de proximidade (valorização) ou de afastamento (desvalorização). As reuniões semanais, um exercício democrático e exigente de proximidade da população30, são para os dirigentes uma obrigação de justificação e 29Uma reunião típica terá cerca de 30 pessoas, oscilando o número conforme a época do ano e a existência ou não de temas candentes ou a iminência de grandes ações. 1ºPoderia definir esse exercício democrático como populista, não no sentido negativo que lhe têm atribuído cientistas políticos e teóricos das ciências sociais, mas sim como definido pelo estudo de William Gamson (1992:89-90) sobre os quadros da injustiça usados pelos entrevistados das classes trabalhadoras. Assim, para Gamson, o populismo inclui um conjunto de imagens de classe que opõe os cidadãos comuns, as pessoas simples, aos poderosos e ricos. No mesmo sentido, Enrique Dussel propõe o uso do conceito de povo que subsume o de classe social e permite ultrapassar o dogmatismo analítico classista (Gomez, 2001:36).

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apresentação perante os seus representados. 11 A liderança nunca é considerada definitiva, e obriga a um exercício constante de retórica, de argumentação e de justificação. É sempre vista e lida como provisória, exigindo um trabalho constante de afirmação e confirmação. Saber ouvir e aceitar as críticas nas reuniões é um indicador do caráter democrático da liderança. Saber falar e expor os seus pontos de vista mostra a capacidade do líder de representar o movimento perante o exterior (meios de comunicação, políticos), onde se exige um bom domínio da linguagem, boa apresentação física e uma argumentação persuasiva. O caráter provisório da liderança12, sempre dependente dos resultados concretos e da concretização do objetivo de autonomia administrativa, e do equilíbrio de forças entre os elementos mais radicais e os que propõem uma estratégia política e negociada, estava bem presente na entrevista que me concedeu Luís Pinheiro: Eu tentei, e só consegui que as pessoas estivessem comigo e passassem por' cima da lógica dos partidos e do partido de cada um. Sempre se respeitou o partido de cada um. Este foi o grande exercício do meu mandato, chamemos-lhe assim, no movimento. Foi abrir o jogo às pessoas. Abrir tudo às pessoas. Temos reuniões abertas a todo mundo. Nenhum político faz isto. Eu se o quisesse não o fazia. Era respeitado na mesma. As pessoas acompanhavamme na mesma.(... )] E é complicado a gente enfrentar as pessoas todas as semanas. Aliás, porque nem todos pensam da mesma forma. Todos podem dar a sua opinião. Uns acham que se deve partir, outros acham que não se deve

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liderança está claramente personalizada em Luís Pinheiro. Como este reconheceu na entrevista que me concedeu: "As pessoas passam a ver o movimento na cara de uma pessoa. Hoje em dia é assim. Hoje vê-se o governo na cara do Guterres. As coisas personificam-se. Aqui tem os seus custos, em Canas é complicado". 12Alguns entrevistados, antigos operários, contrapuseram a liderança de Luís Pinheiro às capacidades retóricas do antigo dirigente sindicalista e do movimento, Mota Veiga, hoje vereador da Câmara de Nelas e considerado adversário do movimento. Para estes entrevistados, o antigo líder, que fora colega de trabalho, tinha uma capacidade ímpar de mobilização das multidões e visão e prática políticas mais radicais, mais populistas, mais próximas dos ideais do operariado e da luta revolucionária. Em contraponto, reconhecendo as capacidades de Luís Pinheiro, não deixavam de sugerir que este estava ligado a um partido da direita, e não partilhara as lutas e o sofrimento na fábrica ou nas minas. 2 1g

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partir. Isto é muito difícil de gerir e poucas pessoas querem se expor a este tipo de situação. (... ) Eu aprendi muito com as pessoas e as pessoas ensinamme muito (... ) Agora, compreendo que no nível político uma Câmara qualquer não pode abrir isto assim, senão instalava-se o caos. Mas é bom que as pessoas se convençam de que as pessoas, o povo, é cada vez menos burro. O povo cada vez sabe mais, vê cada vez mais. E ninguém é mais esperto que ninguém. Está se vendo esses políticos cada vez indo mais abaixo de um momento para o outro, porque eles realmente pensam que continuam a trabalhar para burros. Não conseguem perceber que hoje em dia em torno deles as pessoas estudam. Hoje em dia as pessoas têm outro nível cultural, as pessoas têm internet, têm televisão, as pessoas lêem jornais, ouvem rádio e estão informadas. Começam a perceber todo o sistema. É preciso ter outro respeito pelas pessoas. (... )] E eu acho que isso é um exercício que eu vou fazer e vou continuar até ao fim. E se tiver de cair por isso, caio com gosto e caio com honra. Porque eu vou até ao fim dizendo a verdade às pessoas (19 de setembro de 2000).

Aqui, o entrevistado volta a enfatizar a intenção de manter o movimento como um aglutinador das pessoas, além ou com as opções político-partidárias de cada um. 33 Salientando que se considera um democrata, diz que as reuniões semanais foram uma idéia sua e que sempre tinha a opção de não as fazer. Aqui, acentua o seu papel como líder, como capaz de impor uma orientação e uma prática. Mas, tendo instituído o ritual das reuniões, acabar com as mesmas seria um exercício perigoso para a sua liderança. Ele próprio reconhece que as pessoas estão muito mais informadas, e as reuniões servem também para canalizar paixões, emoções, sentimentos e explicitar e tornar públicas críticas e radicalismos. Sem as reuniões, a capacidade de controlar os elementos mais radicais seria uma tarefa quase impossível. Sem qualquer enquadramento, as suas ações tornar-se-iam HCorno disse antes, esta é urna das tensões mais prementes do Movimento. E, contrariamente ao que afirmam muitos analistas, estas identificações têm urna relevância pessoal elevada, marcando profundamente a identidade pessoal e social de cada um. A identificação partidária é, neste contexto de luta pela autonomia administrativa, urna categoria pertinente, crucial e apropriada para definir posições, opções e dilemas ideológicos. 220

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imprevisíveis e poderiam pôr em risco toda a estratégia de negociação institucional do movimento. A verbalização dos radicalismos torna-os visíveis, e os argumentos apresentados podem ser contestados, normalizados e apaziguados. 34 O entrevistado também assume que tal política de exposição e de debate contínuo só tem eficácia e é viável em uma fase de luta, para manter a adesão das pessoas e dar credibilidade à liderança do Movimento. A normalização e institucionalização da vida política, para evitar a instalação do caos, obrigarão a uma suspensão dessa prática democrática de diálogo. O que afasta a liderança do movimento dos outros simpatizantes tem a ver com os meios para atingir o objetivo da elevação a concelho. Enquanto os primeiros adotam uma postura assumidamente política, analisando e avaliando estrategicamente todas as ações, procurando mobilizar os órgãos políticos nos níveis local, regional e nacional, os segundos, com memórias de longas e duras lutas, exigem resultados imediatos, propondo ações drásticas, sobretudo orientadas contra o poder local que os domina. Este descompasso entre as estratégias e os níveis territoriais de pertinência da ação gera ambigüidades, contradições e compromissos que precisam ser constantemente negociados, avaliados e controlados. A relação da liderança do movimento com os simpatizantes, na linha do que sugere Boaventura Sousa Santos (2000: 309), aparece como uma forma negociada de transformação do poder em autoridade partilhada. Os dilemas na escolha entre ação institucionalizada/não institucionalizada, entre ações legais/não legais e entre ações violentas/não violentas com que se confrontam todos os movimentos sociais (McAdam e Tarrow, 2000), restringem-se mais à liderança dos movimentos do que aos seus simpatizantes e, muitas vezes, estes acabam por ultrapassar ou obrigar os líderes a ações mais radicais não-previstas e não-programadas. 14

Em conversa que tive com um dos elementos mais radicais, este comparava a situação de Canas com a do país basco, dizendo explicitamente que era necessária uma prática local análoga à da ETA. Mas, segundo ele, isso teria de ser feito fora das estruturas do movimento e dos mais velhos, que mantinham uma lógica de luta política institucional, ainda ligada aos ideais de negociação. 2 2 1

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2.2. O repertório de ações A partir de 1998 o movimento adotou um conjunto de estratégias de ação que o projetou nacionalmente, e que pareceu uma ruptura com as ações passadas. 35 A modernização do repertório de ações passou pela atenção extrema à mediatização da luta, adotando formas de ação espetaculares. O líder do movimento reconhece que essa mediatização foi a parte mais difícil da luta, porque há sempre o risco das afirmações ou ações serem interpretadas negativamente, prejudicando os objetivos do movimento. O alvo das ações passou a ser, salvo em casos pontuais, os órgãos e as instituições políticas nacionais, sobretudo a Assembléia da Repúblii;:a. O momento mais significativo na intensificação da luta seria o dia 19 de novembro de 1998, data em que estava agendada a discussão da elevação a concelho de mais de 20 localidades. A conferência de líderes no parlamento acabaria por colocar em discussão e votação somente dois novos concelhos, Trofa e Odivelas (jN, 19 de novembro de 1998). Para as pessoas que entrevistei, esse foi o momento mais negativo de todo o processo de luta desde 1975. O alinhamento partidário nesta data era favorável a Canas (todos os partidos da oposição tinham apresentado projetos), como aconteceu com Trofa, em que só o Partido Socialista votou contra. A notícia do não agendamento de Canas foi recebida por aqueles que se encontravam no parlamento com grande emoção. Como disse Carlos Henrique, A gente estava na Assembléia da República há tempos quando subiu, quando estava previsto subir a plenário e quando só subiu Vizela [foi Trofa e não Vizela] e Odivelas e nós não subimos, eu estava lá na Assembléia da República. E quando nos vêm dizer: "eh pá, Canas não subiu!". Eh pá, eram uns a chorar, éramos quatro, estávamos nós quatro, eram uns a chorar e eu gritava, gritava. (... )Nós chorávamos, uns para um lado, outros para outro. Gritávamos, chorávamos, pá. Tomamos conta da Assembléia, gritávamos, era tudo a fugir, tudo a espreitar, era tudo, aquilo foi, foi, foi o momento mais dramático, para mim foi esse (8 de agosto de 2000).

0s responsáveis pelo Movimento em períodos anteriores concentraram as suas ações mais espetaculares na própria localidade {cortes da linha férrea etc.).

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A indignação com o poder político e os seus jogos de estratégia marcaram a partir de então a atitude das pessoas mais diretamente ligadas à luta de Canas. E era uma indignação com a assimetria de poder e o não respeito aos compromissos assumidos. Como disse Carlos Henrique, Isto é chocante, pá. Fazem pouco da gente, e depois, a gente sabendo que eles estão debochando da gente e a gente sem poder fazer nada. Já viu? Julgam-se os maiorais, sobranceiros, são os maiores, são os deputados, são os maiores e vocês agüentem e acabou.

Logo em janeiro de 1999 foi enviada uma petição ao presidente da Assembléia da República 36, exigindo a discussão e votação dos projetos de lei sobre Canas. No dia 2 de fevereiro foi feita uma manifestação junto à Assembléia da República, com 234 cidadãos de Canas, um por cada deputado. 37 No dia 2 de março começou uma greve de fome de 12 homens de Canas nas escadarias da Assembléia da República. Esta seria suspensa no dia seguinte, em seqüência dos apelos de alguns deputados do PSD e da promessa deste partido de agendar a discussão do projeto sobre Canas. No dia 9 de março pessoas de Canas manifestam-se em frente à Assembléia da República com cordas de enforcado ao pescoço. Para esse dia estava marcado o agendamento da discussão dos projetos dos partidos sobre Canas. A comunicação social escrita atribuiu o não agendamento à intervenção direta, pela primeira vez desde que ocupava o cargo, do presidente da Assembléia da República, Almeida Santos (Diário de Notícias, 24 de março de 1999). Estas últimas ações tiveram grande repercussão nos meios de comunicação de âmbito nacional. Significativos foram os cartuns publicados no Petição 150Nll, publicada no Diário da J\jsembléia da República, II Série B, de 13.3.1999, e assinada por mais de quatro mil cidadãos de Canas de Senhorim. Na carta endereçada ao presidente da Assembléia da República que acompanhava a petição, citavam-se a abertura do parlamento à aprovação recente de novos concelhos {Vizela, Trofa e Odivelas) e o esquecimento de Canas, perguntando-se se haveria portugueses de primeira e portugueses de segunda. 1 7Todas as ações eram acompanhadas de notas à imprensa, havendo nesta fase ainda uma fraca repercussão nos meios de comunicação. 16

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Diário de Notícias e no Público. 38 No dia 18 de março, depois de uma sessão de esclarecimento pelo movimento em Canas, populares interromperam a linha férrea da Beira Alta. No dia 28 de março, nas comemorações a Almeida Garrett no Porto com a presença do presidente da República, populares de Canas manifestaram-se pelo concelho. Segundo o relato do jornalista Domingos de Andrade, doJN, Jorge Sampaio não gostou desta ação e apelou à unidade nacional contra as divisões administrativas z o;:: z ::i z ::i ;:: 5 < < < ::i o u :s ~ ::; o ~ CI "' ffo:: Ul Q..

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Em segundo lugar, a Igreja tem desempenhado um papel central. Até mesmo o próprio vocabulário ("apóstolos", "catecismo", "fé") das rotinas discursivas básicas está colorido pelo catolicismo. No pacto de paz, com o qual foi assinado o protocolo do cessar das hostilidades entre os bandos em disputa, há uma combinação expressa entre os motivos religiosos que alimentaram a Constituição de 1991 e as categorias católicas básicas: "solidários da mesma raça, como cristãos irmãos na mesma fé" propugnamos a "mútua harmonia (... )a organização comunitária de progresso, em relação a todos os direitos humanos, às normas legais". Enfim, "decidimos optar pelo caminho civilizado e cristão do diálogo, da convivência, da concórdia, da harmonia, do respeito à individualidade e ao entendimento". Além disso, a Igreja tem sido o único intermediário confiável nos processos de mediação. Dado que nessas "conversas entre cavalheiros" havia uma permanente tentação de não se comportarem como tal (e as acusações mútuas pós-pacto incluem assassinatos, colocar as autoridades contra um líder, calúnias e rumores), a Igreja era a última instância à qual se podia recorrer e, apesar de todas as dificuldades que esse papel implicava,37 tem sabido sempre mantê-lo sem grande desgaste. Além disso, tem oferecido ao processo uma rede de intelectuais e mediadores, os sacerdotes em cada povoação, capazes de formular os termos de convivência cívica por intermédio dos sermões e do uso do "catecismo" e de participar em disputas específicas: Alguns párocos em Muzo e Quípama atuam como mediadores em conflitos entre as clientelas dos diferentes líderes. Essas clientelas são constituídas por todas as pessoas que formam parte do séquito do líder, especialmente as pessoas comuns sem posição nem hierarquia. Neste sentido, os párocos têm representado um apoio e um canal de arejamento das disputas entre famílias

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A linha que separa mediação e justificação por vezes é tênue. "O bispo de Chiquinquirá é um aliado dos líderes; a sua intervenção tem sido ponte e mediação dentro de querelas e de motivos de confrontação até à morte" (Ocampo, Rangel, Sánchez, 1993: 13). A intervenção dos religiosos "não exclui a exaltação da influência dos patronos como figura de autoridade". Estas constatações são sucessivamente corroboradas tanto no terreno quanto em entrevistas com os protagonistas do pacto. O que os líderes estão propondo é a reconstrução - invenção, na verdade, porque não existe qualquer precedente - de uma comunidade tradicional sob a sua direção. À Igreja é atribuído um duplo papel civilizador: por um lado, o de educar as bases sociais em capacidades cívicas e desarmálas, em sentido literal e figurado, e, por outro, o de acompanhar os líderes no seu processo de maturação, de modo a conseguirem resolver os seus dilemas de ação coletiva. Por isso a estrutura social que serve de correlato ao pacto é uma pirâmide: "As autoridades distritais descrevem como uma pirâmide a estrutura dos acordos de paz no ocidente de Boyacá. Na base encontram-se os guaqueros, no centro os comerciantes e no topo os líderes" (Ocampo, Rangel, Sánchez, 1993: 45). Baseando-se nos mesmos slogans antipolíticos e cívicos predominantes entre a opinião pública na década de 90, subordinaram também a classe política tradicional, apropriando-se do papel de mediação ou pondo-o ao seu serviço. Os líderes nomeiam candidatos a presidentes de Câmara e a vereadores e os apóiam; são retribuídos com lealdade e deferência. Se não se apresentam muitos casos de intimidação direta de autoridades municipais, isto talvez se deva ao fato de a desobediência aos líderes ser muito pouco freqüente (embora isso não signifique que seja inexistente). Porém, o grau de influência dos líderes e a sua capacidade de subordinar os intermediários políticos não se limita ao âmbito municipal.

partidárias de bandos contrários em épocas de guerra (Ocampo, Rangel, Sánchez, 1993: 22). 38

J7Cada líder desejaria que a Igreja fosse garantia imparcial do acordo mas, ao mesmo tempo, que favorecesse os seus interesses particulares. 18 Nos bairros com influência miliciana em Medellín, os sacerdotes constituíram também uma rede de enorme valor para as atividades de mediação e para a conformação de uma visão de Mmeio ambiente desejável". 278

No decurso de uma das nossas visitas conhecemos um deputado e um representante na Câmara que se encontravam no interior das instalações da mina de Quípama, presumivelmente trabalhando como guaqueros; a sua dependência dos líderes é mais do que evidente (Ocampo, Rangel, Sánchez, 1993: 28).

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Contudo, à medida que o pacto foi se desenvolvendo, a concorrência política aumentou e alguns líderes tiveram de encarar esmagadoras e inesperadas derrotas eleitorais. Os intermediários políticos julgam que a paz tem produzido democracia. Um dos entrevistados exprime-o deste modo: quando estávamos em guerra [o acesso à presidência das Câmaras] era restrito e, por diversas vezes os primeiros presidentes foram [candidatos] únicos; os dois primeiros presidentes por eleição popular que tivemos na vila foram candidatos únicos. Nessas eleições não houve mais candidatos. Eram evidentemente candidatos que nos eram impostos, mas depois tem havido mais democracia e tem havido mais candidatos às eleições (entrevista pessoal).

Trata-se, obviamente, de uma estranha democracia; contudo, a abertura parece ter sido perfeitamente real, e isto ressalta o papel ambíguo do Estado. Na medida em que a paz obteve resultados reais - diminuição de homicídios - , o Estado não gostaria de desestabilizar o pacto; portanto, não intervém e olha para outro lado 39, mas ao mesmo tempo permite que o Governador Civil e os comandantes do Exército e da polícia estejam presentes no Comitê de Normalização. Isso não deixa de ser curioso, visto ter sido política oficial das Forças Armadas nos últimos dez anos a recusa de participar de negociações com a guerrilha, argumentando sempre que não tinham nada a falar com grupos fora da lei. 40 Porém, as Forças Armadas em Boyacá têm oscilado entre a aceitação do pacto e a manifestação de inquietação em face do poder de força armada e as atividades ilegais que os "esmeraldeiros" mantêm, guardando um completo silêncio acerca dos seus vínculos com as atividades paramilitares. 41 Os "esmeraldeiros", por sua vez, consideram-se defensores da legalidade, mas continuam a ver no governo central o seu adversário, pelo

no que produz estranheza e amargura entre os "esmeraldeiros". Nem para a assinatura do pacto, nem para a celebração do décimo aniversário da sua entrada em vigor estiveram presentes os respectivos presidentes da República, que se fizeram representar por delegações ou saudações pouco entusiasmadas, evitando, assim, comprometerem-se. 40 Estiveram também presentes nas conversações com os milicianos. 41 Assunto que ficou exclusivamente reservado para o Ministério Público.

menos enquanto as suas duas reivindicações básicas não forem resolvidas: pedidos de caráter regional (que, em certa medida, o governo estaria disposto a aceitar) e intangibilidade judicial para os líderes (impossível de outorgar, entre outras razões, pelas repercussões internacionais que acarretaria). Entretanto, sob orientação de Carranza, a atividade das esmeraldas tem sido internacionalizada com sucesso, o que prova que a restauração tradicionalista e a globalização não só podem conviver como inclusive por vezes uma é o requisito da outra, como já foi adequadamente dito (Ocampo, Rangel, Sánchez, 1993). A condição para que tudo isto possa ser mantido é a politização da guerra e da paz entre "esmeraldeiros". Alguns dos motivos dos pactos de paz mais diretamente políticos - "perdão e esquecimento", "pôr uma pedra sobre o assunto", pedidos regionais e sociais, respeito estrito da lei no período pós-pacto, garantias - foram diretamente importados de outros processos e nota-se que, por vezes, a imitação tem sido verdadeiramente meticulosa. Não obstante, o papel legitimador mais importante corresponde mais uma vez ao civismo tradicionalista: apaziguar, estabelecer padrões de conduta e conduzir bases sociais com hábitos violentos (porte de armas, por exemplo) e pouco atentas ao bem comum. Associada ao bom comportamento está a promessa de uma nova vida, muito melhor. Por isso, não se pode achar estranho que o pacto tenha sido celebrado em cada povoação como uma verdadeira festa cívica - financiada basicamente ·pelo líder dominante - , com discursos que proclamavam o começo de uma nova forma de regulação social. Porém, não há que esquecer que em nome do bem comum são estigmatizados, afastados ou, mesmo eliminados pequenos gatunos, transgressores, adversários políticos e pessoais: todos inimigos da ordem. Muito embora as ferramentas pareçam perfeitamente funcionais, esta é uma impressão errada. Algumas pessoas são capazes de olhar criticamente e denunciar esta ordem piramidal. Por palavras simples e diretas, fazem ouvir a voz da vítima, não a do agressor: Digníssimo Senhor Arcebispo da Diocese de Chiquinquirá, para saudar Vossa Excelência com todo o respeito. Eu, Pedro Pérez, [escrevo] com o intuito 28 1

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de lhe dar conhecimento das seguintes anomalias que têm açoitado a região de Muzo. O grupo de autodefesa ou seja lá como o chamam ... porque as autoridades são sabedoras de todos esses crimes que se apresentam muito silenciosos, porque a radiofonia não diz nada deles. Apanham as pessoas e levam-nas durante a noite para o rio Minero( ... ), ficam ali fritos, baleados, roubam-lhes os documentos (... ). Não é possível que não haja justiça, porque cá para mim uma pessoa que mata outra e lhe tira o que tiver é um insociável, não é como eles (acham), que o insociável é o morto (Carta, arquivo pessoal). 42

5. CONCLUSÕES

Os dois casos que apresentamos são, em muitos sentidos, abissalmente diferentes. Porém, têm algo em comum: o "lamarckianismo invertido". A necessidade dificulta, em vez de facilitar, a aparição de um todo organizado. Quanto maior for o número de ciclos do movimento pendular, mais dificuldades há para se pensar fora desse movimento. Isto não é casual e remete-nos à importância do caso colombiano. Na medida em que a exportação da democracia formal para países do Terceiro Mundo é uma das características mais relevantes da globalização política, a tensão entre macroformas institucionais estáveis e dinâmicas violentas, com o resultante "atrativo" pendular, poderia ser generalizado. Para os analistas que denunciavam os males do país como resul~ado do peso da pré-modernidade, a ironia poderia consistir em que a experiência colombiana aponta mais para o futuro do capitalismo mundial, pelo menos nos territórios menos desenvolvidos, que para o seu passado. 43 É importante ressaltar que os pactos aqui descritos não foram simples legitimações ou manobras puramente estratégicas. Todas as partes envolvidas cederam nas suas posições de força, e o resultado foi que, na verdade, os acordos salvaram muitas vidas. Contudo, os custos são também evidentes. 42

Foram ajustadas a redação e a ortografia. idéia é apresentada e desenvolvida em pormenor por Gutiérrez (1997).

41 Esta

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Os atores armados em ambos os casos viram a oportunidade de continuar a fazer o que vinham fazendo, embora sob novas formas e sob a aura de legalidade que os símbolos e o aval do Estado conferem. No que se refere às opções para o desenvolvimento democrático, ambos os casos - e sobretudo o caso das milícias - apresentam um caráter includente, mas à custa dos direitos individuais de cada membro das comunidades que se pretende incluir. As possibilidades de que, a partir daí, se diga qualquer coisa sobre emancipação democrática são reduzidas. Em primeiro lugar, não há uma linguagem adequada para a formulação de propostas nacionais, na medida em que se apresentam solicitações inaceitáveis (por exemplo, intangibilidade judicial dos atores armados para delitos como o homicídio) para um Estado de direito. Em outras palavras, as possibilidades de sucesso destas ditaduras territoriais são inversamente proporcionais às da constituição de um marco nacional viável na ordem mundial. O seu correlato sociotécnico é a incapacidade dos discursos armados de propor políticas universalistas. Os seus discursos, recomendações, manuais e doutrinas dizem algo - muito, na verdade-, para as suas bases sociais, mas perdem sentido quando se amplia a escala de enunciação. Em segundo lugar, a sua sincronia com a mundialização é puramente oportunista, no sentido em que se utilizam os recursos oferecidos por esta para se fecharem territorialmente em torno da tradição. Em terceiro lugar, a mistura em todas as dimensões - via imitação, aliança, cooptação, representação (no sentido teatral, como no caso de atores criminais que adotam papéis políticos e vice-versa) - é tão densa que se torna difícil diferenciar "quem é quem" e "o que é o quê". Como dissemos no início do capítulo, quanto mais sofisticado é o exercício da diferenciação local, mais complicado se torna no plano nacional. Sublinhamos que tal experiência é e tem sido criticada com grande clareza em todos os setores; o "lamarckianismo invertido" refere-se apenas à capacidade de propor. As críticas, que não se reduzem apenas ao âmbito acadêmico, têm-se centrado na denúncia de um certo "modelo colombiano", um sistema complexo de conflitos interdependentes que tem propriedades emergentes muito visíveis (e desagradáveis): um Estado terrorista por delegação - uma forma política que rapidamente tem adqui28 3

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rido proeminência - com contínuas oscilações regionais entre a ditadura territorial e a guerra, tudo isto no meio de "um modelo selvagem do desenvolvimento que nega os direitos" (García, 1995). Em muitas partes do mundo, esta cantilena pode soar cada vez mais familiar.

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Diferenças e construções identitárias

CAPíruLo 6

Que trabalhadores, que mulheres, que , interesses? Raça, classe e gênero na Africa do Sul do pós-apartheid1 Shamim Meer 2

'Gostaria de agradecer ao African Gender lnstitute's Associate Programme da Universidade da Cidade do Cabo por ter providenciado a base enquanto trabalhei neste capítulo. Os meus agradecimentos são endereçados, igualmente, a todos os que comentaram os primeiros esboços deste capítulo: Boaventura de Sousa Santos, Sakhela Buhlungu, Jane Bennet, Amina Mama, Michelle Friedman, Sisonke Msimang, Ari Sitas, Fatima Meer, Anne Major, Roshilla Naicker, Shireen Hassim. 2 Tradução de Jorge Almeida. 2 9 1

.,.

·~

Introdução

O título deste capítulo decorre de duas questões que abordei em artigo anterior. 3 Nele, procurei avaliar os desafios que se colocam às ONGs e aos movimentos sociais cinco anos após a eleição do primeiro governo democrático. Constatei que muitos dos trabalhadores que fundaram os sindicatos militantes, durante as décadas de 70 e 80, e que mais tarde formaram o Congresso dos Sindicatos Sul-Africanos (Cosatu), deixaram de ser sindicalistas. 4 Uma grande parte desses trabalhadores tem perdido os seus empregos nas últimas décadas, devido à eliminação de postos de trabalho e, na sua maioria, regressaram às áreas rurais. A nova indústria exige mão-de-obra qualificada e um menor número de trabalhadores, portanto seu trabalho, majoritariamente não qualificado, deixou de ter procura. Assim, apesar do número de trabalhadores membros do Cosatu não ter sofrido grandes alterações, esse número é mantido pela entrada de novos membros nos sindicatos, majoritariamente de trabalhadores do setor de serviços, provenientes de setores como o setor público ou os bancos. Este fato é relevante por nos indicar que os trabalhadores militantes que construíram um movimento sindical forte foram vítimas do sistema capitalista. A questão é saber como seus interesses poderiam ser defendidos, ou se isso é possível, na África do Sul de hoje. A segunda questão que abordei nesse artigo dizia respeito às mulheres. Verifiquei que na sociedade sul-africana, no período pós-apartheid, um dos grupos que parece ter sido bem-sucedido foi o das mulheres. Contudo, se em uma análise mais pormenorizada estudarmos as mulheres que saíram vi1 "The

demobilization of civil society: struggling with new questions in development", Update, 3(1), 1999. 4 0s trabalhadores que iniciaram os sindicatos militantes eram, predominantemente, trabalhadores negros. 293

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toriosas, torna·se evidente que não pertencem à classe trabalhadora negra ou ao meio rural mais pobre. Foram predominantemente mulheres brancas que conseguiram maior sucesso, apoiadas nas estratégias de fortalecimento que visavam tornar proporcional o número de mulheres trabalhadoras nas instituições dos setores público e privado. o significado destas duas questões, tendo em conta uma análise do modo como os habitantes rurais estão isolados na África do Sul do pós-apartheid, demonstra que os pontos sociais de ruptura da antiga África do Sul permanecem mais ou menos intactos. Alguns negros e mulheres conseguiram encontrar um lugar na elite, mas os interesses da maioria dos cidadãos sul-africanos, homens e mulheres sem qualificação e pobres, dos meios rurais e urbanos, continuam sem uma defesa adequada. Esta situação coloca questões acerca do papel do Estado no período pós-apartheid em relação à compensação dos desequilíbrios criados pelo capitalismo e o colonialismo durante o período do apartheid. Levanta também uma questão relativa ao papel do Congresso Nacional Africano (CNA) que, apesar de ter se comprometido a defender as necessidades da maioria, parece ter sido malsucedido nessa tarefa. Esta situação coloca ainda questões sobre os movimentos sociais que lutaram pelo fim do apartheid, questões ligadas ao destino desses movimentos sociais e dos indivíduos que ajudaram a construí-los e desenvolvê-los. Embora a luta nacional pela democracia privilegiasse a reversão dos efeitos da discriminação racial, tal não se traduziu na defesa dos interesses da maioria da população negra. Um lobby feminino conseguiu chamar a atenção para questões relacionadas com o sexo durante a fase da transição. Todavia, na fase de democratização, os benefícios para as mulheres ainda são definidos pelos privilégios de raça e de classe que trouxeram do tempo do apartheid. As lutas dos trabalhadores organizados não lhes permitiram manter os seus empregos devido à supressão de postos de trabalho e ao florescimento do trabalho temporário. Tudo isto acontece devido às formas como os sistemas de exploração e opressão baseados no sexo, na classe e na raça mteragem com o status quo, sustentando-o. É necessário levar em consideração as formas pelas quais raça, sexo e classe social afetam o acesso à cidadania e o próprio processo de democratização. A maioria das análises sobre a África do Sul evidencia os problemas relacio294

nados às dinâmicas de raça ou classe, ou ambas, e ignora a questão do sexo. Desta forma, as discussões sobre transições, cidadania e democracia partem de pressupostos errados por não considerarem as experiências diferenciadas de homens e mulheres em relação à raça, à classe e à cidadania. O abrangente programa do novo governo não coloca a erradicação da pobreza ou da enorme desigualdade existente na sociedade sul-africana no centro da sua agenda. Apesar da retórica que expressa uma preocupação com os pobres e com o fim das injustiças criadas pelo apartheid, após sete anos de democracia as políticas do governo continuam a favorecer, sobremaneira, os historicamente privilegiados. A estratégia global do programa do governo também não tem providenciado benefícios significativos para as mulheres sul-africanas. A conversão do CNA ao neoliberalismo e a adesão ao Consenso de Washington representam melhorias para poucos e vidas persistentemente árduas para a maioria. Os antigos bantustões continuam a ser as regiões mais atingidas pela pobreza do país e, conjuntamente com os bairros degradados da periferia urbana, continuam a reproduzir o apartheid. O Estado nomeia comissões dedicadas à erradicação da pobreza e a outras questões - como a regeneração moral, por exemplo - , mas estas comissões funcionam de acordo com a lógica defeituosa do capitalismo neoliberal e não nos permitem retificar as desigualdades no país. Há poucos fatos que nos transmitam a idéia de que a África do Sul esteja se afastando da sua posição de uma das sociedades mais desiguais do mundo. A pobreza e a desigualdade assumem uma forma racial, sexual e espacial. Será que os interesses vigentes durante o apartheid são aproximadamente os mesmos que estão sendo defendidos hoje? Estarão ainda em vigor as anteriores concepções de cidadania? O CNA, um partido claramente guiado pelos sonhos expressos na Carta das Liberdades e, durante a campanha eleitoral de 1994, pelas promessas do Programa de Reconstrução e Desenvolvimento, parece ter trocado estes sonhos e promessas pela austeridade sob os auspícios da sua política macroeconômica Growth Employment and Redistribution (Gear), designada como a política doméstica de ajuste estrutural da África do Sul. A esperança para o futuro reside na emergência de movimentos e/ou grupos sociais que apresentem reivindicações e responsabilizem o Estado. Contudo, 295

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o seu advento parece ser lento. Os movimentos sociais nascidos nos anos 80 e no início dos anos 90 parecem ter desaparecido ou não ter uma liderança ou objetivo. No momento presente, as questões mais prementes são as seguintes: o que terá acontecido àquela que em tempos foi uma sociedade civil forte? Quais serão as lacunas e as oportunidades que permitirão mudar a agenda do governo? Quais as ações que contêm o potencial de mudança em favor dos interesses das mulheres trabalhadoras e pobres dos meios rurais? O presente capítulo analisa algumas das explicações existentes para compreender o contexto atual - explicações que realçam a transição como um pacto de elites, que lidou com questões políticas mas que evitou questões econômicas fundamentais. Defende também a idéia de que as organizaçõesmovimento foram capazes de fazer exigências e de vê-las satisfeitas durante a transição, especialmente como resultado da sua posição na Aliança Tripartitge composta por CNA, Cosatu e South African Communist Party (SACP). 5 Entre as exigências satisfeitas incluem-se o Programa de Reconstrução e Desenvolvimento (PRD), a política apresentada pelo CNA em vésperas de eleições; as instituições como a Commission on Gender Equality (CGE) 6 e o Office on the Status of Women (OSW)7, cujo principal objetivo é aprofundar os direitos das mulheres; e o número representativo de líderes do Cosatu, de membros do SACP e de mulheres na lista de deputados do CNA. Todavia, apesar destes progressos, as organizações de mulheres e os movimentos de trabalhadoresª ainda não foram capazes de manter a sua influência, o que levou ao abandono do PRD, por parte do governo, bem como à adoção de políticas econômicas que favorecem os ricos e poderosos. Hoje, uma questão crucial é a de saber como as organizações e grupos, representantes dos interesses de uma maioria que continua a ser economica5

Partido Comunista Sul-Africano. (N. do T.) para a Igualdade entre Sexos. (N. do T.) 7Departamento para o Status das Mulheres. (N. do T.) 8Ao citar estes movimentos não pretendo sugerir que a categoria "trabalhadores" não inclui as mulheres - pelo contrário, refiro-me a organizações que foram constituídas para defender estes interesses específicos. As mulheres nos sindicatos organizaram-se para tornar os sindicatos mais receptivos aos seus interesses, obtendo diversos resultados. Embora com vitórias em determinadas áreas, as mulheres nos sindicatos ainda não conseguiram ganhar a luta por uma quota que garanta a sua representação no comitê executivo nacional dos sindicatos.

6Comissão

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mente marginalizada, deveriam se colocar em relação ao Estado. Esta questão torna-se bastante incômoda quando sabemos que os indivíduos que integram o atual aparelho estatal foram recrutados nessas mesmas organizações, sendo inclusive, em muitos casos, os seus fundadores. Em outras palavras, muitas pessoas dentro do Estado são as mesmas que construíram as organizações-movimento. A manutenção de laços entre as organizações-movimento e as instituições do Estado pós-apartheid, embora essencial, tem sido negligenciada. Da mesma forma, a questão de como tais organizações podem ser mantidas também foi ignorada. Este capítulo postula que o estabelecimento de relações com instituições estatais e com o Estado como método para corrigir as desigualdades sociais, não foi suficientemente abordado por estas organizações e movimentos. Em vez disso, pressupôs-se, tendo por base o seu passado histórico de movimento de libertação nacional, que o partido CNA iria automaticamente dirigir os seus esforços para resolução daqueles problemas. O capítulo aponta igualmente para as deficiências conceituais e políticas dos acadêmicos, dos teóricos de esquerda, dos políticos e das organizações-movimento resultantes de considerações inadequadas sobre o modo como os sistemas de raça, classe e gênero se combinam de forma a perpetuar a exclusão econômica da grande maioria dos sul-africanos. O capítulo enfatiza ainda a importância destas falhas tendo em conta as ligações existentes entre a teoria e prática.

1. A CRISE DA POBREZA E DA DESIGUALDADE

O capitalismo do apartheid foi responsável pelas alarmantes taxas de pobreza e desigualdade verificadas na África do Sul. Como o ministro sem pasta, Jay Naidoo, responsável pelo PRD, afirmou ao jornal Star em março de 1996, 75% da população sul-africana negra vivia em condições de Terceiro Mundo, com um nível de vida ligeiramente superior ao do Congo, enquanto 12% de população sul-africana branca gozava um padrão de vida semelhante ao dos canadenses. No que diz respeito à distribuição de rendimentos, terras e água, a África do Sul era uma das sociedades mais desiguais do mundo (Lipton et ai., 1996). 297

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Um relatório sobre os indicadores-chave de pobreza na África do Sul, preparado para o gabinete do PRD (PRD, 1995), revelou a extensão da pobreza (medida em termos de rendimento} na África do Sul, bem como a natureza racial, espacial e sexual dessa pobreza. Em geral, o relatório demonstrou que 53% da população sul-africana era classificada como pobre, vivendo com elevadas taxas de desemprego, com fome e mal nutrida, sendo incapaz de pagar ou não tendo acesso a cuidados de saúde e a serviços básicos, e correndo o risco de se tornar sem abrigo. Do ponto de vista racial, 65% de todos os africanos eram pobres e, destes, cerca de 95% eram negros, 5% eram mestiços e menos de 1% indianos ou brancos. Eram pobres 33% de todos os mestiços, 2,5% de todos os indianos e 0,7% de todos os brancos. A pobreza era maior nas áreas rurais e, dentro destas, nos antigos bantustões. Assim, aproximadamente dois terços dos pobres do país viviam em Eastern Cape, Kwa Zulu Natal e Northern Province. O citado estudo não considerou as diferenças de acesso a renda entre homens e mulheres em cada unidade doméstica e, por isso, é incapaz de diferenciar o grau de pobreza por sexo, e em particular a situação das mulheres. Mencionou, todavia, o sexo do chefe de família e verificou que as famílias lideradas por mulheres tinham uma taxa de pobreza 50% superior à das famílias lideradas por homens. O estudo constatou que menos de um terço dos africanos tinha eletricidade, água canalizada em casa, sanitários com caixa de descarga e coleta de lixo. As maiores preocupações dos pobres eram o emprego, a água canalizada, a habitação, a ajuda alimentar, a eletricidade e as escolas, nesta ordem. Para os pobres do meio rural, as clínicas e as estradas eram questões prioritárias adicionais. Cinco anos após o advento do governo pós-apartheid, havia poucas indicações de que a pobreza e as desigualdades estivessem sendo aliviadas ou reduzidas, ou estivessem sendo tomadas providências significativas no sentido da sua erradicação. Em vez disso, como diz Hemson (1999), havia sinais de um crescente distanciamento entre ricos e pobres, com o declínio da renda rural e com a crescente incapacidade dos pobres em pagar os serviços que eram fornecidos. Por exemplo, um grande número dos projetos de fornecimento de água no meio rural deixou de funcionar meses após estarem terminados, assim como os serviços de eletricidade ou de telefone foram desligados pouco depois de terem sido instalados. As despesas estatais com a saúde foram drastica-

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mente reduzidas, dificultando a implementação de novas políticas de saúde destinadas a beneficiar os pobres. Aos subsídios para crianças, que visavam beneficiar 30% das crianças mais pobres, conseguiram atingir somente 0,8% delas. Apenas 0,06% da terra arável foi transferida para as comunidades negras (Hemson, 1999). Hoje, o fornecimento de água a comunidades pobres e a escolas está constantemente ameaçado. Grande parcela é mesmo suspensa devido à crescente pobreza e desemprego de algumas comunidades que impedem o pagamento. Estas comunidades organizam manifestações, gritando em protesto: "Acabem com o novo apartheid - os ricos contra os pobres" (canto em concentração em Hammersdale, Kwa Zulu Natal - 29 de abril de 2001). , Em vez de considerar a pobreza e a desigualdade preocupações centrais, a Africa do Sul de hoje curva-se às pressões globais. Como Sitas (1999: 6) argumenta, "em vez de colocarmos os pobres, rurais e urbanos, no centro da nossa agenda e de encorajarmos o desenvolvimento do povo e dos pobres, s~mos arrastados para a lógica global das demissões, do trabalho temporário, dos subcontratos e da marginalização" (Sitas, 1999: 6). Desta forma, podemos dizer que a África do Sul não conseguiu ainda atingir a mais estreita noção de emancipação explorada por Klug (2002), isto é, não conseguiu a simples libertação da opressão de pobreza estrutural. Estamos em uma situação em que as chamadas duas nações do primeiro e terceiro mundo se mantêm; em que as taxas crescentes de criminalidade criam cidades do primeiro mundo, protegidas por muralhas e empresas paramilitares de segurança; em que a Africa do Sul realizou o maior transporte aéreo de aves durante a recente saga sobre a problemática dos pingüins do Cabo; em que um poderoso empresário da Cidade do Cabo resolve trazer divas da ópera para descobrir talentos nos Cape Flats, entre as quais Kayelitsha, enquanto as guerras dos táxis e dos ônibus continuam a ceifar vidas.

2. COMPREENDENDO A TRANSIÇÃO -

PACTOS DE ELITES E

ORGANIZAÇÕES-MOVIMENTO

A atual situação na África do Sul deve ser entendida considerando a natureza da transição e as escolhas políticas e econômicas feitas pelo governo.

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Paralelamente, o papel das organizações-movimento deve ser compreendido tanto durante o período de transição quanto no presente. Como a maioria dos acordos negociados, o acordo sul-africano assumiu a forma de um pacto entre elites com interesses opostos. Como sucedeu com as transições na América do Norte e da Europa do Leste Uaquette e Wolchik, 1998), os movimentos sociais tomaram parte ativa na luta, mas as decisões cruciais resultaram de negociações entre as elites. O acordo exigia que o consenso fosse atingido pelos diversos partidos políticos e em especial pelo CNA e pelo Partido Nacional, bem como pelos representantes da economia nacional. As elites tinham de fazer um esforço especial para aprender sobre os objetivos, filosofias e discursos elementares de uns e outros, e tiveram de começar a fazer concessões - sobretudo retóricas, mas também, até certo ponto, concretas - de modo a fomentar a confiança entre partes em negociação que, em tempos, defenderam interesses fortemente opostos. Gradualmente, e abrangendo muitos setores da sociedade, foi imposta uma espécie de "harmonia forçada" (Bond, 2000: 56). O consenso obtido refletiu uma posição intermediária, marginalizando os elementos extremistas de ambos os lados. As partes envolvidas tiveram de mudar significativamente as suas posições anteriores de modo a alcançar esta posição intermediária que permitisse o consenso. O consenso negociado baseou-se na reestruturação da esfera política, deixando as estruturas de poder econômico relativamente intactas. Marais (1998) diz que isto ia ao encontro da posição do CNA de atribuir maior ênfase ao político do que ao econômico. Há também uma tendência geral para que os acordos negociados estruturem em termos políticos as crises sociais mais amplas. Como nota Carlos Villas, as transições não se projetam na esfera econômica nem estabelecem a base de uma mudança substancial no grau de acesso de grupos subordinados aos recursos socioeconômicos - pela distribuição da renda, a criação de empregos, a melhoria das condições de vida etc. (citado por Nzimande in Marais 1998: 90).

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Deste modo, o CNA negociou o acordo sem que tivesse um programa claro de desmonte da sociedade das "duas nações" - uma nação empobrecida, com condições e oportunidades de vida equivalentes às dos países mais pobres do mundo, e uma outra nação com condições semelhante às dos países ocidentais. Os movimentos sociais foram capazes de pressionar e obter vitórias, em especial a partir do momento em que o CNA se aliou ao Cosatu e ao SACP. O Cosatu e as organizações cívicas, sob a alçada da South African National Civics Organisation (Sanco), iniciaram e desenvolveram o PRD de forma a suprir as falhas da política econômica do CNA Nisto se converteu o programa estratégico e o manifesto eleitoral do CNA, antes mesmo das eleições de 1994. Durante o período de negociação as organizações de mulheres agruparamse na Women's National Coalition (WNC) 9, e foram as primeiras a chamar atenção para as necessidades específicas das mulheres. A Women's Leagueto do CNA liderou a formação da WNC, que reunia as organizações de mulheres dos partidos envolvidos nas negociações e outras organizações de mulheres, como a Young Women's Christian Association 11 (YWCA), as mulheres da igreja, as mulheres afrikaans e as mulheres judias. A influência do lobby das mulheres dentro da Aliança Tripartite (do CNA, do Cosatu e do SACP), assim como por intermédio da WNC, pode ser observada, por exemplo, pela preocupação expressa pelo PRD em relação às mulheres, em especial dentro dos grupos rurais e muito pobres da sociedade sul-africana. Essa influência foi patente na capacidade do lobby de evitar a adoção de uma cláusula na Constituição nacional que ameaçava isentar os líderes tradicionais da cláusula de igualdade, cláusula que salvaguarda a igualdade entre os sexos (Meintjes, 1996). Contudo, provavelmente mais poderosa que a influência dos movimentos sociais dos pobres e da classe trabalhadora foi a influência dos tradicionais centros do poder do capital, dos agricultores brancos fortemente organizados e dos chefes tradicionais, quer na constituição, quer na produção de leis. 9Coligação

Nacional de Mulheres. (N. do T.) das Mulheres. (N. do T.) 11Associação Cristã de Jovens Mulheres. (N. do T.)

16Liga

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No que diz respeito aos líderes tradicionais, a constituição sul-africana reconhece o papel de liderança social tradicional e o direito consuetudinário, ainda que subordinados aos limites impostos pelos direitos fundamentais constitucionais e à igualdade entre os sexos (Klug, 2002). Todavia, o papel dos líderes tradicionais permanece uma "área cinzenta" que não foi tratada adequadamente, quer no âmbito da Constituição, quer no âmbito da administração pública local, o que contribuiu para lutas contínuas entre os líderes e o Estado. No decurso das eleições de 2000 para o governo local, os líderes tradicionais atrasaram o processo eleitoral ao protestarem contra a nova divisão administrativa do território, que consideram uma tentativa de diminuir os seus poderes. Para muitos habitantes dos meios rurais que continuam encurralados nos territórios dos antigos bantustões (na sua maioria mulheres, devido à contínua emigração masculina para as cidades), a realidade continua a sujeitá-los a sistemas tradicionais em que o acesso das mulheres à terra e ao poder continua a ser efetuado via homens. Estes cidadãos da África do Sul estão, assim, privados dos seus direitos democráticos. Mamdani (1998) argumenta que a democratização, no contexto africano, não pode ser encarada apenas como uma simples reforma da sociedade civil, devendo incluir o desmantelamento do sistema jurídico, que é legitimado pelo direito consuetudinário. Este autor diz que a preocupação, nos estudos africanos e sul-africanos, com o modo de produção, fez com que estes ignorassem tanto o sistema jurídico estabelecido quanto as especificidades que o poder colonial assumiu na África; defende ainda que se tem fracassado na tentativa de questionar as formas de poder que dominam as populações rurais. A atenção têm sido centrada nos direitos dos quais os povos colonizados foram excluídos, com base na raça. Esta perspectiva excluiu a consideração do sistema consuetudinário pelo qual as populações rurais eram governadas. A atenção dos movimentos foi, portanto, distorcida por uma perspectiva urbana. Mamdani diz também que "o deslumbramento com a noção de sociedade civil esconde as verdadeiras formas de poder pelas quais as populações rurais são governadas" e que, "sem uma reforma do poder local, a democratização será superficial mas também explosiva" (1998: 288).

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3. O PROGRAMA DE RECONSTRUÇÃO DE DESENVOLVIMENTO (PRD)

O Programa de Reconstrução de Desenvolvimento (PRD) tinha como preocupação central a satisfação das necessidades básicas relativas a habitação, eletricidade, emprego, redistribuição de terra agrícola, água potável e saneamento, qualidade ambiental, direitos reprodutivos para as mulheres, cuidados de saúde básicos universais, bem-estar social e educação. O PRD procurou conjugar a satisfação de necessidades básicas com o crescimento econômico. O documento do PRD dizia que o principal catalisador para atingir os objetivos seria um Estado ativo, que tendesse a favorecer os interesses da maioria desfavorecida, e uma sociedade civil forte. Contudo, paralelamente ao enfraquecimento dos objetivos do acordo político negociado, também o PRD viria a ser debilitado. Como diz Marais, "o paradigma da transição (inclusão, conciliação, consenso, estabilidade) também era aplicado ao PRD, um desenvolvimento que não é surpreendente" (1998: 177). Quando se converteu em programa de governo, o PRD perdeu o seu potencial transformador. Em abril de 1996, o gabinete do PRD foi extinto e as suas competências foram transferidas para os gabinetes do vice-presidente e do ministro das finanças, com a justificativa de que 0 PRD fora integrado com sucesso nas funções destes departamentos.

4. ADOTANDO O GEAR

Outra mudança, que se afasta de qualquer noção de redistribuição, ocorreu em junho 1996, quando o governo divulgou o seu plano macroeconômico denominado Growth Employment and Redistribution (Gear). Em vez de centrar atenção na luta contra a pobreza e nos esforços necessários para suprir as necessidades da maioria negra sul-africana, esta política tem como objetivos principais consolidar a confiança na economia, melhorar as condições para a expansão do setor privado e liberalizar a economia. O Gear representa a adoção de uma abordagem que concentra os benefícios no topo do sistema social com a justificativa de que eles acabarão se repercutindo positivamente na base (trickle down approach). Não promete um alívio da 303

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pobreza ou das desigualdades, não sendo assim do interesse dos homens e mulheres pobres. É preciso dizer-se que, embora o desenvolvimento econômico seja necessário, o desenvolvimento, em si, não reduz a pobreza nem ameniza as desigualdades sociais. Bond (2000) diz que as políticas orientadas para o mercado nunca, em nenhum lugar do mundo, conseguiram grandes avanços em áreas de desenvolvimento. O Gear falhou claramente em atingir seus próprios objetivos. O crescimento econômico em 1996 ficou dez pontos percentuais abaixo do que o Gear havia previsto; 71.000 postos de trabalho foram perdidos - um número muito distante dos 126.000 novos postos de trabalho previstos para junho daquele ano. Em meados de 1994, o governo começou a implementar o General Agreement on Tariffs and Trade (Gatt). As conseqüências do Gatt, como dizem Adelzadeh e Padayachee (in Marais 1998), seriam a erosão das leis nacionais de regulação econômica e social (desregulação), a promoção de programas de privatização, o enfraquecimento dos sindicatos e a redução dos direitos dos trabalhadores. Nem Bond (2000) nem Marais (1998) consideraram os impactos diferenciados do Gear ou do Gatt sobre as mulheres e sobre os homens. A produção acadêmica feminista acerca dos programas de ajuste estrutural em outros contextos evidenciou, por exemplo, a forma como os encargos das mulheres com a reprodução aumentam como resultado da redução das despesas sociais por parte do Estado. Na África do Sul, um dos efeitos da desregulação foi o fechamento de confecções e indústrias têxteis, o que tem afetado o emprego de mulheres, uma vez que estas constituem a maioria da força de trabalho nesses setores. Marais (1998) formula a acusação de que, desde 1994, a política governamental tem sido consistente, já que até mesmo o PRD se baseava na liberalização, nos mercados livres, na promoção dos negócios e no aumento da confiança dos investidores. Na sua perspectiva, o conceito de necessidades básicas e o papel da sociedade civil continuaram a ser preocupações de retórica política. Logo após a emergência do novo governo, tornou-se claro qual a classe cujos interesses seriam privilegiados no novo sistema. As organizações de massa pareciam já não ser ouvidas. Mandela, no 1° de maio de 1994, como

Para procurar entender a questão dos movimentos sociais é importante analisar a relação Estado/sociedade e a forma como as organizações-movimento são moldadas pelo Estado ao mesmo tempo que têm impacto sobre ele. Como destaca Alvarez (1990), os discursos e as estratégias políticas dos movimentos são respostas às políticas estatais. Ao mesmo tempo, as ações dos movimentos exercem influência sobre os discursos e políticas públicas do Estado. A relação entre Estados e movimentos é, pois, dinâmica e dialética. No contexto sul-africano, as respostas dos movimentos foram moldadas pela repressão do Estado capitalista, colonial e do apartheid; e o Estado foi pressionado por estes movimentos em vários níveis. A história da resistência na África do Sul tem sido marcada por períodos de resistência política aberta, bem como por períodos de aparente inatividade durante os quais as organizações-movimento operaram clandestinamente. A resistência, assim como os relatos de resistência, são também moldados pelas ideologias dominantes acerca do sexo. Assim, enquanto os relatos históricos sobre resistência ao apartheid denunciam a origem tanto racial quanto social dos movimentos e das lutas, a maioria das análises não tem abordado as questões de subordinação sexual, tratando indiferenciadamente os vários atores sociais das organizações de resistência. Contudo, é óbvio que a repressão estatal afetou homens e mulheres de modo diferente. As mulheres envolveram-se na resistência política contra o Estado colonial e o apartheid, ainda que muita desta resistência tenha ocorrido no seio de orga-

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foi noticiado pelo Sunday Times, garantiu aos investidores que "nem uma só referência a coisas como o nacionalismo" permaneceria nas políticas econômicas do CNA e que estas haviam sido "limpas de tudo quanto nos relacionasse com a ideologia marxista". Jeremy Cronin, do Partido Comunista Sul-Africano, outro dos parceiros de aliança do CNA (in Marais 1998), disse que os argumentos do capital eram "mais atraentes e persuasivos para um amplo espectro da liderança do CNA do que os contra-argumentos, que são menos seguros, menos coerentes".

5. AS ORGANIZAÇÕES-MOVIMENTO DURANTE O APARTHEID

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nizações políticas, dominadas por homens, que reconheciam a questão da mulher (como é apresentada pelo discurso marxista e de liberação nacional1 2}, mas que não consideravam a desigualdade sexual uma contradição fundamental que necessitava ser resolvida de forma a obter uma sociedade mais igualitária. Deste modo, as mulheres foram membros ativos no CNA e no SACP desde a sua formação. Mulheres, individualmente, deram contribuições significativas no seio destas organizações e, por diversas vezes, grupos específicos de mulheres ergueram-se em protesto ativo, como aconteceu no caso dos protestos contra as leis relativas à produção de cerveja e ao passe. 13 Com o restabelecimento de uma atividade política aberta nos anos 70 e 80, os esforços organizacionais dispersos por diversas partes do país conjugaram-se em uma forte federação nacional de sindicatos - a maior que o país alguma vez viu - , no Black Consciousness Movement 14, e no estabelecimento da United Democratic Front (UDF} 15 , que juntou, sobretudo organizações comunitárias urbanas de todo o país. Durante esse período assistiu-se à unificação das lutas estudantis, comunitárias e de trabalhadores. Os estudantes universitários e os intelectuais desempenharam um papel significativo ao promover e apoiar o movimento sindical emergente, por meio de organizações como a Wages Commission e o Institute for Industrial Education. 16 A atividade política era escassa ou inexistente nas áreas rurais, inclusive nas terras de fazendeiros brancos e nos bantustões. Os trabalhadores negros resistiram à investida do capitalismo racial que os impedia de formar ou aderir a sindicatos. Na década de 80, os sindicatos tornaram-se mais fortes. Durante esse período, houve divisões no seio dos sindicatos recém-formados. Alguns associaram-se ao ANC/SACP, outros, que 12

Ver Hutchful (1999). leis do apartheid criaram e promoveram um sistema de controle migratório de africanos para as cidades com a utilização de "passes", documentos de identificação que controlavam o acesso da força de trabalho às cidades, negando-lhes direitos permanentes de residência e de cidadania. Por isso, quem não tinha acesso às cidades era obrigado a viver nos bantustões. Ver, por exemplo, Kros (1980) e Wells (1980). 14 Movimento de Consciência Negra. {N. do T.) 15 Frente Democrática Unida. {N. do T.) 16lnstituto para a Educação Industrial. {N. do T.) 11 As

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faziam parte da Federation of South African Trade Unions (Fosatu) 17 , assumiram uma postura que enfatizou o controle do trabalhador, e outros, pertencentes à National Council of Trade Unions (Nactu) 18 , juntaram-se a organizações de consciência negra. Em meados dos anos 80, os sindicatos ligados ao CNA e filiados à Fosatu juntaram-se a diversos sindicatos independentes para formarem o Cosatu. Nos anos 90, o Cosatu continuou a funcionar como organização independente ao mesmo tempo que se juntou à Aliança Tripartite.

6. A ORGANIZAÇÃO DAS MULHERES SOB O APARTHEID

O que tem sido chamado de movimento das mulheres na África do Sul emergiu essencialmente das lutas nacionais e dos trabalhadores. Os atores centrais do movimento de mulheres foram as organizações de mulheres da UDF (United Democratic Front), as mulheres do CNA e as mulheres sindicalistas. A sua organização foi moldada pela repressão política e econômica e, com menor intensidade, pelas dinâmicas de gênero dentro da UDF, do CNA e do movimento sindical. As mulheres nas comunidades e nos sindicatos tornaram-se cada vez mais ativas durante os anos 80. Os ideais de libertação foram estruturados a partir dos conceitos de nacionalismo e socialismo, com ambos os "ismos" convivendo em simbiose, algumas vezes, e, outras, entrando em conflito. As mulheres ativas nos sindicatos e nas organizações comunitárias, bem como as mulheres estudantes, estiveram envolvidas no debate sobre o papel da mulher na luta pela libertação e nos sindicatos, ao mesmo tempo em que se envolveram em lutas juntamente com os homens dentro dessas organizações. As preocupações das mulheres foram moldadas pelas idéias socialistas e nacionalistas e, à medida que enfrentaram estes desafios, muitas mulheres ativistas foram inspiradas pela segunda onda do feminismo e pelo feminismo nacional negro e do Terceiro Mundo. 17 18

Federação de Sindicatos Sul-Africanos. {N. do T.) Conselho Nacional de Sindicatos. {N. do T.) 307

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As mulheres nos sindicatos fomentaram laços entre as lutas na fábrica, na comunidade, no país e em casa. Dada a sua posição na sociedade, em relação ao Estado e ao capital, as suas lutas tiveram o mérito de conjugar raça, classe e gênero. Houve muita discussão acerca do lugar do feminismo dentro do movimento de libertação nacional. Para alguns, a luta das mulheres era vista como um elemento perturbador da luta contra a contradição principal, que, dependendo da perspectiva, poderia ser a libertação nacional ou a revolução socialista. Contudo, estes debates ocorreram em um contexto do qual as discussões mais importantes e acesas aconteciam entre socialistas e nacionalistas, discussões que se intensificaram à medida que a UDF foi sendo constituída e que a Fosatu se converteu em Cosatu. Por vezes, em deferência ao que era entendido como sendo questões mais urgentes, o ativismo das mulheres assumiu uma postura de apoio à luta geral sem colocar questões específicas relativas ao gênero. Todavia, a posição consensual de que as mulheres deveriam envolver-se ativamente nas organizações, ainda que isso significasse aderir a movimentos dominados por homens em busca de um aumento de número (de modo a combater o Estado ou os capitalistas individuais), trouxe à superfície questões centrais sobre a opressão sexual-questões relativas à responsabilidade reprodutiva, por exemplo, que impediram muitas mulheres de participar ativamente das organizações. Parte da discussão sobre a necessidade de partilhar a responsabilidade reprodutiva entre homens e mulheres foi enquadrada na defesa do fortalecimento do papel das mulheres nesta luta. O discurso era, portanto, em grande parte, um discurso de instrumentalização - por exemplo, a filiação das mulheres aos sindicatos como um meio de obter acordos de reconhecimento por parte das administrações de cada fábrica, pois para que os sindicatos fossem reconhecidos precisavam ter 51 % dos trabalhadores como membros. Contudo, as coisas não ficaram por aí. Assim que se tornaram membros dos sindicatos, as mulheres levantaram questões como a licença-maternidade, o assédio sexual, a divisão das tarefas de reprodução com os homens e a violência doméstica. Os desafios aos patrões se estenderam aos desafios aos parceiros em casa, assim como aos camaradas masculinos nos sindicatos. As sindicalistas começaram a formar estruturas separadas - fóruns de mulheres - como espaços seguros onde podiam discutir as suas preocupações, definir estratégias para sensibilizar as lideranças masculinas para as questões

das mulheres e engendrar uma forma de colocar mulheres nas estruturas de liderança sindical que eram, na sua totalidade, masculinas. À medida que o envolvimento das mulheres nos sindicatos foi aumentando, também cresceu o seu envolvimento nas organizações comunitárias emergentes, bem como nas organizações de mulheres como a United Women's Organization (UWO) (sediada no Cabo Ocidental), a Natal Organization of Women (NOW) ou a Federation of Transval Women (Fedtraw). Foram feitas várias tentativas para agregar as diversas organizações provinciais de mulheres em uma Federação de Mulheres Sul-Africanas e, mais tarde, na UDF Women's Congress. Estes esforços no sentido de uma formação nacional não conseguiram atingir o seu objetivo. Em meados dos anos 80, emergiu uma tensão entre as organizações da UDF e as mulheres no Cosatu. As mulheres da UDF questionaram a existência de fóruns de mulheres no Cosatu, fóruns que consideravam estruturas paralelas que impediam as mulheres de se juntarem às organizações de mulheres pertencentes à UDF. Os fóruns de mulheres também ficaram sob fogo cerrado vindo de outra frente, por motivos diferentes - por parte dos homens sindicalizados que consideravam os fóruns de mulheres uma absoluta perda de tempo. Às mulheres no Cosatu não foi fácil ver os seus interesses atendidos. Por exemplo, no final dos anos 80 e início dos anos 90, suas exigências de que os sindicatos discutissem o assédio sexual fracassaram, e elas perderam a luta pelo estabelecimento de quotas na liderança do Cosatu. Todavia, a formulação destes problemas provocou muita discussão nos congressos do Cosatu. A líder sindical Maggie Magubane (Meer, 1998) lembra que muitas das vitórias foram conseguidas apenas no papel, uma vez que a liderança e os membros do Cosatu continuam a assumir atitudes patriarcais:

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Nós temos de ouvir os nossos camaradas dizer que não há hipótese alguma de poderem ser liderados por uma mulher. Temos de ouvir alguns delegados sindicais insistir que mulheres não podem ser eleitas para qualquer cargo de chefia, que é contra a tradição (Magubane in Meer, 1998: 74).

As sindicalistas viram-se obrigadas a defender, uma vez mais, a necessidade dos fóruns de mulheres que haviam conquistado anos antes, pois os dirigentes

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masculinos entendiam que "o gênero dizia respeito quer a mulheres, quer a homens" - esta perspectiva elimina o caráter político da questão, visto não considerar as noções de poder masculino e de subordinação feminina. O sexismo e o assédio sexual continuam ainda hoje a fazer parte da experiência das mulheres no Cosatu e nas organizações filiadas. 19 Quando o CNA foi legalizado, a questão do futuro das organizações filiadas à UDF foi um assunto estratégico central. O CNA estava prestes a estabelecer delegações em cada canto do país e as organizações da UDF, incluindo as cívicas, eram consideradas estruturas rivais. A discussão prosseguiu sobre se as organizações cívicas deveriam continuar a existir e, caso isso acontecesse, como seria a sua relação com as delegações do ANC (Marais, 1998). Algumas filiadas à UDF fundiram-se com as delegações do CNA, mas algumas organizações cívicas no âmbito da Sanco resistiram à pressão por dissolução, estendendo-se a novas áreas, como os antigos bantustões, onde ainda não haviam marcado presença. Todas as organizações de mulheres da UDF dissolveram-se e fundiram-se na Liga das Mulheres do CNA. Ou seja, organizações formadas e mantidas durante um período de cinco a dez anos, que tinham membros, infraestrutura e projetos desenvolvidos, deixaram subitamente de existir. Cronin (1992 in Marais 1998) diz que o desmantelamento das organizações da UDF, assim que o CNA foi realizado, evidencia que a UDF era a equipe suplente que deixara de ser necessária, uma vez que a equipe principal, o CNA, estava de volta. Isto demonstra também que as organizações-movimento têm o papel de eixos de transmissão para o partido. O desmantelamento das organizações da UDF foi uma tragédia, e uma nova mobilização tem sido difícil nos tempos mais recentes. No período que antecedeu as negociações, quando estas já eram previsíveis, as mulheres do CNA delinearam estratégias de modo a colocar as suas preocupações na agenda política do CNA. Entre estas iniciativas, destacamse: a afirmação de 2 de novembro, comprometendo o CNA com a igualdade entre sexos; a comissão sobre a emancipação da mulher; a inclusão da reivindicação de aborto seguro em debates sobre saúde e uma conferência do departamento de política do CNA sobre trabalho não-remunerado. 1

1!1\'er

Orr (1999). 3 1o

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As mulheres do CNA exigiram o estabelecimento de quotas na direção do CNA em 1991, de modo a garantir que as mulheres constituíssem pelo menos um terço da liderança do partido, mas esta exigência não foi atendida. Nos anos seguintes, as mulheres do CNA fizeram campanha por isso e retomaram-na novamente durante a campanha eleitoral para as primeiras eleições democráticas do país, dessa vez obtendo uma quota de um terço de mulheres nas listas do partido para o parlamento. Isto significou a conquista de 101 lugares, num total de 400, no primeiro parlamento democrático. Sobre essa vitória é necessário tecer duas considerações. Em primeiro lugar, este ganho foi facilitado pelo sistema eleitoral de representação proporcional, sistema criticado por não facilitar uma responsabilização direta perante o eleitorado. Em segundo lugar, é necessário considerar que as quotas são política do partido e não lei estatal (como acontece em Uganda), e que a manutenção das quotas está à disposição do partido. Paralelamente às organizações de resistência dos anos 80 e 90, houve uma série de ONGs de apoio e uma imprensa independente florescente. Em questões de mulheres e de gênero, duas publicações, a SPEAK ~uma revista para mulheres do povo - e o jornal Agenda -, contribuíram para o arejamento dos debates entre a comunidade, os sindicatos e os ativistas políticos, estudantes e acadêmicos.

7. OS MOVIMENTOS E O ESTADO NA TRANSIÇÃO E NA NOVA DEMOCRACIA

Assim que o CNA passou a participar das negociações, a relação entre as organizações-movimento e o Estado do apartheid deixou de envolver um confronto direto. As organizações-movimento saíam em protestos ocasionais quando as negociações esmoreciam. Southall e Wood dizem que a participação do Cosatu na Aliança Tripartite (CNA, SACP e Cosatu) foi um meio de garantir que "a preferência pela classe trabalhadora prevalecesse na política e nos programas adotados pelo CNA assim que este fizesse parte do governo". Ou seja, embora o CNA, como partido no governo, devesse comprometer-se a defender o interesse nacional, "a Aliança Tripartite foi construída para garantir que, daí em diante, o 311

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novo governo democrático da África do Sul levasse em consideração as necessidades da classe trabalhadora" (Southhall e Wood, 1999: 68). Todavia, após 1994 as relações entre o Estado e os sindicatos tornaramse tensas, particularmente no que diz respeito ao Gear e a certas leis trabalhistas. Uma questão que foi levantada e debatida consistia em saber se os interesses dos trabalhadores seriam mais bem defendidos caso o Cosatu abandonasse a Aliança. O Cosatu já criticou o próprio papel que desempenha na aliança. Buhlungu (1997: 72) cita um documento do Cosatu, Um esboço de programa para a Aliança, que diz: "A Aliança nunca se reuniu para debater sistematicamente os desafios da transição e para formular uma estratégia conjunta, nem para decidir qual o papel que cada uma das organizações deveria desempenhar no seio dessa estratégia". Nesse documento o Cosatu lamenta o fato de a produção de políticas se ter tornado um feudo de consultores, economistas conservadores, burocratas do regime anterior e instituições financeiras internacionais como o Banco Mundial (Bird) e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Diz ainda que o PRD foi debilitado por várias forças, que as organizações populares foram desmobilizadas e que "a maioria dos ativistas já não sabe quais são os objetivos estratégicos" (Buhlungu, 1997: 72). Todavia, a posição dominante do Cosatu é a de manter a participação na Aliança, desafiando, contudo, o governo quando os interesses dos trabalhadores são ameaçados. Southall e Wood argumentam que o Cosatu era crítico acerca do conteúdo, assim como da falta de consulta em torno do Gear. Todavia, o Cosatu deu todo o seu apoio ao CNA nas eleições de 1999, "pronunciando-se a favor dos trabalhadores e dos pobres". O Cosatu envolveu-se em manifestações de massa, ao mesmo tempo em que negociou com o poder econômico no National Economic Development and Labour Council (Nedlac) e abriu um gabinete parlamentar para pressionar o Parlamento. As contínuas demissões representaram a perda de um grande número de membros sindicalizados, como por exemplo homens do setor de mineração e mulheres do setor têxtil. As tentativas do Cosatu de organizar os trabalhadores desempregados nos anos 80 foram abandonadas. Com o desmantelamento do South African Domestic Workers Union (SADWU), o Cosatu não considerou prioritárias as necessidades dos trabalhadores domésticos. 3 12

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Tampouco considerou prioritárias as necessidades do setor informal (em grande parte um setor de mulheres). Dadas as transformações na estrutura dos trabalhadores sindicalizados - desde a predominância de operários até o crescente número de empregados em escritórios-, e a sua tendência cada vez mais restritiva de defesa dos interesses dos seus membros, o Cosatu parece desviar-se do forte sindicalismo político que uniu os interesses de classe com a luta pela libertação nacional. Nem o Cosatu nem a Aliança Tripartite consideraram prioritária a discriminação sexual sistêmica ou a posição das mulheres. Estas organizações são dominadas por homens e regidas por ideologias patriarcais. As mulheres nos sindicatos têm estado na defesa na década de 90 - tendo obtido vitórias em meados dos anos 80, elas precisavam lutar fortemente para mantê-las. Enquanto as mulheres do CNA obtiveram uma quota de um terço no partido, as mulheres do Cosatu, até hoje, ainda não o conseguiram e falam dos "telhados de vidro" dos sindicatos que continuam intactos.

8. A COLIGAÇÃO NACIONAL DE MULHERES

Em 1991, a Liga das Mulheres do CNA liderou a formação da Women's National Coalition20 (WNC). A WNC agregou cerca de 60 organizações, incluindo mulheres dos maiores partidos políticos, como simples propósito de desenvolver uma carta dos direitos das mulheres. Aproveitando estrategicamente as oportunidades oferecidas pela transição e pelo processo de democratização, a WNC foi capaz de dar à questão do gênero uma posição mais central na agenda política. Desempenhou um papel central ao garantir que o princípio da igualdade das mulheres fosse considerado hierarquicamente superior ao direito consuetudinário na Constituição sul-africana. Defendeu e conseguiu mobilizar o aparato político em torno das questões de gênero (OSW, CGE e questões-chave de gênero em quase todos os departamentos) defendendo os interesses das mulheres. Teve um papel importante na sensibilização de todos os partidos políticos para a 20

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importância do voto das mulheres e, portanto, da vantagem de aumentar o número de mulheres em posições de liderança. A WNC quase se tornou um movimento. Contudo, as críticas dirigidas à WNC chamam a atenção para diversas questões, como o domínio exercido pelos partidos, o fato de raramente se conseguir obter um consenso devido à diversidade dos seus membros (Abrams, 2000), o fato de nunca ter resolvido a questão do aborto, o fato de a WNC se preocupar mais com temas da classe média do que com os problemas da classe trabalhadora, dos desempregados e das mulheres não-organizadas, e, em última instância, o fato de ter fracassado na formação de um movimento de mulheres, embora tenha tentado fazê-lo (Duarte in Meer, 1998). Membros do executivo e do comitê dirigente da WNC estiveram envolvidos nas negociações nacionais como conselheiros e fazendo lobby. Adotaram esta estratégia para enfrentar um processo de negociação dominado por homens durante a primeira rodada das negociações nacionais (Convention for a Democratic South Africa - Codesa). 21 Militantes de diferentes partidos políticos receavam que as mulheres fossem excluídas das diversas delegações e, para evitar isso, uniram esforços estabelecendo um Gender Advisory Committee (GAC) 22 durante a primeira rodada de negociações (Codesa). Mas a violência política no país conduziu ao colapso das conversações da Codesa no momento em que o GAC tinha começado a decolar. Quando a segunda rodada de conversações - as Conversações Multipartidárias - começou, em março 1993, a WNC tinha um gabinete nacional, uma estratégia de campanha e um processo de controle por intermédio do Negotiations Monitoring Team. 23 Isto permitiu à WNC dar uma contribuição significativa quando os líderes tradicionais se opuseram às cláusulas de igualdade na carta de direitos. A inspirada Carta dos Direitos das Mulheres, da WNC, foi divulgada em junho de 1994. Todavia, a esperança de que a Carta se tornasse o cerne da 21

Em dezembro de 1991 teve lugar na cidade de Joanesburgo, a Convenção para uma África do Sul Democrática, na qual foi emitida uma declaração assinada por 17 organizações assumindo o compromisso de trabalhar coletivamente no sentido de uma África do Sul unida, democrática e em paz. (N. da E.) 22 Comitê de Aconselhamento de Gênero. (N. do T.) 23 Equipe de Monitorização das Negociações. (N. do T.) 314

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mobilização e organização de um movimento de mulheres forte e efetivo na África do Sul não se realizou. Meintjes (1996) justifica-o, em parte, em função da diversidade de interesses representados no seio da organização, sem que um tema agregador os unisse, e devido aos problemas de liderança, uma vez que os seus líderes foram "absorvidos pelo Parlamento, onde as energias se dispersaram em políticas nacionais e em tarefas do momento, mais do que em lutas pela emancipação da mulher" (Meintjes, 1996: 61). Os relatórios da WNC destacam o sucesso da agregação de um grupo diversificado de mulheres, mas, ao enfatizá-lo, tendem a obscurecer uma compreensão mais estruturada acerca da própria WNC, bem como do período histórico, com todas as suas oportunidades e constrangimentos (Meintjes, 1996; Hassim, 2000). Uma série de questões precisa ser mencionada. Em primeiro lugar, a WNC deve ser entendida à luz das lutas anteriores a 1991 dentro e entre as organizações de mulheres, uma vez que estas tensões modelaram os resultados dentro da coligação. Entre estas se incluem as tensões entre trabalhistas (socialistas) e populistas (nacionalistas), que, no seio das organizações de mulheres, assumiram a forma de tensões entre as mulheres do Cosatu e da UDF, e as tensões entre exilados e não exilados. Uma conseqüência destas tensões foi a tentativa de envolvimento das mulheres sindicalistas na WNC, o que influenciou a tendência pró-classe da organização. Em segundo lugar, é necessário levar em conta que a desmobilização das organizações de mulheres da UDF resultou na ausência de um forte núcleo de organizações de resistência no qual a WNC pudesse se apoiar. Em terceiro lugar, por causa do papel estratégico fundamental desempenhado pela Liga das Mulheres do CNA na WNC, as tensões dentro da Liga tiveram impacto na WNC. Uma cisão na Liga das Mulheres do CNA, após as eleições de 1994, quando dois grupos rivais lutavam pelo controle da organização, resultou na destituição da liderança do grupo mais feminista e estrategicamente orientado que havia liderado a WNC e os desafios às negociações. Até mesmo antes dessa derrota, as tensões no CNA tornaram mais esporádica a participação do CNA na WNC. A perda destas estrategistas, juntamente com a saída dos membros do executivo da WNC para o Parlamento e com a decisão de que os deputados não poderiam mais pertencer à WNC, repre3 15

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sentou um duro golpe para a organização que, até hoje, não recuperou o seu papel estratégico nas políticas de gênero na África do Sul. Em quarto lugar, a carta e as estratégias da WNC parecem refletir um ponto intermediário, como aconteceu com as negociações entre os maiores partidos. Parece justo afirmar que isto se traduziu em algo semelhante a um feminismo liberal com estratégias liberais que não se opuseram aos privilégios de classe e raça de modo relevante. Em quinto lugar, não é de admirar que mulheres vindas de diferentes contextos tenham se unido da forma como o fizeram, já que os homens dessas organizações já haviam estabelecido negociações entre si na Codesa e, mais tarde, na última rodada das negociações. De início, essas mulheres tinham em comum a sua exclusão do processo de negociação. Em sexto lugar, é necessário lembrar que enquanto a WNC funcionava, de fato, como uma organização independente, os principais intervenientes dentro da organização eram as alas femininas dos partidos políticos. Contudo, estas alas não eram, em si, independentes, estando vinculadas pela disciplina e pelas políticas partidárias. O que é significativo é o modo como a WNC foi capaz de utilizar o espaço aberto pela transição para constituir um Gender Advisory Committee (GAC) e um Comitê de Acompanhamento para monitorizar e moldar o resultado das negociações. Ainda mais relevante do que isto, a WNC (em conjunto com uma das organizações a ela filiada, o Rural Women's Movement24 ) foi capaz de intervir no processo de desenvolvimento da Constituição impedindo a inclusão de uma cláusula proposta pelos líderes tradicionais que isentava as autoridades tradicionais do cumprimento da cláusula constitucional sobre a igualdade entre os sexos (Meintjes, 1996). Simultaneamente, desde o início da luta foi sendo desenvolvido um clima que determinou que as questões de gênero e femininas fossem ouvidas: o envolvimento das mulheres nas lutas, em número significativo e com grande impacto, incluindo as campanhas pelo passe, do início do século XX, e o grande protesto de 1956. A chamada de atenção para as preocupações das mulheres e o seu envolvimento ativo no Cosatu e na UDF; as discussões e 24

Movimento das Mulheres Rurais. (N. do T.) 3 16

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debates acerca da libertação da mulher e da libertação nacional; o gênero como uma questão de direitos humanos universais; a década das mulheres nas Nações Unidas; e a crescente pressão de organizações internacionais doadoras contribuíram para uma situação em que nenhum revolucionário respeitável ou aspirante a funcionário de Estado poderia ignorar o gênero. Contudo, de modo geral, a WNC não foi capaz de estender seu ímpeto organizacional além do desenvolvimento da Carta. Paralelamente à contínua mudança do contexto político, as dificuldades em manter unidas as diversas organizações filiadas depois de terminada a Carta, os conflitos dentro da Liga das Mulheres do CNA e a saída de muitos dos membros da WNC para o Parlamento contribuíram para o enfraquecimento da organização. Este êxodo também afetou, outros movimentos, como os sindicatos, as organizações cívicas e as ONGs.

9. ENFRENTANDO NOVOS DESAFIOS

O CNA teve de se transformar de movimento de libertação em partido majoritário no Estado. O fato de ser oriundo de movimentos sociais não se traduziu automaticamente em uma relação positiva entre os movimentos e o Estado. Também se notaram, desde cedo, desencontros entre o discurso do Programa de Reconstrução e Desenvolvimento (PRD) sobre os movimentos e a abordagem real das organizações-movimento. O PRD notou que a existência de um forte setor de ONGs era uma contribuição importante para assegurar uma sociedade civil forte e vibrante, o que, por sua vez, era vital para garantir resposta às necessidades básicas. No entanto, apesar do forte apelo feito pelo documento do PRD, às parcerias entre o Estado e a sociedade civil, as atitudes do governo para com a sociedade civil têm sido, ambíguas. Durante o período de negociação, os movimentos eram acionados sempre que as lidetanças envolvidas nas negociações necessitavam de demonstrações de apoio em massa, e depois desligados quando já não eram mais necessários. Por vezes, elementos do CNA consideraram a sociedade civil e as ONGs irritantes (Marais, 1998; Cronin, 1992). J 17

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Tem havido pressões crescentes para que as ONGs e as Community Based Organisations (CBOs), que, no tempo do ativismo anti-apartheid, deram apoio aos movimentos populares, transfiram a sua atenção da "luta" para o "desenvolvimento". As atividades de desenvolvimento passaram a ser cada vez mais definidas pelas agências internacionais de desenvolvimento dominantes, como as agências das Nações Unidas, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, em termos puramente técnicos mais do que políticos - como se o poder e as lutas não fossem fatores que determinam quem verá os seus interesses defendidos em nome do desenvolvimento na África do Sul

p6s-apartheid. 25

10. A INGERÊNCIA DO NEOLIBERALISMO

O novo contexto em que nos encontramos está estruturado pelas políticas econômicas neoliberais e pelas noções liberais de direitos democráticos. Há uma confiança excessiva nos mercados e na justiça como se o acesso a estes não fosse moldado pelas vantagens e desvantagens baseadas na raça, no gênero e na classe. O objetivo da luta de libertação nacional era dominar o aparelho estatal, o que levou à eleição de muitos indivíduos do CNA, dos seus aliados e de muitas organizações ativistas para o parlamento nacional, os nove parlamentos de província, o governo local e os diversos níveis da burocracia estatal e paraestatal, apesar da existência da sunset clause por força da qual os funcionários públicos do período do apartheid permaneceriam em suas funções. Muitos dos antigos ativistas pertencem hoje ao aparelho de Estado. Aqueles que estão nos sindicatos desafiam o Estado como forma de defender as conquistas obtidas no passado sempre que estas são ameaçadas. Alguns antigos ativistas, pertencentes a ONGs, procuram defender os mais marginalizados em diversas áreas, como reforma agrária, Aids e desenvol-

PARA LIBERTAR

vimento; as mulheres ativistas defendem a reforma agrária, os direitos reprodutivos, as políticas de saúde, lutam contra a Aids e a violência contra as mulheres e as violações. Organizações como o Gender Advocacy Project26 e iniciativas como o Women's Budget Project27 e o New Women's Movement28 representam novas iniciativas no sentido de introduzir as preocupações das mulheres como parte integrante do atual processo de democratização. Muita desta atividade é desenvolvida nos termos estabelecidos pelo governo e partindo de uma perspectiva que privilegia a atividade legislativa como veículo preferencial da mudança. As mulheres pertencentes a todas estas organizações articulam-se com os departamentos de Estado, com os funcionários públicos e com o aparato político relacionado com questões de gênero (CGE e OSW). Todos utilizam o atual espaço de manobra para investigar, formar e pressionar indivíduos e estruturas dentro do Estado. Por exemplo, juízes e policiais obtêm formação em questões de violação e violência com base no gênero, de modo a tornar estas instituições mais receptivas às preocupações das mulheres. Tais lutas são travadas em um novo contexto, com os desafios de adaptação à nova democracia. Como dizem Jaquette e Wolchick em relação ao contexto da América Latina e da Europa Oriental, o torno à política democrática gerou problemas inesperados no movimento das mulheres e nos movimentos sociais em geral. A democracia significou que novos e corajosos conceitos tiveram de ser convertidos em legislação exeqüível, que seria necessário um esforço organizacional sustentado de forma a garantir que as questões das mulheres seriam assumidas pelos partidos políticos e que a legislação seria implementada e monitorizada. (... ) O entusiasmo arrebatador da transição, com um sentido de envolvimento e solidariedade de massas, deu lugar a esforços menores e mais concentrados (1998: 7).

26 Projeto

2.1ver Escobar, A. (1994) e Fergunson, J. (1994), sobre críticas à indústria de desenvolvimento e à despolitização daquelas que podem ser consideradas questões essencialmente políticas.

3 18

de Aconselhamento de Gênero. (N. do T.) do Orçamento das Mulheres. (N. do T.) 28 Novo Movimento de Mulheres. (N. do T.)

27Projeto

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Em relação ao contexto brasileiro, Alvarez (1990) argumenta que as vitórias feministas durante a transição não se transformaram automaticamente em conquistas permanentes de poder efetivo e influência política. Este argumento é comprovado pela situação sul-africana. Entre as vitórias obtidas pelas mulheres na África do Sul incluem-se a legislação sobre preocupações específicas de mulheres e a legislação mais sensível à mulher de um modo geral. Contudo, em geral, as conquistas obtidas pelos ativistas por intermédio de reformas políticas e legislativas mantiveram-se dentro de uma estrutura que não questiona a economia neoliberal nem a noção de direitos democráticos liberais. As idéias de socialismo parecem ter desaparecido subitamente e o discurso dominante de todos os partidos (incluindo o da maioria dos ativistas sindicais e de gênero) é dominado pelas idéias neoliberais. A problemática central está no fato de muitos dos ativistas de ONGs, sindicatos ou comunidades não problematizarem suficientemente os resultados das suas decisões estratégicas. Miller e Razavi (1999) apontam os perigos de as feministas ficarem presas à orientação neoliberal dominante - e isto se aplica a outros movimentos. Dizem que, devido à crescente influência da filosofia neoliberal, que é inerentemente contrária a intervenções políticas destinadas a obter a igualdade social, os defensores da política feminista tendem a ligar a igualdade sexual a preocupações consideradas politicamente corretas, como o crescimento econômico e a eficiência do mercado. Portanto, as feministas utilizam o discurso da eficiência proveniente da economia neoliberal, falam de distorções baseadas no gênero em vez de se referirem a direitos humanos, enquadram questões de violência doméstica em análises de custo econômico. Este discurso é adotado porque é ouvido de forma mais expedita por aqueles que estão preocupados com a promoção do crescimento econômico e com a remoção de distorções nos mercados. Contudo, como Goetz e Mayoux (in Miller e Ravazi, 1999) argumentam, o reenquadramento da questão da igualdade entre os sexos em termos de ganhos de eficiência econômica e social tem como efeito a despolitização do problema. Corre também o risco de tornar as mulheres mais suscetíveis à exploração, já que a tendência para promover o investimento nas mulheres poder ter como conseqüência o aumento do volume de trabalho destas.

Fraser (in Miller e Razavi) chama a atenção para o fato de instituições que produzem políticas tenderem a despolitizar certas questões, estruturando-as como imperativos impessoais do mercado, prerrogativas de propriedade privada ou problemas técnicos. Surgem lutas sobre a interpretação dos conceitos. Miller e Razavi (1999) detectam tensões entre feministas que defendem cenários em que todos obtêm vantagens, que freqüentemente requerem políticas para o "bem-comum" na linguagem do individualismo liberal, e aquelas que utilizam discursos de confronto, enraizados em uma compreensão mais estrutural da subordinação das mulheres. As abordagens em termos neoliberais estão abertas à cooptação e ao instrumentalismo, bem como aos riscos de neutralizar a natureza transformativa da agenda feminista. Por outro lado, o debate sobre conceitos como a eficiência pode ser um meio de subverter o discurso neoliberal dominante. Nos departamentos governamentais, nas ONGs e no setor privado na África do Sul, a noção de transformação assumiu uma vertente quantitativa, sendo mais importante contar o número de negros e mulheres do que refletir sobre o modo como o Estado continua a reforçar as desigualdades de raça, classe e gênero existentes na sociedade. Paralelamente, a avaliação de como as pessoas estão sendo bem-sucedidas nestas instituições parece centrar-se mais no grau de adaptação dos novos membros (por exemplo, as mulheres deputadas) às instituições do que na sua capacidade de realizar transformações significativas em prol do interesse dos mais marginalizados. 29 Além do mais, a transformação de instituições estatais tende a ser entendida como um objetivo, procurando com essa transformação torná-las mais representativas da estrutura demográfica da sociedade sul-africana. O papel destas instituições na democratização é pouco realçado. O ingresso nessas instituições tem se tornado mais um meio de aburguesamento do que uma forma de promoção da melhoria das condições de vida da sociedade (Sitas, 1998). Uma perspectiva centrada no Estado tem sido a orientação dominante

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] 2 1

2

"Ver, por exemplo, o estudo do CGE, 1999.

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surgiram questões de responsabilização quando alguns destes líderes sindicalistas começaram a trocar o parlamento por empresas de investimento - não sendo claro se para isto tiveram o apoio dos sindicatos e do Cosatu. Para as mulheres no Parlamento, a questão da prestação de contas é mais difícil, dado que não existe hoje qualquer organização nacional que represente as mulheres. Todavia, a responsabilização poderia ser exercida em relação aos movimentos comunitários existentes, assegurando laços entre as mulheres deputadas e as mulheres sindicalistas e nos grupos comunitários. Contudo, esta responsabilização parece não existir. O que é preocupante é a perspectiva centrada no Estado e a sugestão de que os laços entre as mulheres, fora e dentro do Parlamento, deveriam concentrar-se nas necessidades das mulheres deputadas. Esta perspectiva é compreensível, visto que mulheres e homens do CNA, que entraram no Parlamento pela primeira vez em 1994, foram esmagados pelas regras do jogo dentro dessa instituição e precisaram realizar consideráveis ajustes. Todavia, o que esta perspectiva ignora é a importância da existência de organizações dentro da sociedade para pedir contas aos deputados e a quem estes devem prestar contas. Mtintso (1999) diz que as mulheres deputadas tiveram de se afirmar, que o seu desempenho passou de completa confusão para segurança e capacidade de funcionar no sistema. Diz também que as mulheres precisam conhecer as regras do jogo para que possam modificá-las. Contudo, até agora, parece que a maioria das mulheres deputadas ainda está aprendendo a trabalhar com as regras estabelecidas, tendo sido escassas as mudanças ocorridas. Mtintso (1999) diz ainda que entre as ativistas que se preocupam com a questão do gênero há uma diferença entre as que têm e as que não têm mandato parlamentar. Segundo Mtintso, é necessário que exista um grupo de mulheres ativistas que se preocupe com esta causa, e no centro desse grupo deveriam estar as mulheres deputadas, ou seja, o ativismo ligado a esta questão, originário de todos os setores da sociedade civil, deveria ser forte e coordenar os seus esforços com os seus membros parlamentares. A autora diz que tais ativistas deveriam se organizar em um forte movimento feminista e

ºSobre esta marcha, ver adiante. (N. do E.)

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- exemplo disso é a atenção unidirecionada para a política parlamentar do livro do CGE, Redefinindo a política, como se a política não existisse além da arena formal do Estado. Um artigo de Tenjiwe Mtintso, na mesma publicação, incita as mulheres que não estão no Parlamento a organizarem-se e a apoiarem as mulheres no Parlamento, ignorando a possibilidade de se organizarem para fiscalizar os parlamentares. É como se os líderes do movimento de libertação, tendo-se integrado ao Estado, o tenham tornado centro das atenções, fazendo com que tudo o que está fora seja desvalorizado ou invisível. Então há a grande questão, que muitos tentam compreender, de como é que os que defenderam (ou pareciam defender) outras causas no passado, hoje defendem causas tão diferentes. Paralelamente a esta questão, existe a de saber como isto aconteceu tão cedo, quando nem dois anos se passaram desde o início da nova ordem democrática. O que aconteceu então às esperanças de ver as mulheres e os sindicalistas, uma vez no Parlamento, lutando pelos interesses dos pobres e dos trabalhadores? O seu desempenho nessa área não é bom. O ministro sul-africano do Comércio e Indústria, um antigo líder sindical e líder da SACP, pertence agora à direção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e promove as políticas desta organização e do Gear. A atual ministra do Território e Agricultura, que no passado foi secretária da WNC, hoje promove políticas voltadas para a criação de uma elite de agricultores negros, oferecendo muito pouco para os desejos das mulheres que marcharam em Mpumalanga.30 Collins (1997) levanta questões de fiscalização em relação aos sindicalistas pertencentes à lista de deputados do CNA. Ela enfatiza o fato de o Cosatu não ter considerado as questões de responsabilização quando tomou a decisão de nomear 20 dos seus líderes como candidatos do CNA para o parlamento nas eleições de 1994. Diz que não existia uma relação estruturada entre estes líderes e os seus sindicatos; que faltava uma facção trabalhista no parlamento; que havia confusão sobre qual organização estes líderes representavam (CNA, Cosatu, ou as suas filiadas). Também 1

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de mulheres atuando como uma base de apoio aos ativistas que estejam no Parlamento. Miller e Razavi (1999) apontam também para os laços existentes entre mulheres com e sem mandato parlamentar de uma forma que tende a privilegiar as primeiras, pois destacam a importância de "uma clientela feminina que sirva de base para a defesa de políticas ligadas à questão de gêne-

participativa coletiva foi superado por uma cultura de individualismo e de construção de carreiras em que a obtenção de poder é vista como resultado do aproveitamento das oportunidades criadas pela desracialização (Buhlungu,

ro no Parlamento". Embora seja óbvio que uma ligação entre os que estão fora e os que estão dentro do Parlamento é crucial, a natureza dessa ligação, bem como os termos nos quais ela se baseia, são questões fundamentais que precisam ser analisadas. Por exemplo: quais os interesses de classe que serão defendidos por

A transição abre novas oportunidades e contradições. O tipo de nacionalismo que sobreviveu procura o

tal aliança? Miller e Razavi (1999) resumem os assuntos centrais abordados pelas feministas ao considerarem o entryism 31 uma estratégia. Os autores argumentam que é difícil propor agendas transformadoras a partir de dentro, ao mesmo tempo em que se realiza um esforço de adaptação às técnicas e práticas da burocracia. Evidenciam também que a estratégia de envolvimento feminista visa promover a mudança dentro das estruturas burocráticas existentes, mesmo que se reconheça que a mudança é gradual. A estratégia de implementar a mudança a partir de dentro pressupõe uma ampla gama de capacidades: uma compreensão profunda de como funciona o aparelho burocrático; uma astúcia política para identificar quais são os pontos estratégicos de influência no sistema político; e sabedoria para cultivar aliados apesar da desconfiança dos burocratas tradicionais. Além dos problemas de ligação e fiscalização entre os diversos grupos, existe a questão do aburguesamento e de uma nova moralidade que acompanha a transformação. Como diz Buhlungu, os processos de formação de classes ou de formação de elites se aceleraram, com muitos dos principais ativistas que faziam parte da tradição de participação democrática se beneficiando das novas oportunidades criadas pela desracialização da sociedade. Assim, o discurso de uma cultura democrática

31 Entryism designa o ato de filiação a um determinado partido como forma de transformá-lo a partir de dentro. (N. do T.)

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2002: 163).

caminho do fortalecimento e da acumulação, para um novo bloco de poder, de populistas pragmáticos, herdeiros dos processos globais de capacitação. Esta reformulação da elite política tem sido mais um passo no sentido de uma lógica de desintegração dos movimentos sociais (Sitas, 1998). Saul (1999) questiona a razão do CNA em escolher soluções de mercado, não sabendo se tal escolha quis servir a novos interesses de classes das lideranças ou se essas soluções são desenvolvimentistas ou inevitáveis nas atuais condições locais e globais. Este autor sugere que, para tornar apetecíveis as suas escolhas econômicas conservadoras, o governo reveste estas políticas de uma retórica radical e um discurso sobre o "Renascimento africano". É claro que há um certo número de forças que moldam o presente. Sitas (1998) diz que tendências como a globalização, a transição institucional e o desenvolvimento de novos caminhos de poder moldam o presente. A capacidade do Estado de moldar os resultados é reduzida devido à recente entrada da África do Sul nos mercados mundiais. A mudança é limitada, igualmente, pelas lutas entre blocos de poder com agendas conflitantes, especialmente entre os funcionários públicos da era do apartheid e aqueles que são simpatizantes do CNA A transição "gera uma lógica de desintegração que afeta e modela os próprios movimentos sociais que introduzem a transformação" (Sitas, 1998: 43). Acordos políticos mais amplos determinam a forma e o funcionamento dos movimentos sociais, que por sua vez continuam a influenciar, sutilmente, a lógica do processo mais amplo. 32 5

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As vanguardas e organizações revolucionárias nunca podem livremente influenciar as transições, elas são antes moldadas, como o são as condições que enfrentam, por forças estruturais mais abrangentes, encontrando-se, entre os não menos importantes, os parâmetros políticos e internacionais (Sitas, 1998: 43).

O anterior movimento de libertação se transforma como parte do amplo processo de transformação, acompanhado pela formação e o realinhamento de classes, fazendo com que os antigos objetivos deixem de ser partilhados (Buhlungu, 1997).

PARA LIBERTAR

Mais recentemente têm-se notado com maior clareza sinais de desespero entre os pobres e marginalizados. Por exemplo: em novembro de 1999, em Mpumalanga, as mulheres do campo marcharam publicamente nuas de forma a fazer com que as suas exigências fossem ouvidas. Josephine Tsabedze, de 70 anos, e 27 outras mulheres do campo passaram uma semana na cadeia por terem marchado nuas pela rua principal de Beffelspruit em Mpumalanga, protestando contra um chefe local que se recusara a reconhecer os seus direitos à terra. Tsabedze disse: Nós marchamos pelas ruas sem as nossas roupas para mostrar ao chefe que estamos zangadas. Queremos mostrar-lhe os nossos estômagos vazios. A minha maior preocupação são as crianças. Por isso nós acabamos na prisão. Eu fiz

11. REINVENTAR A EMANCIPAÇÃO SOCIAL

tudo por causa da fome (Shongwe, 2000: 18).

Saul se pergunta:

As mulheres sentiram-se culpadas por terem passado uma semana na cadeia, por quanto tempo mais os sul-africanos - historicamente tão habituados à mobilização em defesa dos seus interesses -

permanecerão satisfeitos com

as fracas expectativas que lhes são oferecidas por parte do "realismo do mágico mercado", antes que se mobilizem para reativar a luta pela concretização de estratégias socioeconômicas genuinamente desenvolvimentistas e mais humanas para o seu país. Esta é uma das questões centrais à medida que entramos no milênio (1999: 64).

Durante os últimos sete anos as comunidades e os trabalhadores pobres, quer rurais quer urbanos, mobilizaram-se em defesa de várias causas. As suas ações tomaram a forma de invasões de terras, de marchas de protesto e manifestações. Sitas menciona que, entretanto, verificou-se uma mudança de abordagem, passando de um movimento social militante a uma variedade de iniciativas, não necessariamente interligadas, cada qual com as suas dinâmicas, seus compromissos e inovações que implicam quer resistên-

porque já tiveram refeições melhores do que aquelas que os seus filhos e netos tiveram em suas casas. Em média, cada mulher tem entre cinco e nove crianças para alimentar e vestir. Muitas vezes essas mulheres são os únicos membros da família com rendimentos. Elas precisam de terra para cultivar e obter alimentos para os seus filhos. Em fevereiro de 2001, em Insipingo, perto de Durban, os moradores organizaram reuniões e marchas de protesto contra os despejos determinados pelo Conselho local dominado pelo CNA. Uma das famílias prestes a ser despejada era a da Sra. Munisamy, de 65 anos, sua filha de 27, Kantha, que luta diariamente contra um cancro, e do seu neto de 6 anos. Eles vivem em um apartamento do Conselho que estava vazio. O rendimento desta família consistia na pensão da Sra. Munisamy, de cerca de 540 rands 32 por mês, que foi cortada aparentemente por razões burocráticas. A sua renda era de 268 rands mensais, tendo ainda que pagar a eletricidade e a água. A Sra. Munisamy sofre de asma, mas não pode ir ao hospital receber tratamento por não ter como pagar. Um dos oradores na

cia, quer acomodação aos acordos centrais [do governo pós-apartheidj (Sitas, 1998). l2Q rand equivale a 0,1021 euro ou 0,2168 real brasileiro. (N. da E.)

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reunião de protesto, que juntou cerca de 800 manifestantes, lembrou aos residentes que foram eles que venceram o apartheid e os incitou a derrotar este novo inimigo lutando juntos contra os despejos. O prosseguimento das ações judiciais conduziu à suspensão dos despejos. A organização e o protesto dos residentes produziram resultados (Richard Pithouse, Sunday Tribune, 4 de fevereiro de 2001). A 29 de abril de 2001, na cidade de Mpumalanga, perto de Hammersdale, no Kwa Zulu Natal, os habitantes organizaram uma manifestação. A cidade situa-se numa área semi-rural, fruto do conceito do apartheid de que os negros não deveriam viver muito longe de subúrbios brancos. Muitos daqueles moradores tinham emprego em indústrias locais de criação de aves domésticas, tendo perdido seus empregos quando as empresas fecharam. Os residentes não podem, por isso, pagar os serviços, tendo sido já ameaçados de corte de água. A manifestação tinha como objetivo resistir a esses cortes. Ainda não se sabe se estas ações irão se unir, ou como isso acontecerá. Contudo, parece claramente improvável que serão os movimentos sociais dos anos 80 que irão desempenhar esse papel aglutinador dos vários protestos individuais. As organizações de movimentos das mulheres dos anos 80 já não existem, nem a Women's National Coalition (WNC) nem o Rural Women's Movement (RWM). As organizações de mulheres da UDF também já não existem, pois foram desmanteladas para formar a Liga das Mulheres do CNA. Esta parece estar imobilizada, pois os seus principais líderes estão no Parlamento, ficando assim indisponíveis para participar na construção de um novo movimento. As ONGs dos anos 80, que apoiaram as lutas das comunidades e dos sindicatos naquela década, quando os "inimigos" eram os agentes do Estado do apartheid, estão hoje silenciosas, não participando de qualquer luta. As ONGs de desenvolvimento pressionam o governo, mas fazem-no dentro da lógica neoliberal e da agenda política estabelecida pelo Estado. Além do mais, as ONGs debatem-se com o problema da falta de recursos, uma crise que se esperava que fosse resolvida pelo Estado ao reconhecer a importância de um forte setor de O N Gs. A forma e a natureza do movimento sindical mudou, diminuindo a sua

As organizações de mulheres são hoje representadas, não por uma organização de cúpula, mas por uma variedade de iniciativas, menores e voltadas para interesses espedficos. As mais importantes organizações de mulheres dos anos 80 eram alas e seções dos movimentos de libertação e dos sindicados liderados por homens. Dada a repressão capitalista do apartheid, as mulheres ativistas envolveram-se em organizações de libertação, ao mesmo tempo em que se organizaram separadamente em movimentos de mulheres, tendo o destino dessas organizações ficado assim ligado a um movimento mais abrangente. As mulheres eleitas para o Parlamento, como foi o caso de sindicalistas e de membros do SACP, foram como represen-

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capacidade de moldar a transição. No movime1:1to sindical atual, o fortalecimento organizativo não é uma prioridade - os seus líderes dedicam a maior parte do tempo às políticas, procurando influenciar a política e 0 direito estatal. Os ativistas e as bases dos sindicatos foram desmobilizados. Os sindicatos negligenciam a construção do seu poder independente e confundem as suas orientações estratégicas com as do partido dominante (Buhlungu, 1997).

12. CONCLUSÃO

O papel de uma forte organização-movimento fora das estruturas do Estado é crucial para garantir que os representantes de fato representem os interesses do seu eleitorado. No entanto, a permanência do movimento sindical sulafricano, juntamente com os sindicalistas com tnandato parlamentar, não resultou na satisfação dos interesses dos trabalhadores. Isso pode ser constatado nas tensões persistentes nos últimos anos entre o Cosatu e o governo acerca de questões como o Gear, a Lei de Relações Trabalhistas e a Lei de Condições Básicas de Trabalho; no aumento das demissões que levou a uma mudança na massa sindicalizada, passando de uma maioria de operários para um peso crescente dos trabalhadores de colarinho branco. No presente contexto, em vez da promessa de uma forte pressão sobre o Estado, os sindicatos parecem estar perdendo força.

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tantes do partido político CNA, pelo que a sua fidelidade era, em primeiro lugar, ao partido. A questão da representação de interesses está relacionada a processos mais amplos, que incluem o modo como se articulam os sistemas globais e nacionais de raça, classe e gênero. As políticas governamentais da África do Sul de hoje, bem como as respostas dos ativistas, tendem a ser enquadradas em uma lógica neoliberal esmagadora. Os interesses de homens e mulheres pobres, rurais e urbanos não estão sendo adequadamente defendidos. Como demonstramos no presente capítulo, as elevadas taxas de pobreza e desigualdade persistem ao longo de traços determinados pela legislação e pelas políticas do apartheid. Os esforços para compreender a transição e o atual momento de consolidação democrática revelam que foram as elites que tomaram as decisões, embora os movimentos tenham desempenhado um papel; e demonstram o efeito fragmentador das transições. Assim, embora as transições criem oportunidades, parecem ter também um efeito desestabilizador sobre os movimentos. E o enfraquecimento dos movimentos permite que o Estado prossiga quase sem ser contestado. Assim se justificam políticas como o Gear, que não fazem nada para resolver a questão da pobre-za e da desigualdade que persistem desde os dias do apartheid. Na África do Sul de hoje, raça, classe e gênero continuam a determinar o acesso ao poder econômico. A transição conduziu a uma estabilização e à busca de um equilíbrio. A natureza da democracia em consolidação está baseada em noções liberais de direitos, comparáveis à doutrina econômica neoliberal. Este capítulo procurou demonstrar o modo como os movimentos foram moldados pelas respostas do Estado durante o apartheid, o período de transição e o período de democratização. Procurou ainda expor a relação dialética entre os movimentos e o Estado. O perigo atual reside na tendência de as exigências serem estruturadas em termos neoliberais. Os perigos do entryism consistem nas novas entradas que se enquadram no sistema sem o desafiarem, e utilizam a entrada como um meio de aburguesamento. As sementes do desafio ao neoliberalismo provavelmente estão nos mo330

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vimentos dispersos que estão se desenvolvendo em diversas regiões do país. São necessários novos desafios para mudar as regras do jogo, em vez de compromissos com as idéias capitalistas. Poderemos ter de aceitar a idéia de incrementalismo reformista, mas precisamos ser muito claros quanto à direção para onde nos levam as mudanças incrementais.

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CAPíruLo 1

Orientação sexual em Portugal: para uma emancipação 1 Ana Cristina Santos

1

Não posso deixar de agradecer os importantes comentários de Boaventura de Sousa Santos e João Arriscado Nunes às sucessivas versões deste capítulo. Pelas leituras cuidadosas, disponibilidade demonstrada e os comentários tecidos, quero também agradecer a Fernando Fontes e a Sílvia Ferreira, bem como aos restantes autores de capítulos deste volume, com quem tive o privilégio de trabalhar durante o Simpósio "A reinvenção da emancipação social", realizado em Coimbra, de 23 a 26 de novembro de 2000. 334

33 5

Introdução

Em um contexto de hegemonização da ordem neoliberal global, as minorias constituem contrapoderes cujo potencial de resistência e subversão pode efetivamente resultar em uma renegociação das regras do jogo. Neste sentido, o complexo, heterogêneo e muitas vezes difuso movimento lésbico, gay, bissexual e transgênero (LGBT) 2 coloca importantes desafios ao pensamento sociológico contemporâneo (Stein e Plummer, 1996; Hawkes, 1996; Seidman, 1997). No âmbito de uma reflexão sobre as alternativas de emancipação social, são dois os aspectos centrais do debate em torno do movimento LGBT. Por um lado, avolumam-se as evidências históricas da opressão que vitimou homens e mulheres homossexuais, bissexuais e transgêneros ao longo de séculos, à mercê da hegemonia heterossexual. 3 Desde os tempos do Tribunal da Santa Inquisição até hoje, são conhecidos inúmeros casos de perseguição, tortura e morte com base na orientação sexual, o que ainda é legalmente permitido em muitos países. 4 Mas, mais do que recordar fatos já conhecidos, importa questionar se esta forma de opressão contém necessariamente em si o potencial para a emancipação. Em outras palavras, será a opressão social de um determinado grupo minoritário condição suficiente para que este se torne contra-hegemônico? 2 Uma vez que o conceito "homossexual" designa um universo muito restrito e que não corresponde à diversidade de orientações sexuais dentro do movimento, ao longo do capítulo será utilizada a sigla LGBT para designar "lésbica/gay /bissexuaVtransgênero". 3 Entre outros, Adrienne Rich (1993) tem escrito sobre aquilo que ela chama de "heterossexualidade compulsiva". 4 Mott (1987) descreve os processos da Inquisição em Portugal e no Brasil contra os sodomitas. Ver também Richards (1990). Uma análise contemporânea sobre tortura e morte em função da orientação sexual está detalhada em Anistia Internacional (1997) e Rosenbloom (1996).

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Por outro lado, a partir dos anos 80 a chamada "indústria rosa", tornouse um negócio visivelmente rentável, permitindo a criação e desenvolvimento de produtos culturais específicos, de uma imprensa própria, de bares, discotecas, saunas, hotéis, sex-shops etc., bem como a ampliação do circuito turístico gay internacional. Além dos processos de globalização permitirem a expansão deste mercado especificamente gay, verifica-se uma maior disponibilidade para consumir produtos "rosa" por parte dos homens homossexuais. Essa capacidade decorre de fatores como um status socioeconômico alegadamente mais elevado, por um lado, ou, por outro, as campanhas publicitárias especificamente orientadas para o consumidor gay que começam a dar os seus frutos. Por fim, a crescente visibilidade pública da homossexualidade, patente, por exemplo, nas freqüentes participações em debates e manifestações, espelha os benefícios de que o movimento LGBT usufruiu por ter apostado na sua globalização, obtida sobretudo pelo aproveitamento dos meios de informação eletrônica (internet) e a crescente mobilidade geográfica (viagens turísticas). O presente capítulo divide-se em quatro seções. Começarei por uma reflexão de caráter teórico em torno dos conceitos de igualdade e diferença, levando a uma problematização das condições e possibilidades gerais que o capitalismo permite à luta pela emancipação sexual. Seguir-se-á uma análise das especificidades da sociedade portuguesa contemporânea, considerando questões como a situação de semiperiferia, a fraqueza da sociedade civil e o domínio da moral judaico-cristã. Depois, passarei a uma reflexão mais empírica sobre as estratégias, alianças e objetivos político-sociais das associações LGBT portuguesas, enquadrando-as no processo de globalização do movimento LGBT em nível internacional. Para tal, serão considerados documentos, literatura interna e outros estudos teórico-empíricos realizados sobre a matéria, privilegiando-se ainda a observação direta de eventos públicos recentes organizados pelo próprio movimento, especialmente a Marcha do Orgulho Gay (junho de 2000), o Arraial Pride (1999 e 2000) e o Festival de Cinema Gay e Lésbico (1999 e 2000). Por fim, com base no envolvimento do movimento LGBT português noutras lutas pelo direito à diferença e à não discriminação, procurarei avaliar o potencial contra-hegemônico da luta pela emancipação sexual. llS

RECONHECER

PARA LIBERTAR

1. CONSTRUINDO A IGUALDADE E A DIFERENÇA

Os sistemas de desigualdade e exclusão em que nos enredamos quotidianamente resultam de complexas teias de poder, pelas quais grupos hegemônicos constroem e impõem linguagens, ideologias e crenças que implicam a rejeição, a marginalização ou o silenciamento de tudo o que se lhes oponha. Este é um processo histórico de hierarquização, segundo o qual uma cultura, por via de um discurso de verdade, cria o interdito e o rejeita, definindo uma fronteira além da qual tudo é transgressão. É com estas regras que todos os grupos atingidos pelo interdito social - os loucos, os criminosos, os ciganos, os homossexuais etc. - são empurrados para a margem da heterotopia (Santos, 1999). Quando falamos de igualdade e diferença, estamos necessariamente condicionados por um contexto que não é, pois, neutro. Falar do direito à diferença nunca é o mesmo que reivindicar direitos iguais para todos. O direito à diferença exige a especificidade sem desvalorização, a alternativa sem culpabilização, a aplicação rigorosa de um imperativo categórico assim enunciado por Boaventura de Sousa Santos: "temos o direito a ser iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza" (1999: 45). Na esteira dessa reflexão, proponho o conceito de universalismo útil para designar uma política em que a difusão dos princípios universais da não-discriminação se articula com a manutenção de recursos identitários constitutivos de subculturas valorizadas pelos sujeitos envolvidos. Assim se torna possível defender uma aplicação generalista das leis e, simultaneamente, uma proteção jurídica dirigida a um grupo tendencialmente excluído. Essa parece ter sido a dupla preocupação do Estado português quando, a 15 de março de 2001, foram aprovadas no Parlamento as leis visando a economia comum e as uniões de fato independentemente do sexo.5 5 A Lei 7/2001, de 11 de maio, adota medidas de proteção jurídica das uniões de fato, garantindo o direito à proteção da casa de morada de família, ao benefício do regime jurídico de férias, faltas, feriados, licenças equiparado ao dos cônjuges, preferência na colocação dos funcionários da Administração Pública, ao regime do imposto de renda nas mesmas condições dos sujeitos casados, à proteção em caso de morte do beneficiário pela aplicação do regime geral de segurança social, à prestação por morte resultante de acidente de trabalho ou doença profi~ional e à pensão por serviços excepcionais e relevantes prestados ao país. Por seu turno, a Lei 6/2001, também de 11 de maio, protege "pessoas que vivam em economia comum há mais de dois anos" e não constitui fator impeditivo da sua aplicação a coabitação em união de fato. A diferença essencial em relação à lei das uniões de fato é não mencionar especificamente que se aplica independentemente do sexo dos sujeitos e não conceder quaisquer pensões.

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A aprovação de ambos os instrumentos torna clara a necessidade de discriminar positivamente os cidadãos homossexuais. Na verdade, nada impediria que um casal homossexual se beneficiasse da proteção jurídica prevista na lei da economia comum. Todavia, a lei sobre a economia comum foi considerada insuficiente pelas associações LGBT nacionais, uma vez que destituía a relação familiar LGBT do seu componente afetivo, reduzindo-a a uma vertente meramente econômica. 6 É por esta razão que, durante a manifestação de rua realizada no dia 6 de fevereiro de 2000 em frente à 6ª Conservatória do Registro Civil, em Lisboa, diversos casais de lésbicas e gays trocaram beijos enquanto empunhavam cartazes nos quais se lia: "Isto não é uma economia comum!". A lei sobre as uniões de fato, ao reconhecer claramente a sua aplicação, no art. 1º,a "duas pessoas, independentemente do sexo", visa, assim, evitar qualquer interpretação mais excludente da proteção em causa. Conclui-se, pois, que o caminho para uma sociedade mais includente para todos passa por etapas em que não é útil nem justo promover um universalismo essencialista que não considera as especificidades dos contextos. O universalismo útil deve conduzir a políticas para a igualdade, evitando, contudo, quaisquer medidas homogeneizantes. Quem pode homogeneizar é sempre quem está no topo da pirâmide do poder. É devido a este risco de homogeneização que alguns ativistas LGBT têm feito fortes críticas ao discurso em defesa da igualdade, argumentando que os "direitos iguais" visam, em última instância, anular a diversidade no seio do próprio movimento LGBT. De fato, o reconhecimento de direitos aos casais LGBT pode ser interpretado como um incentivo ou uma recompensa concedida a um modelo único de comportamento sexual, desta feita muito próximo dos modelos heterossexuais mais convencionais, isto é, uma relação estável e monogâmica7 (Tatchell, 2001).

PARA LIBERTAR

A reflexão contemporânea sobre igualdade e diferença não pode deixar de ser enquadrada no quadro do neoliberalismo, onde estes pólos se entrecruzam, aproximam e divergem, constituindo redes complexas e dinâmicas, nem sempre simples de deslindar. A relação entre o movimento LGBT português e o sistema capitalista é permeada por contradições que decorrem dessa complexidade e da necessidade de maximizar os recursos disponíveis para grupos que, lutando pela igualdade de direitos, acenam com a bandeira do orgulho na diferença. Segue-se uma análise necessariamente breve sobre as condições que o atual sistema impõe à luta pela emancipação sexual, na tentativa de perceber se esta pode ou não ter pleno êxito no contexto de uma sociedade capitalista.

1.1. (Des)igualdades no quadro capitalista Como é facilmente aceito, em situações de miséria material extrema em que os sujeitos se debatem com um esforço constante pela sua própria sobrevivência resta pouco espaço (forças?) para lutar por outras causas aparentemente menos cruciais. Quando as condições objetivas de existência dos sujeitos melhoram, o espectro de reivindicações sociais aumenta, uma vez que se tornam visíveis outras necessidades, que não de pão, mas, por exemplo, de liberdade de expressão ou de autodeterminação sobre o corpo. É neste sentido que a emergência de um sistema capitalista proporcionou algumas condições essenciais ao surgimento do movimento homossexual. Entre estas, sublinho o salário mensal e a produção de bens de consumo. Em um artigo freqüentemente citado, D'Emilio (1996) argumenta que

6

A este propósito, Sérgio Vitorino, presidente do Grupo de Trabalho Homossexual (GTH), afirmou que as "relações entre homossexuais ultrapassam o domínio do econômico e financeiro", defendendo que as uniões de fato "pressupõem um enquadramento familiar que a economia comum não confere" (revista Korpus, 14). 7 É importante lembrar que tal modelo heterossexual convencional é um produto cultural habilmente construído de forma a servir os interesses econômicos do sistema capitalista. Corno recordam Greenberg e Bystrin, "(a] ideologia da família decorrente [do sistema capitalista] exigia monogamia, ligava intrinsecamente o amor à procriação, afirmava a inocência sexual da criança até urna adolescência bem adiantada e abraçou urna forte divisão sexual do trabalho" (1996: 88).

foi o desenvolvimento histórico do capitalismo -

mais especificamente o

seu sistema de trabalho livre -, que permitiu que um grande número de homens e mulheres no final do século XX se autodenominasse gays, se visse como parte de uma comunidade de homens e mulheres semelhantes e se organizasse politicamente com base nessa identidade (1996: 264).

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De fato, ao retirar da unidade familiar o seu papel tradicional de produtor econômico, o sistema capitalista converteu utilitariamente a família em um espaço de fortalecimento e restabelecimento das relações de afetividade que permitiriam ao operário fabril manter um elevado desempenho profissional, como o sistema exigia. Inesperado neste processo foi o fato da família nuclear passar a ser, antes de mais nada, um espaço de busca de bem-estar e felicidade, onde se colocam sentimentos acima de obrigações. Abriu-se, assim, o horizonte para novos modelos familiares que transcendem os tradicionais laços de sangue. No dia 24 de março de 2000, a comunicação apresentada pela ILGA-Portugal na Cimeira Alternativa definiu o significado de família para esta associação LGBT: Como unidos de fato que muitas vezes também somos, somos também a favor da família, entendida como local privilegiado de afetos, e não como um negócio jurídico. Para nós a família é a velha família que herdamos - e que em muitos casos está em crise grave - mas são também as novas famílias de casais do mesmo sexo, mães solteiras, mães lésbicas, pais solteiros, viúvos, gays, bissexuais, transexuais, famílias de filhos adotados, de filhos inseminados, todos os que sentem em família, no lar onde são criados, cuidados, tratados e amados {Rodrigues, 2000). Esta transformação afetou a própria família heterossexual. O número de fi. lhos por casal, por exemplo, diminuiu drasticamente, uma vez que as crianças, deixando de ser necessárias para a economia doméstica como mão-de-obra, passaram a ser desejadas por razões afetivas. O desenvolvimento dos mercados representa também uma maior circulação de pessoas e bens, o que fomenta a troca de informações e experiências que, de outra forma, permaneceriam desconhecidas. É neste sentido que Antônio Serzedelo, presidente da Opus Gay, argumenta que a aposta política no crescimento econômico trouxe para Portugal as importantes estradas, as importantes pontes, que trazem ou não levam coisa nenhuma, mas isso é outra questão, e que trouxeram também por essas estradas muitas idéias européias caras às burguesias urba342

PARA LIBERTAR

nas. E, como efeito secundário certamente não previsto, vieram também com isso, nos aviões, nos ônibus, nas ferrovias, estas idéias liberalizantes que são conseqüência da liberalização do capital. É uma conseqüência contraditória do capitalismo. Por um lado, obriga as pessoas a aceitarem as sexualidades de cada um; por outro lado, ao próprio capital não interessa que haja homossexuais, porque parte do princípio de que precisa de mão-de-obra, e portanto os homossexuais não seriam criadores de mão-de-obra porque não podiam ter filhos {Santos e Fontes, 1999), E, de fato, a década de 90 testemunhou o nascimento de um mercado LGBT português, constituído sobretudo por espaços de diversão noturna, especialmente bares e discotecas, mas também saunas, uma agência imobiliária, um hotel, uma agência de viagens, uma livraria e a revista Korpus 8, além dos diversos serviços disponibilizados pelas próprias associações. Portanto, parece já haver a percepção de que os homossexuais são também consumidores, cujo poder de compra constitui um importante fator de atração comercial, embora em Portugal a expressão deste mercado ainda se afaste das indústrias "rosa" de países como os Estados Unidos, o Reino Unido ou mesmo a Espanha. Não obstante, o desenvolvimento do poder socioeconômico deste grupo tem fortalecido a sua capacidade de negociar direitos sociais e políticos, bem como um crescimento na visibilidade pública da homossexualidade. Como diz Santos, "muitos dos grupos sociais 'diferentes', minorias étnicas e outros, começaram a ter recursos organizativos suficientemente importantes para colocar na agenda política as suas necessidades e aspirações específicas" (1999: 23). No outro lado desta moeda, a ideologia capitalista surge como gênese da opressão sexual, aspecto sobre o qual me debruçarei nas próximas linhas. Alguns estudos identificam a família nuclear burguesa - definida como institucionalização econômica das relações pessoais no contexto do sistema

em 1996 e sendo a única publicação periódica exclusivamente gay, a Korpus apresenta uma cobertura dos eventos gays nacionais, entrevistas com as principais figuras do movimento homossexual português, artigos de opinião e divulgação de conteúdo gay. Conta atualmente com cerca de duzentos assinantes. 8Nascida

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capitalista- como o principal fator de justificativa para a homofobia. 9 Esta opressão remonta ao período de implementação do modelo familiar burguês, quando é incorporada a "sexualidade economicamente útil e politicamente conservadora" de que nos fala Foucault (1994: 41). É com este modelo familiar que se introduz a divisão sexual do trabalho segundo a qual a mulher funcionava como uma garantia da estabilidade doméstica, cuidando das roupas, da alimentação, da limpeza e das crianças. Este papel, embora servisse plenamente aos propósitos do sistema econômico, não tinha tradução direta no reconhecimento social a ela atribuído, remetendo a mulher para a realização de tarefas rotineiras consideradas pouco relevantes. Embora a partir da revolução industrial o mercado de trabalho tenha, progressivamente, absorvido mão-de-obra feminina, o papel tradicional da mulher no lar não se alterou radicalmente (Ferreira, 1981). Na verdade, a ideologia capitalista construiu e disseminou fortes dicotomias sexuais que atribuem a homens e mulheres papéis diferentes e freqüentemente opostos. 10 A homofobia é uma das faces desta ideologia patriarcal, uma vez que sujeitos, sejam eles homens ou mulheres, que se consideram iguais e lutam com ações e discursos idênticos pelo direito à diferença, constituem uma verdadeira ameaça a um sistema construído com base em divisões dicotômicas em função também do sexo. Em outras palavras, a burguesia, aterrorizada pelo espectro comunista da igualdade entre homens e mulheres, classifica a igualdade sexual como não-natural. A homossexualidade é também classificada como não-natural e, como tal, uma ameaça ao domínio burguês, precisamente porque rejeita a "natural" sociedade burguesa refletida na "natural" relação burguês/proletário da família nuclear (LARG, 1996: 350).

9Ver, entre outros, LARG, 1996. Greenberg e Bystrin (1996) identificam cinco fatores que relacionam o advento da ordem capitalista com a estigmatização da homossexualidade: a) intensificação da competitividade no trabalho; b) desenvolvimento de uma ética de autocontenção contrária à expressão da sexualidade; c) maior divisão sexual do trabalho; d) fortalecimento da ideologia protetora da família; e e) interpretação do desvio pela medicina. 10 Ver, entre outros, Joaquim (1998) e Müller (1998). Sobre a construção social da diferença entre mulheres e homens na política, ver Osório (2002).

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RECONHECER

PARA LIBERTAR

Ainda nos nossos dias há trabalhadores homossexuais que são despedidos ou têm sua carreira profissional prejudicada - o que é chamado na gíria de "ficar na prateleira" - por motivos que, longe da esperada avaliação de desempenho, se prendem claramente à orientação sexual inferida ou assurnida.11 O conhecimento desse tipo de discriminação que atinge trabalhadores LGBT levou à aprovação de urna moção de apoio às reivindicações do Movimento de Gays, Lésbicas e Travestis no 6° Congresso Nacional da Central Única de Trabalhadores, realizado em São Paulo, no Brasil, em agosto de 1997: O 6º Concut resolve: (... ) combater a homofobia dentro dos sindicatos e locais de trabalho, desenvolvendo uma política que vise a supressão da discriminação contra gays, lésbicas e travestis trabalhadores nas organizações sindicais, e na sociedade em geral, em comum acordo com as entidades que já lutam contra esse preconceito (CUf, 1997: 61). Fora do âmbito do trabalho, cada vez que é rejeitada a custódia de um filho a um pai ou a urna mãe homossexual, que um casal de lésbicas evita manifestações públicas de carinho ou que um gay é espancado por não ser heterossexual, estamos perante uma subjugação da diferença à hegemonia heterossexual, o que também serve aos interesses econômicos dominantes. O fato de esta opressão ser exercida em função da sexualidade, como também acontece em função de raça, classe ou sexo, revela quão poderosas são as armas do capitalismo para destituir os sujeitos do poder de resistir, remetendo-os ao isolamento e à invisibilidade pelos motivos mais diversos. Além dessas formas mais diretas de exclusão por homofobia, o alegadamente superior poder econômico dos homossexuais não é condição suficiente para a sua emancipação. Em mensagem difundida via e-mail em agosto de 2000, a organização australiana Queers United to Eradicate Economic 11 Em reportagem realizada em 1998 sobre a homossexualidade em Portugal, podiam ser lidos exemplos de situações concretas: "Como a de Rui Martins, 35 anos, publicitário, que sustenta que foi por suspeitarem da sua preferência sexual que, no banco lisboeta onde trabalhou durante cinco anos como caixa, nunca o promoveram." Revista Visão, 24-30/09/1998, 73.

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Rationalism (Queers) alertava para a falsa aceitação de que os homossexuais aparentemente estariam a beneficiar pelo fato do poder econômico considerálos um bom nicho de mercado. Na referida mensagem, o grupo rejeitava essa pretensa aceitação, argumentando que "o nosso lugar de direito na sociedade não deve ser comprado. A libertação não virá do consumo" (Queers, 2000). Esta atitude de rejeição de um estilo de vida LGBT caracterizado por uma elevada capacidade de consumo está na base da realização do "Queeruption", uma celebração de orgulho gay alternativa, ostensivamente pouco comercial e fortemente politizada, planejada para Londres e São Francisco, visando combater a imagem de uma identidade gay que parece "ter menos a ver com a orientação sexual e mais com a marca da cerveja que você bebe, o carro que dirige ou como decora sua casa" (Fox, 2001). O bairro madrilenho de Chueca é outro exemplo. Embora seja um espaço aparentemente receptivo à comunidade LGBT, onde o comércio e a indústria se desenvolveram tendo em vista o consumidor gay 12, a verdade é que Chueca não é mais do que um gueto comercial, em torno do qual se desenvolveu um determinado estilo de vida LGBT, isto é, uma comunidade com poder de compra, que cuida do corpo e que se dilui, sem muitas inquietações de cunho identitário, no seio de uma sociedade que continua a ser patriarcal e heterossexista. Uma vez mais, o consumo não implicou uma efetiva inclusão cidadã, mas somente a apropriação de um bairro circunscrito. Um dos maiores riscos do "consumo rosa" é a subversão dos objetivos emancipatórios das associações LGBT, como aponta Eugeni Rodriguez (2000), da Frente Gay de Libertação da Catalunha: A construção desta rede passa por ridicularizar, marginalizar e criminalizar o movimento de libertação gay. (... )A união de empresários gays com políticos, desejosos por normalizar a homossexualidade, é a base deste lobby. Os direitos dos gays já não passam pelo confronto, mas por se encaixarem na

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PARA LIBERTAR

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Em Portugal, Sérgio Vitorino (2000) tem alertado para o perigo de se confundir o papel das associações, como rede de apoio e integração dos jovens LGBT, com o papel desempenhado pelos estabelecimentos comerciais, voltados sobretudo para a diversão, o consumo e a maximização do lucro. 13 Uma diferença óbvia entre ambos é o fato de um homossexual pobre, habitando em meio rural, aterrorizado pela possibilidade da sua orientação sexual ser denunciada socialmente, apresentar muitas diferenças em relação a outro homossexual cuja capacidade econômica permite integrar circuitos de turismo gay, participar de festas privadas ou ir assiduamente a saunas e bares noturnos na capital.

2. CONDIÇÕES E ESPECIFICIDADES JURÍDICAS, SOCIAIS E RELIGIOSAS DO PAÍS

Para entender a emergência do movimento LGBT português, é necessário enquadrá-lo em seu contexto espaço-temporal, cujas especificidades decorrem também da posição semiperiférica que o país ocupa no sistema mundial. Com efeito, a sociedade portuguesa apresenta características que a aproximam dos países centrais, paralelamente a outras que a equiparam aos países periféricos. 14 A crescente aproximação do país ao resto da Europa, que culminou com a adesão à União Européia em 1986, conduziu ao esforço de equiparar o aparelho jurídico nacional às constituições e códigos legais de outros países europeus. Oito anos após a revolução democrática de 1974, e na esteira desta lógica de aproximação à Europa central, houve uma reforma do Código Penal português em 1982. Afirmando o princípio de que a tarefa do direito penal é a proteção da liberdade de determinação e a autenticidade da expressão sexual das pessoas, e não a tutela da moralidade sexual, o novo Código Penal deixa de criminalizar as condutas sexuais livremente praticadas por adul-

sociedade de consumo, limitando a ação a certos bairros e certos horários.

12 Recentemente, eram visíveis nas ruas de Chueca cartazes com a frase "Afirma-te, consome Gay!".

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13 Na mesma linha, Quiroga afirma: "Os consumidores do sexo capitalista tornam-se membros isolados de uma categoria tribal cuja sexualidade é comercializada nas saunas, onde o simulacro do sexo exerce uma alienação" (1997: 147). 14Tal ambigüidade faz com que a sociedade portuguesa possa ser entendida como entidade social anômala {Santos, 1992: 105).

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o t os, na privacidade. Estão incluídos neste caso, entre outros, o adultério, , d' incesto a prostituição ou a homossexualidade - que figuravam nos co igos ' (inclusive no projeto reformador de 1966) como " cnmes . anteriores contra a honestidade" ou "crimes contra os costumes". Só os "crimes sexuais" são agora puníveis: a violação, o estupro, o ultraje público ao pudor e o ate~ta~ do ao pudor de menores. E, por esta razão, o novo código passa a pumr a homossexualidade apenas nos casos que envolvem menores de 16 anos (Artigo 207º). Com as alterações introduzidas no Código Penal em 19~5, as relações homossexuais com um/a adolescente entre 14 e 16 anos contmuam a ser punidas, ao que se contrapõem as relações heterossexuais nas mesmas circunstâncias, em que o legislador admite a possibilidade de o/a menor com idade superior a 14 anos dar o seu consentimento informado (artigos 174º e 175°). Uma das especificidades de Portugal é a freqüente inconsistência entre a lei formal e a sua efetiva aplicação. Essa realidade afeta também o modo como a sexualidade é vivida, permitindo a manutenção de atitudes e comportamentos pouco coerentes quando confrontados com a progressividade legal que se procura afirmar. Tal descompasso pode operar por diversas formas: um excessivo intervalo temporal entre a aprovação da lei e a sua regulamentação; a não aplicação ou a aplicação seletiva da lei; ou a utilização instrumental da lei (Santos, 1992: 135 e ss.).u Desde o último quarto do século XX, a sociedade civil portuguesa tem conquistado espaço no campo da reivindicação, sendo palco de emergência e ação dos diversos movimentos sociais, o mais recente dos quais é o movimento LGBT. Todavia, quase meio século de ditadura e a permanência de um forte poder ideológico alimentado pela moral católica (analisada adiante), resultou em um visível déficit de intervenção no espaço público, patente na fraqueza dos movimentos sociais existentes. 16 Ao contrário do que acon-

upara um fenômeno do mesmo tipo no contexto colombiano, ver Villegas e Uprimny (2002). . t6Como afirma Rodrigues, "sendo o conflito e a insatisfação inerentes a toda a sociedade, a formação dos movimentos sociais não depende deste tipo de fatores, mas sobretudo dos recursos materiais e humanos indispensáveis para canalizar o descontentamento e a busca de objetivos coletivos" (1995: 3-4). 348

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teceu em muitos países centrais, Portugal não teve nenhum movimento social forte, embora existam associações ativas em matéria de direitos das mulheres, combate ao racismo ou, mais recentemente, proteção ambiental. Se relacionarmos o déficit de intervenção da sociedade civil portuguesa com as características da sua base social de apoio, constata-se que "a fragilidade dos movimentos de contestação se deve ao reduzido peso das novas classes médias e, conseqüentemente, ao fato de as populações (rurais) apenas se mobilizarem quando os seus interesses materiais e imediatos estão ameaçados" (Rodrigues, 1995: 7).17 A fraqueza da participação cívica é contrabalançada por momentos de forte ativismo e mobilização de determinados setores da população em torno de questões que afetam e/ou ameaçam diretamente o quotidiano das pessoas. Foi assim que, em 1998, o país assistiu à súbita eclosão de grupos de cidadãos, organizados no espaço de dois meses para fazer campanha no período que antecedeu o referendo sobre a despenalização do aborto. 18 Em um país onde as questões das políticas sexuais e dos direitos reprodutivos não têm uma tradição aprofundada, assistiu-se a um aceso debate público sobre sexualidade, no qual, além dos especialistas, o cidadão comum desempenhou um papel ativo. Tal participação em tempo de campanha não teve, apesar de tudo, tradução direta no grau de participação no referendo, cuja votação ficou em torno de 31,94%. A (não) participação cívica dos portugueses em debates ou movimentações em torno de questões sociais é em grande parte influenciada pela posição que a Igreja Católica assume em relação aos diversos temas em causa. Na verdade, o clero português tem demonstrado um forte poder de intervenção social, quer de bloqueio, quer de mobilização, determinando em muitos casos o rumo tomado pelas decisões políticas. Dado o papel central desempenhado pela religião em Portugal, particularmente 17Em contextos diferentes, outros fatores explicam a ausência de uma forte tradição de movimentos sociais. Na Colômbia, por exemplo, a violência desempenha um papel central. Ver Villegas e Uprimny (2002). 18 No dia 14 de maio de 1998 terminou o prazo para os grupos de cidadãos se inscreverem na Comissão Nacional de Eleições, a fim de obterem tempo de TV durante a campanha. lnscre· veram-se oito grupos: três a favor da despenalização e cinco contra.

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incisiva em matéria de sexualidade, é sobre ela que me debruçarei em seguida. 2.1. O catolicismo português

A sociedade portuguesa é profundamente marcada por uma forte influência moral judaico-cristã 19 , reforçada pelas freqüentes intervenções da Igreja Católica em matéria de sexualidade. De fato, a Igreja Católica portuguesa há muito se habituou a definir as fronteiras entre o socialmente desejável e o moralmente condenável, e é entre estes dois pólos que se disputa o jogo da emancipação sexual. Como veremos, a moral religiosa dominante bloqueia tanto a emancipação da mulher (reprovando sistematicamente o uso de contraceptivos, a interrupção voluntária de gravidez ou o direito ao sacerdócio), quanto o reconhecimento dos direitos LGBT (manifestando-se publicamente contra as uniões de fato entre homossexuais, entre outros exemplos). No que diz respeito à contracepção, em março de 1996, um anúncio televisivo elaborado por uma organização não governamental (ONG) de luta contra a Aids mostrava um padre entregando um preservativo a um jovem casal no pátio da Igreja. A Igreja Católica reagiu violentamente, considerando o anúncio um disparate de mau gosto. 20 Em 1998, a propósito do anteriormente mencionado referendo sobre a despenalização do aborto, o clero teve uma clara influência sobre os resultados obtidos. No dia 3 de fevereiro de 1998, como resultado de uma reunião da Conferência Episcopal Portuguesa, foi publicada uma carta pastoral afirmando que, "em caso de referendo, 'os católicos e demais cidadãos não podem alhear-se, sendo seu dever pronunciar-se a favor da vida"'. 21 Na semana que antecedeu o referendo, a catedral de Braga, no Norte, expôs dois carta19Em 1993, um estudo coordenado por Luís de França dava conta de uma supremacia evidente do catolicismo em face das restantes denominações religiosas: entre os entrevistados que afirmaram ter uma religião (72%), 97% identificavam-se como católicos. O perfil do cidadão português mais religioso corresponde a uma mulher (65%), residente em meio rural (80%) e idosa (53%) (França, 1993: 139). 20 Cf. jornal Expresso, 30103196. 21Jornal Público, 21 fevereiro 1998.

zes com o seguinte apelo: "Com inteligência e em consciência, não ao aborto" (Praça, 1998: 8). Entre muitos outros exemplos, a estratégia da Paróquia de Nossa Senhora de Lourdes, em Coimbra, consistiu em acrescentar no seu boletim semanal testemunhos e artigos invariavelmente contrários à despenalização. 22 Esses exemplos descritos - baseados na posição pública da Igreja Católica quanto aos temas da contracepção e do aborto - ilustram uma atitude de manifesto conservadorismo em matéria de sexualidade, bem como uma tentativa de manutenção de um forte poder de controle moral. É esse poder que a Igreja Católica também procura exercer em relação à orientação sexual. Daí que as suas intervenções públicas em matéria de orientação sexual sejam registradas sobretudo em momentos de decisão política a respeito dos direitos LGBT no país. No contexto mexicano, a propósito do poder de controle da Igreja católica quanto à orientação sexual, Mejía afirma: Com a sua perspectiva medieval sobre a homossexualidade, a Igreja foi o verdadeiro autor moral de um ambiente opressivo num passado não muito distante( ... ) e dos preconceitos anti-gay. (... )As regras escritas e não escritas do Estado visando salvaguardar a moral e a decência pública mexicanas foram copiadas dos ensinamentos da Igreja (2000: 53).

22Paralelamente

a todas estas manifestações, ora diretas, ora sutis, de autoridade religiosa em matéria legislativa, a imprensa nacional dava conta de afirmações contraditórias por parte de altos membros do clero português. Assim, em abril de 1998, D. Januário Torga! Ferreira, se· cretário da CEP, sustentava que não haveria qualquer envolvimento da Igreja Católica na campanha para o referendo sobre o aborto (jornal Público, 21/04/1998). Em junho, em entrevista a Visão, D. José Policarpo, Patriarca de Lisboa, admitia que "algumas afirmações de bispos, tal como aparecem entre aspas, sendo fiéis ao essencial da doutrina da Igreja, são apresentadas com uma linguagem que eu não usaria" (Boas, 1998: 30). Contudo, as evidências são do oposto, acionando múltiplos mecanismos da Igreja no sentido de induzir ao voto contra a despenalização do aborto. Foi à luz deste potencial de mobilização social da Igreja Católica portuguesa que os analistas políticos e sociais interpretaram os resultados do referendo realizado a 28 de junho de 1998, em que a vitória do "não" evidenciou uma clara divisão de fronteiras entre o país católico e conservador do Norte e o país laico e liberal do Sul (Moreira, 1998; Santos, 2001). 351

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Também em Portugal a intervenção religiosa é responsável pelo bloqueio sistemático dos esforços sociolegais mais progressistas, promovendo conceitos como 0 pecado e a normalidade, difundindo medos e instigando desaprovação e rejeição. Apenas um exemplo, entre muitos possíveis: em 1994, um jornal nacional deu destaque à manchete da intenção da Juventude Socialista de legalizar as uniões de fato entre homossexuais. 23 Essa notícia suscitou comentários duros e de conteúdo homófobo por parte do então arcebispo de Braga, D. Eurico Dias Nogueira: O Estado será em breve a primeira vítima, porque um Estado que não se baseia nas famílias bem constituídas é um Estado frágil. [... ]O que fez cair o Império Romano não foram as lanças dos povos bárbaros, mas a desagregação familiar (jornal Expresso, 13/06/94 ).

Algum tempo depois, o mesmo arcebispo voltou a afirmar, no mesmo órgão de imprensa, a sua oposição à legalização das uniões de fato entre homossexuais: Classificar como família uma união homossexual é um abuso, é um disparate. Não questiono a existência de pessoas que enveredam por esses caminhos e os seus direitos. O problema é que querem chamar família àquilo que não pode ser família de modo nenhum (Rodrigues, 1994: 19).

Em uma carta pastoral intitulada "A Igreja na sociedade democrática", publicada em 2000, a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) manifestou o seu repúdio à recomendação do Parlamento Europeu aos Estados-Membros da UE, de 16 de março, no sentido de garantir às famílias monoparentais e às uniões de fato direitos idênticos ao casamento. Rejeitando uma equiparação entre os conceitos de "uniões de fato" e "família", a CEP colocou-se ao lado do Conselho Pontifício para a Família que, no documento "Família, matrimônio e uniões de fato", datado de novembro de 2000, afirmava que as uniões de fato entre homossexuais "constituem uma

2.10 jornal citado é o Expresso, de 13/06/94.

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deplorável distorção do que deveria ser a comunhão de amor e vida entre um homem e uma mulher, que se empenham ao dom recíproco de si e se abrem à geração da vida". No dia 26 de abril de 2001 a Conferência Episcopal Portuguesa tornou público um documento intitulado "Crise da sociedade - Crise de civilização", em que analisava o reconhecimento legislativo do Parlamento português das uniões de fato para pessoas do mesmo sexo, no mês anterior, acusando o legislador de lesar a "dignidade da família". Na opinião dos bispos portugueses, a aprovação da lei das uniões de fato revela "intenções de alguns grupos de provocar rupturas estruturais, em relação à tradicional cultura portuguesa, ou mesmo em relação à influência da doutrina da Igreja na sociedade", para concluir que tal alteração cultural é prenúncio de uma crise da civilização. Contestada por determinados setores político-sociais e louvada por outros, esta posição pública da Igreja católica reafirmou o poder de contestação e intervenção de que ainda dispõe em matéria de contro· le da moral sexual. Transpondo esta visão clerical para as crenças e atitudes dos portugueses, verificamos uma grande rejeição da homossexualidade masculina e feminina entre os católicos praticantes. Se, entre os não crentes, a taxa de aceitação das relações sexuais entre gays e entre lésbicas se situa em 22,6% e 24, 1% respectivamente, esta percentagem cai para 16,8% e 17,6% entre os católicos não praticantes, e para os 5,5% entre os católicos praticantes e crentes de outras religiões (Pais, 1998: 442). Ora, se considerarmos que 72% dos portugueses se identificam como religiosos e que, entre estes, 970/o são católicos (França, 1993), fica evidente a influência incontornável da moral católica dominante nas decisões políticas que afetam diretamente os cidadãos LGBT, bem como no processo de emergência e consolidação do movimento LGBT em Portugal. É, de resto, este o processo abordado na próxima seção.

3. A EMERG~NCIA DO MOVIMENTO LGBT EM PORTUGAL

A conquista da democracia por intermédio da revolução político-militar de abril de 1974 gerou um clima de abertura ideológica aparentemente favorá353

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vel à aceitação daqueles que o regime silenciara durante quase meio século. Ao longo do período revolucionário, surgem algumas manifestações de mobilização lesbigay no país. Em 1974, quando da comemoração do 1° de Maio, no Porto, aparece um cartaz onde se lê "Liberdade para os hom~sse­ xuais". No dia 13 de maio desse mesmo ano o Diário de Lisboa publica o manifesto do Movimento de Ação Homossexual Revolucionária (MAHR), intitulado "Liberdade para as minorias sexuais". 24 Seis anos depois, em 25 de outubro de 1980, nasce o Coletivo de Homossexuais Revolucionários (CHOR). Apesar da sua importância como primeiro motor de dinamizaçã~ coletiva dos homossexuais portugueses, o CHOR acabou desaparecendo dois anos depois. Durante a década de 80, verificam-se ainda dois outros acontecimentos que afetaram diretamente o meio lesbigay português: em primeiro lugar, o ciclo de debates "Ser (Homo)sexual", realizado em 1982 no Centro Nacional de Cultura, unanimemente considerado o primeiro grande debate público sobre o tema; depois, o 1 e o II Congresso Nacional de Sexologia, realizados em 1984 e 1987, nos quais o tema da homossexualidade foi abordado em um painel de discussão. Exceção feita a estas movimentações, a década de 80 acabou ficando aquém das expectativas de muitos em face do que era uma realidade em países como a Grã-Bretanha, a França ou os Estados Unidos. 25 Mas se essa década pode ser caracterizada por uma série de pequenos acontecimentos dispersos, com destaque para os debates, os anos 90 foram marcados pela emergência de diferentes associações LGBT em Portugal e pelas ações que estas levaram a cabo. Daí que me pareça oportuno apresentar em seguida as principais associações lesbigays portuguesas, responsáveis pelo trabalho feito ao longo de mais de uma década. Z nunca foi resolvido. Conta-nos Ana A.: Eu estava desesperada. Durante todo o processo de constituição dos comitês na OTM, insistiu-se muito na necessidade da mulher lutar para atingir a sua emancipação completa, para gozar de liberdade e igualdade de

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direitos em relação aos homens. Insistiu-se também que todas as estratégias tinham de ser baseadas na solidariedade entre as mulheres. Além do mais, uma das funções dos comitês era servir de base para desenvolver a solidariedade. Se eu estava sofrendo perseguições no meu sindicato por causa das minhas posições em defesa dos interesses da mulher, os outros comitês deviam defender-me, sobretudo o comitê da OTM! Afinal de contas, onde está a solidariedade? O que se passa é que os dirigentes dos sindicatos oficialmente aceitaram a criação dos comitês, mas no fundo têm medo de deixar as mulheres assumirem posições de maior importância nos sindicatos. Na maior parte das vezes compreende-se que eles pensam que a mulher não pode ter os mesmos direitos que os homens, talvez porque a considerem inferior.

Ana A. teve outros conflitos, mais abertos, em torno da gestão dos financiamentos do comitê do seu sindicato. O secretário geral tinha desviado uma parte das doações destinadas a seminários de formação. Ana A., privada de recursos para desenvolver as atividades previstas, denunciou esta situação no sindicato e junto aos doadores, tendo conseguido juntar provas. 71 O final deste processo foi a demissão de Ana A. e do seu marido, igualmente empregado da empresa. Segundo ela, esta decisão foi sugerida à empresa pela direção do sindicato e excluí-la definitivamente do comitê. Com efeito, não sendo mais assalariada da empresa, sua filiação ao sindicato deixa de ser possível. O que parece corroborar a versão contada por Ana é que as demissões relacionadas ao ajuste das empresas privatizadas recaem sobretudo sobre trabalhadores não qualificados, o que não é o seu caso nem o do

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seu marido. 72 Ana A. procurou defender-se enviando cartas às instâncias superiores do sindicato e da central sindical, e ao Fórum Mulher, uma ONG que coordena a atividade das organizações femininas. Aí ela enumera a provas da má-fé da direção do sindicato, especialmente porque a aprovação do licenciamento pelo comitê sindical da empresa foi feita antes que a informassem. Como o secretário-geral do sindicato é primo de um gerente da empresa, Ana A. suspeita que o licenciamento foi sugerido por esta via. Por outro lado, ela denuncia a ausência de transparência na tomada de decisões. O secretário-geral é o único a ter o direito à palavra e utiliza a intimidação em relação a outros membros do secretariado. Ana A. nunca recebeu resposta às suas cartas e, muito chocada, acusa os seus superiores, e em alguns casos apresenta evidências, de compromissos com as direções masculinas dos sindicatos, usando como pretexto para a não intervenção a autonomia dos sindicatos nacionais. 73 Ana A. lutou e não se calou. Uma das suas estratégias foi informar pessoalmente o maior número de secretárias dos comitês sobre a sua situação, 0 que levou a que em um seminário estas levantassem o problema e exigissem uma tomada de posição. Este tímido protesto foi imediatamente silenciado e não avançou. Por outro lado, Ana A. conseguiu fundos e viajou mais de 800 quilômetros para se encontrar com o presidente do Conselho Fiscal Nacional do seu sindicato, e exigir que as irregularidades no processo fossem investigadas. Este concordou com ela, mas confessou não ter coragem de desafiar a direção executiva do sindicato. Mais uma vez, nada aconteceu. Este exemplo questiona seriamente a aplicação de uma política de igualdade entre homens e mulheres nos sindicatos. Ana A. sublinha com um certo fatalismo que a diferença entre o que se escreve e a realidade é enorme:

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Os sindicatos combatem de várias formas os Comitês das Mulheres. Eles procuram manipular e intimidam as sindicalistas que dizem não. Apesar de toda a democracia que é proclamada, os sindicatos funcionam de maneira autocrática, autoritária e antidemocrática (entrevista pessoal).

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Este último recebeu uma formação média em Cuba. 0utras sindicalistas confirmaram-nos a versão de Ana A. (Marta M., entrevista da autora, 1997; Esmeralda M., entrevista da autora, 1997).

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desvio de fundos foi confirmado pela agência que financiava a atividade do comitê. 412

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Entre 1997 e 1999, Ana A. concebeu e dirigiu, com o apoio de ag~ncias de ajuda internacionais, um projeto de formação contínua para mulheres sindicalistas, não filiado a nenhum sindicato, no qual envolveu todas as militantes dos comitês, inclusive arranjando-lhes pequenos trabalhos remunerados. Este projeto foi suspenso em 2000 por falta de financiamento e no momento em que redijo este capítulo Ana A. está desempregada. Esmeralda M. foi secretária dos comitês na Consilmo. Tem 42 anos, é viúva e tem dois filhos. A sua família investiu muito na educação dos filhos e ela pôde fazer os estudos secundários na Missão Suíça e formou-se como professora primária. Esmeralda M. foi uma das primeiras sindicalistas que entrevistei e mostrou-se bastante reservada, revelando-se mais aberta apenas após o quarto encontro. Quando nos tornamos mais próximas, deu uma contribuição insubstituível ao meu trabalho. Esmeralda M. conhece o caso de Ana A., mas não pode intervir porque não pertence à OTM-CS. Esmeralda M. começou a sua vida profissional em 1974 como professora primária em um distrito da província de Maputo. Interessada nas grandes mudanças políticas da época, ela regressou à grande cidade, Maputo, antes mesmo da independência. Começou a trabalhar em 1975 como assalariada em um sindicato classista que vinha desde o tempo colonial. Com a dissolução do sindicato, conservou o mesmo emprego nos recém-criados Conselhos de Produção e mais tarde, quando foram criados os sindicatos por ramo, integrou-se em um dos três que posteriormente iriam dar origem à Consilmo. No sindicato, Esmeralda M. começou como caixa e progressivamente evoluiu na carreira. Neste percurso, concluiu o ensino secundário e freqüentou cursos noturnos de contabilidade. Quando a conheci, era a assalariada mais qualificada no setor de contabilidade. Formou outros funcionários, entre os quais aquele que foi seu chefe, o secretário da Administração e Finanças do sindicato nacional. A competência profissional de Esmeralda nunca foi reconhecida e ela queixava-se: "Sou a assalariada mais antiga do meu sindicato, mesmo em relação àqueles que ocupam lugares de direção. O único 414

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sinal de reconhecimento é a referência a esta antigüidade durante as reuniões, como se fosse o arquivo histórico do sindicato. "74 Esmeralda M. descreve-se como sendo "honesta" e afirma que isso não a ajudou na organização. Em 1997 rebaixaram-na dois escalões na categoria. Na origem desta decisão estava a direção, que se justifica dizendo que ela estava com sobrecarga de trabalho e precisava descansar. Esmeralda considera que essa atitude foi motivada pela vingança e pela precaução. Na prática, era ela quem controlava a quase totalidade das finanças do sindicato e não admitia fraudes nos expedientes que eram da sua responsabilidade: "Eles chamaram-me 'travão' porque eu só pagava as despesas bem fundamentadas." O seu nome foi indicado para dirigir a comissão constitutiva dos comitês, quando foi formado o Slim, que mais tarde se converteu em Consilmo. Na época Esmeralda M. era bastante próxima daquele que viria a ocupar o lugar de secretário-geral do sindicato. Conhecia a corrupção existente e acreditava que o novo candidato poderia melhorar a situação da organização. Assim, o apoiou e, sendo mais letrada que os outros, participou ativamente da elaboração dos novos estatutos do Slim. Mas assim que o "seu" candidato tomou a direção do sindicato ela foi posta de lado. Além disso, depois de ter sido eleita secretária dos comitês, teve de enfrentar novas lutas, o que não contribuiu para melhorar as suas relações com a direção. Esmeralda queixa-se de ter recebido inúmeras propostas amorosas por parte do secretário-geral e de outros membros do secretariado. Quando de viagens ao exterior para conferências, quando os grupos eram mistos, o hábito era "a meio da noite, o teu colega ou o teu chefe vêm bater-te à porta. Em geral, a essa hora já estavam bêbados". Esmeralda afirma nunca ter cedido, e esse comportamento suscitou um certo espanto, já que dificilmente os seus colegas aceitavam que uma mulher só, como ela, recusasse suas propostas. Aliás, por este motivo, começou a ser chamada de "mulher-homem" e outros epítetos. Ela afirma não dar importância a este tipo de atitude. Um problema importante para Esmeralda M. continua a ser a corrupção, que define como a utilização dos meios e dos bens da organização para fins

74Citação do documento que Esmeralda M. escreveu a meu pedido, no qual apresentava a sua situação e o seu sentimento em relação ao funcionamento dos comitês e dos sindicatos.

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pessoais, sem respeito pelos objetivos fundamentais dos sindicatos. Esta corrupção assume diversas formas: desvio de fundos, utilização indevida de verbas e favoritismo. Os métodos autoritários são resultado desta situação, necessários para silenciar as críticas e os dissidentes. A oposição masculina à atual direção do sindicato, também chamada "oposição muda" (Roserat, 1991: 64), tentou recrutar Esmeralda M. para suas fileiras, mas ela se mantém de lado, mesmo que partilhe algumas das posições. Ela pensa que além das críticas está a ambição, o desejo de substituir os atuais dirigentes "para poder fazer a mesma coisa", como já aconteceu antes. Não quer ser novamente instrumentalizada. No que diz respeito às relações entre a direção e os comitês, Esmeralda tem consciência do controle exercido sobre as suas atividades e seus militantes: No interior [do sindicato] o comitê é ignorando, salvo quando chegam delegações. As mulheres são então convocadas, somente para mostrar. Nestas ocasiões, a menor palavra é cuidadosamente analisada. Assim, sabe-se quem se deve isolar. Por exemplo, quando houve um curso de formação organizado por uma federação sindical brasileira, as mulheres foram convidadas pela primeira vez. Os professores disseram-nos: "Nós não temos programa. Vocês é que devem levantar as questões a serem debatidas e tentar assim encontrar soluções." Uma das mulheres presentes indicou que havia ausência de democracia no sindicato e uma fraca participação dos trabalhadores das empresas. Ela também disse que eram somente três pessoas que tomavam as decisões, contrariamente aos princípios estatutários. Por causa desta declaração ela foi convocada para uma reunião restrita para analisar o seu comportamento. Recebeu muitas críticas e seu nome foi colocado na lista negra. (... )Uma coisa curiosa é que ninguém ousa fazer nada para corrigir a situação.

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Esmeralda não acredita na solidariedade feminina. Embora tenha boas relações com as militantes dos sindicatos, não tem amigas particulares. Julga duramente as mulheres que, segundo ela, têm medo e receiam a repressão e, ao mesmo tempo, tem muito orgulho na sua reputação de "rebelde". Esmeralda M. é um pouco cínica em relação à situação do sindicato, que considera "sem remédio". Ela pensa que se fosse homem o seu percurso teria sido outro, mas que certamente não estaria do lado dos dirigentes, porque a causa da sua exclusão não reside somente no fato de ser mulher, mas também na sua atitude: "Os chefes gostam que lhes lambam as botas, mas isso eu não consigo fazer". Em 1997, Esmeralda M. queria recomeçar a estudar e mais tarde deixar o sindicato. Esta posição estava em concordância com a opinião da família, que, havia muito, tempo pressionava para que procurasse outro emprego mais bem remunerado e com menos problemas. No entanto, no final daquele mesmo ano ela foi demitida das suas funções como secretária dos comitês na central sindical, por decisão do secretário-geral, sem consultar a assembléia de mulheres sindicalistas que a tinha eleito. Para seu lugar foi nomeada uma sindicalista que, não vivendo na capital, deixa o comitê totalmente inoperante. Esmeralda M. pediu a sua exoneração em 2000 e, com o apoio de Ana A, concorreu a um posto em uma ONG feminina, onde trabalha atualmente.

5. CONCLUSÕES

O comitê não dispõe de orçamento, não tem sequer o material mais elementar, como papel e máquina de escrever (computadores estão fora de questão!). Esmeralda M. lamenta o dinheiro gasto inutilmente, especialmente com a compra exagerada de comida e de bebida cada vez que há recepções. O consumo é sempre elevado e o que resta (garrafas de uísque e de cerveja) é dividido entre os membros da direção e os que são mais próximos.

A incapacidade dos sindicatos, a partir de 1987, de responder aos novos problemas surgidos com a liberalização é reveladora da sua dependência do poder político. São a contestação interna e os movimentos de protesto dos trabalhadores que vão conduzir a um processo de democratização das organizações. No entanto, tanto na OTM quanto na Consilmo os discursos e as práticas que definem e orientam a ação dos comitês revelam uma grande homogeneidade e, simultaneamente, um isolamento em relação ao debate sobre a necessidade de democratização interna. Dirigentes das duas centrais sindicais colocam-se de acordo em limitar a ação dos novos órgãos aos "problemas femininos" e em mantê-los sob estreita dependência dentro da estru-

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tura do sindicato. Os discursos sobre a participação das mulheres e sobre os direitos das trabalhadoras são igualmente conservadores e, sem contestar o princípio abstrato da igualdade, (re)criam a diferença entre os gêneros que legitima as práticas discriminatórias. A história da participação feminina nos sindicatos ganha visibilidade com a criação dos comitês, sobretudo porque as contestações das mulheres antes deste período eram desqualificadas - por serem desenvolvidas em torno da OMM - , ou não terem chegado a constituir-se como movimentos organizados de pressão. No entanto, a adesão das mulheres ao projeto de criação dos comitês revela a consciência da desigualdade, e o processo de constituição, centrado no debate generalizado dos "problemas da mulher", contribuiu para a criação de uma plataforma comum entre as sindicalistas. As militantes sindicais reconhecem-se diferentes, embora este reconhecimento nem sempre implique uma valorização das características consideradas femininas. As três mulheres, cujos percursos apresentamos acima, refletem discursos e estratégias diversos, todos construídos na base de uma presumida identidade feminina. Temos uma postura de aceitação da tutela masculina, pelo menos aparente, e da aplicação nos comitês dos modelos dominantes de organização e de gestão dos sindicatos. É um modelo autoritário, que restringe severamente a participação das militantes, mas que também pode ser visto segundo outras perspectivas. Por um lado, se as lideranças masculinas instrumentalizam esta dirigente, são igualmente e até certo ponto instrumentalizadas em uma luta de poder de cunho marcadamente individual. Por outro lado, os comitês, apesar de tudo, vão sendo progressivamente "aceitos", em uma dinâmica de aceitação/imposição que resulta de uma negociação de espaços de poder: porque se demonstra a sua absoluta importância para a organização sindical, como símbolo ou como aparência de democracia, ao mesmo tempo que se retira o caráter subversivo que potencialmente têm e se ativam mecanismos para torná-los inofensivos para a ordem estabelecida. A própria imposição de modelos autoritários de liderança concorre neste sentido, na medida em que os comitês não introduzem novas formas de participação, mais democráticas, que poderiam reforçar os movimentos de protesto dentro dos sindicatos. 4 18

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Nesta busca de poder, portanto, a estratégia da primeira dirigente passa necessariamente pelo reforço dos comitês na estrutura sindical assim criando espaços que poderão permitir a colocação de novas contestações. Evidentemente, o controle exercido sobre as militantes visa impedir esta possibilidade, mas sua existência é importante para fazer emergir outras vozes. O risco é que se hierarquizem estes espaços de discussão. Temos em seguida um discurso que faz a apologia da solidariedade, que se quer valorizada e materializada na prática dos comitês. As estratégias desta militante são baseadas na reivindicação dos valores implícitos que levaram à fundação dos comitês, e ela nada mais faz do que exigir o seu pleno funcionamento, em nome da "verdadeira" natureza desses órgãos, o que encontra eco entre as outras militantes. Impossibilitadas de prestar o seu apoio à colega, reconhecem, no entanto, que essa seria a conduta mais coerente com os objetivos que norteariam os comitês. Finalmente, a terceira militante não se aceita como diferente pelo fato de ser mulher e reage quando lhe atribuem características e comportamentos femininos, nos quais não se reconhece em absoluto. Embora lutando por maior transparência e participação, acha que essa luta deve ser desenvolvida no interior do sindicato, sem o que os comitês não terão possibilidade de agir. Se não acredita na solidariedade feminina, é porque, afinal, não reconhece a diferença. Lutando para impor os seus direitos, vários são os caminhos encontrados pelas sindicalistas. Aceitando ou recusando os modelos impostos, a contestação à dominação masculina no sindicato toma a forma de reivindicações pela cidadania. Recusa-se, na prática, a abstração da figura do indivíduo "perante a lei", despojado das suas características sociais, que constitui a base legal da cidadania. Esta igualdade perante a lei não é um princípio de igualdade social, mas sim de neutralidade e imparcialidade entre as partes, que aparecem como iguais perante a lei, que faz caso omisso das causas sociais da desigualdade, sejam elas a riqueza, a classe ou o sexo, e trata os indivíduos sem as características sociais da desigualdade (Cohn e White, 1997). No entanto, embora investindo na "formação de gênero" das sindicalistas e das lideranças dos sindicatos, as estratégias dos comitês vão no sentido de uma "promoção da mulher" e raramente são contestadas as relações de poder que 4 19

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determinam a desigualdade de gênero. Mas até que ponto o isolamento das organizações de mulheres, a sua fragilidade financeira e a dificuldade em obter apoio local e internacional permitem outras opções? Cinco anos após a sua criação, no balanço do funcionamento dos comitês cabe destacar um envolvimento cada vez maior das mulheres sindicalistas nas suas atividades, no nível nacional e nas empresas, bem como a lenta mas progressiva implantação nos sindicatos nacionais e nas centrais sindicais. Embora a estratégia dominante seja a de evitar o confronto direto, na prática estão sendo criadas condições para que, quando as sindicalistas decidam lutar de maneira mais frontal e aberta pelos seus direitos, disponham do fórum e dos órgãos apropriados para fazerem ouvir suas vozes. Mas até o momento o conto de fadas da solidariedade entre as mulheres, uma armadilha na qual se cai facilmente - talvez porque se quer acreditar nele-, só existe na medida em que as condições o permitem e as estratégias coincidem. Os conflitos e as tensões indicam a diversidade de interesses e dos quadros de ação, mas o descontentamento existe e as lideranças sindicais revelam ter consciência dele. Afinal, os fantasmas assustam porque por vezes encontram uma forma de interferir no mundo dos vivos.

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Bibliografia

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Soberania, cidadania e internacionalismo solidário

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Introdução: as tensões da modernidade ocidental

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A forma corno os direitos humanos se transformaram, nas duas últimas décadas, na linguagem da política progressista e quase em sinônimo de emancipação social causa alguma perplexidade. De fato, durante muitos anos, após a Segunda Guerra Mundial, os direitos humanos foram parte integrante da política da guerra fria, e corno tal eram considerados pelas forças políticas de esquerda. Duplos critérios na avaliação das violações dos direitos humanos, complacência para com ditadores amigos do Ocidente, defesa do sacrifício dos direitos humanos em nome dos objetivos do desenvolvimento tudo isto tornou os direitos humanos suspeitos corno roteiro emancipatório. Quer nos países centrais, quer em todo o mundo em desenvolvimento, as forças progressistas preferiram a linguagem da revolução e do socialismo para formular urna política emancipatória. No entanto, perante a crise aparentemente irreversível destes projetos de emancipação, são essas mesmas forças que recorrem hoje aos direitos humanos para reinventar a linguagem da emancipação. É corno se os direitos humanos fossem invocados para preencher o vazio deixado pelo socialismo ou, mais em geral, pelos projetos emancipatórios. Poderão realmente os direitos humanos preencher tal vazio? A minha resposta é um sim muito condicional. O meu objetivo neste capítulo é identificar as condições em que os direitos humanos podem ser colocados a serviço de uma política progressista e emancipatória. Tal tarefa exige que sejam claramente entendidas as tensões dialéticas que informam a modernidade ocidental. 1 A crise que hoje afeta estas tensões é o sintoma mais revelador dos problemas que a mo-

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1Em outro trabalho, analiso mais detalhadamente as tensões dialéticas da modernidade ocidental (Santos, 1995).

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dernidade ocidental enfrenta no início do século XXI. Em minha opinião, a política de direitos humanos é atualmente um fator-chave para compreender tal crise. Identifico três tensões dialéticas. A primeira ocorre entre regulação social e emancipação social. Tenho afirmado que o paradigma da modernidade se baseia em uma tensão dialética entre regulação social e emancipação social, a qual está presente, mesmo que de modo diluído, na divisa positivista "ordem e progresso". Neste início de século, esta tensão deixou de ser uma tensão criativa. As formas modernas de emancipação social entraram em colapso e parecem ter arrastado consigo as formas de regulação social a que se opunham e procuravam superar. Enquanto até o final dos anos 60 as crises de regulação social suscitavam o fortalecimento das políticas emancipatórias, hoje a crise da regulação social simbolizada pela crise do Estado intervencionista e do Estado-Providência - e a crise da emancipação social- simbolizada pela crise da revolução social e do socialismo como paradigma da transformação social radical - são simultâneas e alimentam-se uma da outra. A política dos direitos humanos, que pode ser simultaneamente uma política regulatória e uma política emancipatória, está presa nesta dupla crise, ao mesmo tempo que é sinal do desejo de superá-la. A segunda tensão dialética ocorre entre o Estado e a sociedade civil. Apesar de considerado o dualismo fundador da modernidade ocidental, a distinção entre Estado e sociedade civil e a relação entre ambos sempre foram problemáticas e mesmo contraditórias (Santos, 1995: 411-416). A diferença entre a espontaneidade da sociedade civil e a artificialidade do Estado, lapidarmente formulada por Hayek - "as sociedades formam-se, os Estados são feitos" (1979: 140) -foi logo desmentida pelo fato de o Estado e a sociedade civil serem "produzidos" pelos mesmos processos políticos. Por um lado, o Estado moderno, não obstante apresentar-se como um Estado minimalista, é potencialmente um Estado maximalista, pois a sociedade civil, o outro do Estado, se reproduz por intermédio de leis e regulamentações que brotam do Estado e para as quais não parece existir limites, desde que as regras democráticas da produção de leis sejam respeitadas. Mas, por outro lado, a sociedade civil, uma vez politicamente organizada, pode usar as mesmas re410

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gras para se impor ao Estado igualmente sem limites aparentes e pela mesma via legislativa e regulamentar que lhe devolva a capacidade de se auto-regular e autoproduzir. Nestas condições não espanta que aquilo que em dado momento histórico ou dada conjuntura política é considerado como sendo próprio do Estado, possa, em outro momento ou conjuntura, ser considerado próprio da sociedade civil. Nas duas últimas décadas tornou-se ainda mais claro que, à luz disto, a distinção entre o Estado e a sociedade civil, longe de ser um pressuposto da luta política moderna, é resultado dela. A tensão deixa, assim, de ser entre Estado e sociedade civil para ser entre interesses e grupos sociais, que se reproduzem melhor sob a forma de Estado e interesses, e grupos sociais, que se reproduzem melhor sob a forma de sociedade civil. Sendo assim, o âmbito efetivo dos direitos humanos torna-se inerentemente problemático. É certo que historicamente, nos países do Atlântico Norte, a primeira geração de direitos humanos (os direitos cívicos e políticos) foi concebida como uma luta da sociedade civil contra o Estado, considerado o principal violador potencial dos direitos humanos, e a segunda e terceira gerações (direitos econômicos e sociais e direitos culturais, da qualidade de vida etc.) foram concebidas como atuações do Estado, então considerado a principal garantia dos direitos humanos. Contudo, a volatilidade dos domínios do Estado e da sociedade civil mostram, por um lado, que não há nada de irreversível nesta seqüência de gerações e, por outro lado, que não pode ser descartada a hipótese de que em outros contextos históricos a seqüência possa ser diferente ou até oposta, ou não haja seqüência, mas estagnação. Por fim, a terceira tensão ocorre entre o Estado-nação e o que chamamos de globalização. O modelo político da modernidade ocidental é um modelo de Estados-nação soberanos, coexistindo em um sistema internacional de Estados igualmente soberanos - o sistema interestatal. A unidade e a escala privilegiadas, quer do controle social quer da emancipação social, tem sido o Estado-nação. Por um lado, o sistema interestatal sempre foi concebido como relativamente anárquico, regulado por um direito não impositivo (o direito internacional). Por outro lado, as lutas emancipatórias internacionalistas, especialmente o internacionalismo operário, sempre foram mais uma aspiração do que uma realidade. Hoje, a erosão seletiva do Estado-na431

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ção, imputável à intensificação da globalização, coloca a questão de saber se tanto o controle social quanto a emancipação social deverão ser deslocados para o nível global. É neste sentido que se começa a falar em sociedade civil global, governo global, eqüidade global e cidadania pós-nacional. Neste contexto, a política dos direitos humanos é posta perante novos desafios e novas tensões. A efetividade dos direitos humanos tem sido conquistada em processos políticos de âmbito nacional e por isso a fragilização do Estadonação pode acarretar a fragilização dos direitos humanos. Isso está acontecendo, sobretudo no nível dos direitos econômicos e sociais. Por outro lado, os direitos humanos aspiram hoje a um reconhecimento mundial e podem mesmo ser considerados um dos pilares fundamentais de uma emergente política pós-nacional. Neste caso, porém, uma nova tensão emerge. A reemergência dos direitos humanos no final do século XX, início do século XXI, é hoje entendida como sinal da volta do cultural e até mesmo do religioso. Ora, falar de cultura e de religião é falar de diferença, de fronteiras, de particularismos. Como poderão os direitos humanos ser uma política simultaneamente cultural e global? Nesta ordem de idéias, o meu objetivo é desenvolver um quadro analítico capaz de reforçar o potencial emancipatório da política dos direitos humanos no duplo contexto da globalização, por um lado, e da fragmentação cultural e da política de identidades, por outro. Pretendo apontar as condições que permitem conferir aos direitos humanos tanto o caráter global quanto a legitimidade local, para fundar uma política progressista de direitos humanos - direitos humanos concebidos como a energia e a linguagem de esferas públicas2 locais, nacionais e transnacionais atuando em rede para garantir novas e mais intensas formas de inclusão social.

2 Defino a esfera pública como um campo de interação e de deliberação em que indivíduos, grupos e associações, por intermédio de retórica dialógica e regras procedimentais partilhadas, (1) estabelecem equivalências e hierarquias entre interesses, reivindicações e identidades; (2) aceitam que tais regras sejam contestadas ao longo do tempo, pelos mesmos indivíduos, grupos ou associações ou por outros, em nome de interesses, reivindicações e identidades que foram anteriormente excluídos, silenciados ou desacreditados.

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1. SOBRE AS GLOBALIZAÇÕES

Começarei por especificar o que entendo por globalização. Como abordei detalhadamente esta questão em outra obra (Santos, 2001a), limitar-me-ei aqui a uma breve referência. Muitas definições centram-se na economia, ou seja, na nova economia mundial que emergiu nas duas últimas décadas como conseqüência da intensificação dramática da transnacionalização da produção de bens e serviços e dos mercados financeiros - um processo por intermédio do qual as empresas multinacionais ganharam uma proeminência sem precedentes como atores internacionais. Para os meus objetivos analíticos, porém, privilegio uma definição de globalização mais sensível às dimensões sociais, políticas e culturais. Aquilo que habitualmente chamamos de globalização são, de fato, conjuntos diferenciados de relações sociais; diferentes conjuntos de relações sociais dão origem a diferentes fenômenos de globalização. Nestes termos, não existe estritamente uma entidade única chamada globalização; existem, em vez disso, globalizações. A rigor, este termo só deveria ser usado no plural. Qualquer conceito mais abrangente deve ser de tipo processual e não substantivo. Por outro lado, sendo feixes de relações sociais, as globalizações envolvem conflitos e, por isso, vencedores e vencidos. Freqüentemente, o discurso sobre globalização é a história dos vencedores contada pelos próprios. Na verdade, a vitória é aparentemente tão absoluta que os derrotados acabam por desaparecer totalmente de cena. Proponho, pois, a seguinte definição: a globalização é o processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de considerar como sendo local outra condição social ou entidade rival. As implicações mais importantes desta definição são as seguintes. Em primeiro lugar, perante as condições do sistema-mundo ocidental, aquilo a que chamamos globalização é sempre a globalização bem-sucedida de determinado localismo. Em outras palavras, não existe condição global para a qual 3 não consigamos encontrar uma raiz local, uma imersão cultural específica.

JNa realidade, não consigo pensar uma entidade sem tal enraizamento local; o único candidato possível, mas mesmo assim improvável, seria a arquitetura interna dos aeroportos. 433

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A segunda implicação é que a globalização pressupõe a localização. De fato, vivemos tanto em um mundo de localização quanto em um mundo de globalização. Portanto, em termos analíticos, seria igualmente correto definir a presente situação e os nossos tópicos de investigação em termos de localização, em vez de globalização. O motivo por que o último termo é preferido é basicamente porque o discurso científico hegemônico tende a privilegiar a história do mundo na versão dos vencedores. Existem muitos exemplos de como a globalização pressupõe a localização. A língua inglesa como língua franca é um desses exemplos. A sua propagação como língua global implicou a localização de outras línguas potencialmente globais, especialmente a língua francesa. Quer isto dizer que, uma vez identificado determinado processo de globalização, o seu sentido e explicação integrais não podem ser obtidos sem que se tenha em conta os processos adjacentes de relocalização com ele ocorrendo simultânea ou seqüencialmente. Uma das transformações mais freqüentemente associadas à globalização é a compressão do espaço-tempo, ou seja, o processo social pelo qual os fenômenos se aceleram e se difundem pelo globo. Ainda que aparentemente monolítico, este processo combina situações e condições altamente diferenciadas e, por esse motivo, não pode ser analisado independentemente das relações de poder que respondem pelas diferentes formas de mobilidade temporal e espacial. Por um lado, existe a classe capitalista transnacional, aquela que realmente controla a compressão do espaço-tempo e que é capaz de transformá-la a seu favor. Existem, por outro lado, as classes e grupos subordinados, como os trabalhadores migrantes e os refugiados, que nas duas últimas décadas têm tido grande movimentação transfronteiriça, mas que de modo algum controlam a compressão do espaço-tempo. Entre os executivos das empresas multinacionais e os emigrantes e refugiados, os turistas representam um terceiro modo de produção da compressão do espaço-tempo. Existem ainda os que contribuem fortemente para a globalização mas que, não obstante, permanecem prisioneiros do seu espaço-tempo local. Os camponeses da Bolívia, do Peru e da Colômbia, ao cultivarem coca, contribuem decisivamente para uma cultura mundial da droga, mas eles

próprios permanecem "localizados" nas suas aldeias e montanhas como sempre estiveram. Finalmente, e ainda de outra perspectiva, a competência global requer, por vezes, o reforço da especificidade local. Muitos dos lugares turísticos de hoje precisam acentuar seu caráter exótico, vernáculo e tradicional para serem suficientemente atraentes no mercado global de turismo. Para dar conta destas assimetrias, a globalização, como sugeri, deve ser sempre considerada no plural. Por outro lado, há que considerar diferentes modos de produção da globalização. Identifico quatro modos de produção da globalização, os quais, em meu entender, dão origem a quatro formas de globalização. A primeira forma de globalização é o loca/ismo globalizado. Consiste no processo pelo qual determinado fenômeno local é globalizado com sucesso, seja a atividade mundial das multinacionais, a transformação da língua inglesa em língua franca, a globalização do fast food americano ou da sua música popular, ou a adoção mundial das leis de propriedade intelectual ou de telecomunicações dos EUA Asegunda forma de globalização chamo globalismo localizado. Consiste no impacto específico de práticas e imperativos transnacionais nas condições locais, as quais são, por essa via, desestruturadas e reestruturadas de modo a responder a esses imperativos transnacionais. Tais globalismos localizados incluem: enclaves de comércio livre ou zonas francas; desmatamento e destruição maciça dos recursos naturais para pagamento da dívida externa; tesouros históricos, lugares ou cerimônias religiosos, artesanato e vida selvagem postos à disposição da indústria global do turismo; dumping ecológico ("compra" pelos países do Terceiro Mundo de lixo tóxico produzido nos países capitalistas centrais para gerar divisas externas); conversão da agricultura de subsistência em agricultura para exportação como parte do "ajuste estrutural"; alterações legislativas e políticas impostas pelos países centrais ou pelas agências multilaterais que elas controlam; uso de mão-de-obra local por parte de empresas multinacionais sem qualquer respeito por parâmetros mínimos de trabalho (labor standards). A divisão internacional da produção da globalização assume o seguinte padrão: os países centrais especializam-se em localismos globalizados, enquanto aos países periféricos cabe tão-só a esco435

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lha entre várias alternativas de globalismos localizados. 4 O sistema-mundo é uma trama de globalismos localizados e localismos globalizados. Todavia, a intensificação de interações globais pressupõe outros dois processos, os quais não podem ser corretamente caracterizados nem como localismos globalizados nem como globalismos localizados. Chamo o primeiro de cosmopolitismo. Trata-se de um conjunto muito vasto e heterogêneo de iniciativas, movimentos e organizações que partilham a luta contra a exclusão e a discriminação sociais e a destruição ambiental produzidas pelos localismos globalizados e pelos globalismos localizados, recorrendo a articulações transnacionais tornadas possíveis pela revolução das tecnologias de informação e de comunicação. As atividades cosmopolitas incluem, entre outras, diálogos e articulações Sul-Sul; nova:s formas de intercâmbio operário; redes transnacionais de lutas ecológicas, pelos direitos da mulher, pelos direitos dos povos indígenas, pelos direitos humanos em geral; serviços jurídicos alternativos de caráter transnacional; solidariedade anticapitalista entre o Norte e o Sul; organizações de desenvolvimento alternativo e em luta contra o regime hegemônico de propriedade intelectual que desqualifica os saberes tradicionais e destrói a biodiversidade. O Fórum Social Mundial que se reuniu em Porto Alegre em 2001 e 2002 é hoje a mais pujante afirmação de cosmopolitismo no sentido aqui adotado. Não uso cosmopolitismo no sentido moderno convencional. Na modernidade ocidental, cosmopolitismo está associado às idéias de universalismo desenraizado, individualismo, cidadania mundial e negação de fronteiras territoriais ou culturais. Estas idéias têm uma longa tradição no Ocidente e aparecem expressas de várias formas no "direito cósmico" de Pitágoras, na

•Tem sido defendido (Castells, 1996: 92, 112) que a nova economia global, baseada no capital informacional, eliminou a destinção entre países centrais, periféricos e semiperiféricos. Em minha opinião, a distinção mantém-se, bem como a hierarquia que ela estabelece, ainda que esta (centro, periferia e semiperiferia) coexista hoje com uma outra (global, local). Sobre este tema, ver Santos, 2001a: 31-106. O lugar que um dado país ocupa no sistema mundial continua a depender da específica mistura de atividades, produções ou serviços centrais e periféricos que nela domina. A predominância de traços centrais significa que o país se especializa em localismos globalizados; correspondentemente, a predominância de traços periféricos significa que o país se especializa em globalismos localizados. Os países semiperiféricos são caracterizados por um equilíbrio instável entre localismos globalizados e globalismos localizados. 436

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philallelia de Demócrito, na idéia medieval deres publica christiana, no conceito renascentista de "humanitas", no dito de Voltaire de que "para sermos bons patriotas necessitamos de ser inimigos do resto do mundo" e, finalmente, no novo internacionalismo operário, socialista ou comunista do início do século XX. Para mim, cosmopolitismo é a solidariedade transnacional entre grupos explorados, oprimidos ou excluídos pela globalização hegemônica. Quer se trate de populações hiperlocalizadas (eg, os povos indígenas da cordilheira dos Andes) ou hipertransnacionalizadas (eg, populações deslocadas pela guerra ou por grandes projetos hidrelétricos, imigrantes ilegais na Europa ou na América do Norte), estes grupos vivem a compressão do espaço-tempo sem terem sobre ela qualquer controle. O cosmopolitismo que defendo é o cosmopolitismo do subalterno em luta contra a sua subalternização. O outro processo que não pode ser adequadamente descrito seja como localismo globalizado seja como globalismo localizado é a emergência de temas que, pela sua natureza, são tão globais quanto o próprio planeta e aos quais eu chamaria, recorrendo ao direito internacional, de patrimônio comum da humanidade. Trata-se de temas que só fazem sentido em relação ao globo na sua totalidade: a sustentabilidade da vida humana na Terra, por exemplo, ou temas ambientais como a proteção da camada de ozônio, a preservação da Antártida, da biodiversidade ou do fundo do mar. Incluo ainda nesta categoria a exploração do espaço, a lua e outros planetas, dadas as interações globais físicas e simbólicas entre eles e o planeta Terra. Todos estes temas referem-se a recursos que, pela sua natureza, deveriam ser geridos por fideicomissos da comunidade internacional em nome das gerações presentes e futuras. A preocupação com o cosmopolitismo e com o patrimônio comum da humanidade conheceu grande desenvolvimento nas últimas décadas, mas também fez surgir poderosas resistências. O patrimônio comum da humanidade, em especial, tem estado sob constante ataque por parte de países hegemônicos, sobretudo dos EUA. Os conflitos, as resistências, as lutas e as coligações em torno do cosmopolitismo e do patrimônio comum da humanidade demonstram que aquilo a que chamamos globalização é na verdade um conjunto de arenas de interação transnacional. 437

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Em face dessa análise é fundamental distinguir entre globalização de-cimapara-baixo e globalização de-baixo-para-cima, entre globalização neoliberal e globalização solidária ou entre globalização hegemônica e globalização contra-hegemônica. Localismos globalizados e globalismos localizados são a globalização de-cima-para-baixo, neoliberal ou hegemônica; cosmopolitismo e patrimônio comum da humanidade são a globalização de-baixo-para-cima, solidária ou contra-hegemônica.

2. OS DIREITOS HUMANOS COMO ROTEIRO EMANCIPATÓRIO

A complexidade dos direitos humanos está no fato de que eles podem ser concebidos e praticados quer como forma de localismo globalizado quer como forma de cosmopolitismo ou, em outras palavras, quer como globalização hegemônica quer como globalização contra-hegemônica. O meu objetivo é especificar as condições para que os direitos humanos constituam uma forma de globalização contra-hegemônica. Neste capítulo não tratarei de todas as condições necessárias, mas apenas das culturais. A minha tese é que, enquanto forem concebidos como direitos humanos universais, os direitos humanos tenderão a operar como localismo globalizado e, portanto, como uma forma de globalização hegemônica. Para poderem operar como forma de cosmopolitismo, como globalização contra-hegemônica, os direitos humanos têm de ser reconceitualizados como multiculturais. Concebidos como direitos universais, como tem acontecido, os direitos humanos tenderão sempre a ser um instrumento do "choque de civilizações" como o concebe Samuel Huntington (1993), ou seja, como arma do Ocidente contra o resto do mundo ("the West against the rest"). A sua abrangência global será obtida à custa da sua legitimidade local. A relação equilibrada e mutuamente fortalecedora entre a competência global e a legitimidade local, que, no meu entender, é a precondição de uma política contra-hegemônica de direitos humanos no nosso tempo, exige que estes sejam transformados à luz do que é chamado de multiéulturalismo emancipatório, como especificarei adiante. É sabido que os direitos humanos não são universais na sua aplicação. Atualmente são consensualmente identificados quatro regimes internacionais

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de aplicação de direitos humanos: o europeu, o interamericano, o africano e o asiático. 5 Mas serão os direitos humanos universais como artefato cultural ' um tipo de invariante cultural ou transcultural, parte de uma cultura global? A minha resposta é não. Ainda que todas as culturas tendam a definir os seus valores mais importantes como os mais abrangentes, apenas a cultura ocidental tende a formulá-los como universais. Por isso mesmo, a questão da universalidade dos direitos humanos trai a universalidade do que questiona ao questioná-lo. Em outras palavras, a questão da universalidade é uma questão particular, uma questão específica da cultura ocidental. O conceito de direitos humanos é baseado em um bem conhecido conjunto de pressupostos, todos eles tipicamente ocidentais, designadamente: existe uma natureza humana universal que pode ser conhecida racionalmente; a natureza humana é essencialmente diferente e superior à restante realidade; o indivíduo possui uma dignidade absoluta e irredutível que tem de ser defendida da sociedade ou do Estado; a autonomia do indivíduo exige que a sociedade esteja organizada de forma não hierárquica, como soma de indivíduos livres (Panikkar, 1984: 30). Uma vez que todos estes pressupostos são claramente ocidentais e facilmente distinguíveis de outras concepções de dignidade humana em outras culturas, há que averiguar as razões pelas quais a universalidade se transformou em uma das características marcantes dos direitos humanos. Tudo leva a crer que a universalidade sociológica da questão da universalidade dos direitos humanos se tenha sobreposto à sua universalidade filosófica. A marca ocidental, ou melhor, ocidental liberal do discurso dominante dos direitos humanos pode ser facilmente identificada em muitos outros exemplos: na Declaração Universal de 1948, elaborada sem a participação da maioria dos povos do mundo; no reconhecimento exclusivo de direitos individuais, com a única excepção do direito coletivo à autodeterminação, o qual, no entanto, foi restringido aos povos subjugados pelo colonialismo europeu; na prioridade concedida aos direitos cívicos e políticos sobre os direitos econômicos, sociais e culturais; e no reconhecimento do direito de

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Para uma análise mais aprofundada dos quatro regimes internacionais de direitos humanos, ver Santos, 1995: 330-37, e a bibliografia aí citada.

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propriedade como o primeiro e, durante muitos anos, o único direito econômico. Se observarmos a história dos direitos humanos no período imediatamente a seguir à Segunda Grande Guerra, não é difícil concluir que as políticas de direitos humanos estiveram em geral a serviço dos interesses econômicos e geopolíticos dos Estados capitalistas hegemônicos. Um discurso generoso e sedutor sobre os direitos humanos coexistiu com atrocidades indescritíveis, que foram avaliadas com revoltante duplicidade de critérios. Escrevendo em 1981 sobre a manipulação da temática dos direitos humanos nos EUA pelos meios de comunicação social, Richard Falk denuncia a dualidade entre uma "política de invisibilidade" e uma "política de supervisibilidade" (1981: 4). Como exemplos da política de invisibilidade Falk menciona a ocultação total pela mídia, das notícias sobre o trágico genocídio do povo maubere em Timor Leste (que ceifou mais que 300 mil vidas) e a situação dos cerca de 100 milhões de "intocáveis" na Índia. Como exemplos da política de supervisibilidade, Falk menciona a exuberância com que os atropelos pósrevolucionários dos direitos humanos no Irã e no Vietnã foram relatados nos EUA. E Falk conclui: "os pólos de invisibilidade e de supervisibilidade estão intimamente correlacionados com os imperativos da política externa norteamericana" (1981: 5). A verdade é que o mesmo pode ser dito dos países da União Européia, sendo o exemplo mais gritante justamente o silêncio mantido sobre o genocídio do povo maubere, ocultado dos europeus durante uma década para facilitar a continuação do próspero comércio com a Indonésia. Mas esta não é toda a história das políticas dos direitos humanos. Em todo o mundo, milhares de pessoas e de organizações não-governamentais têm lutado pelos direitos humanos, muitas vezes correndo grandes riscos, em defesa de classes sociais e grupos oprimidos, vitimizados por Estados autoritários e por práticas econômicas excludentes ou por práticas políticas e culturais discriminatórias. Os objetivos políticos de tais lutas são emancipatórios e por vezes explícita ou implicitamente anticapitalistas. Isto quer dizer que, paralelamente aos discursos e práticas que fazem dos direitos humanos um localismo globalizado, têm sido desenvolvidos discursos e práticas contra-hegemônicos que, além de verem nos direitos humanos uma arma de luta contra a opressão independente de condições geoestratégicas, apre-

sentam propostas de concepções não-ocidentais de direitos humanos e organizam diálogos interculturais sobre os direitos humanos e outros princípios de dignidade humana. À luz destes desenvolvimentos, creio que a tarefa central da política emancipatória do nosso tempo consiste em transformar a conceitualização e a prática dos direitos humanos de um localismo globalizado, em um projeto cosmopolita. Passo a identificar as premissas dessa transformação. A primeira premissa é a superação do debate sobre universalismo e relativismo cultural. Tratase de um debate intrinsecamente falso, cujos conceitos polares são igualmente prejudiciais para uma concepção emancipatória de direitos humanos. Todas as culturas são relativas, mas o relativismo cultural, como posição filosófica, é incorreto. Todas as culturas aspiram a preocupações e valores válidos independentemente do contexto da sua enunciação, mas o universalismo cultural, como posição filosófica, é incorreto. Contra o universalismo, há que propor diálogos interculturais sobre preocupações isomórficas, isto é, sobre preocupações convergentes ainda que expressas em linguagens distintas e a partir de universos culturais diferentes. Contra o relativismo, há que desenvolver critérios que permitam distinguir uma política progressista de uma política conservadora de direitos humanos, uma política de capacitação de uma política de desarme, uma política emancipatória de uma política regulatória. Na medida em que o debate desencadeado pelos direitos humanos pode evoluir para um diálogo competitivo entre culturas diferentes sobre os princípios de dignidade humana, é imperioso que tal competição induza as coligações transnacionais a lutar por valores ou exigências máximos, e não por valores ou exigências mínimos (quais são os critérios verdadeiramente mínimos? Os direitos humanos fundamentais? Os menores denominadores comuns?). A advertência freqüentemente ouvida contra os inconvenientes de sobrecarregar a política de direitos humanos com novos direitos ou com concepções mais exigentes de direitos humanos (Donnelly, 1989: 109-24) é uma manifestação tardia da redução do potencial emancipatório da modernidade ocidental à emancipação de baixa intensidade possibilitada ou tolerada pelo capitalismo mundial. Em outras palavras, direitos humanos de baixa intensidade como o correlato de democracia de baixa intensidade.

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A segunda premissa da transformação cosmopolita dos direitos humanos é que todas as culturas possuem concepções de dignidade humana, mas nem todas elas a concebem em termos de direitos humanos. Por isso, é importante identificar preocupações isomórficas entre diferentes culturas. Designações, conceitos e Weltanschaungen diferentes podem transmitir preocupações ou aspirações semelhantes ou mutuamente inteligíveis. Na seção seguinte darei alguns exemplos. A terceira premissa é que todas as culturas são incompletas e problemáticas nas suas concepções de dignidade humana. A incompletude provém da própria existência de uma pluralidade de culturas, pois se cada cultura fosse tão completa quanto se julga, existiria apenas uma só cultura. A idéia de completude está na origem de um excesso de sentido de que parecem sofrer todas as culturas e é por isso que a incompletude é mais facilmente perceptível do exterior, a partir da perspectiva de outra cultura. Aumentar a consciência de incompletude cultural é uma das tarefas prévias para a construção de uma concepção multicultural de direitos humanos. A quarta premissa é que todas as culturas têm versões diferentes de dignidade humana, algumas mais amplas do que outras, algumas com um círculo de reciprocidade mais amplo do que outras, algumas mais abertas a outras culturas do que outras. Por exemplo, a modernidade ocidental desdobrou-se em duas concepções e práticas de direitos humanos profundamente divergentes - a liberal e a social-democrática6 - uma dando prioridade aos direitos cívicos e políticos, a outra dando prioridade aos direitos sociais e econômicos.7 Há que definir qual delas propõe um círculo de reciprocidade mais amplo. Por último, a quinta premissa é que todas as culturas tendem a distribuir as pessoas e os grupos sociais entre dois princípios competitivos de vínculo hierárquico. Um - o princípio da igualdade - opera por intermédio de hierarquias entre unidades homogêneas (a hierarquia de estratos socioeconômicos; a hierarquia cidadão/estrangeiro). O outro - o princípio da diferença - opera por intermédio da hierarquia entre identidades e diferenças

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A concepção social democrática plasmou-se em versões marxistas e não-marxistas. 'Ver, por exemplo, Pollis e Schwab, 1979; Pollis, 1982; An-na'im, 1992. 442

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consideradas únicas (a hierarquia entre etnias ou raças, entre sexos, entre religiões, entre orientações sexuais). Embora na prática os dois princípios freqüentemente se sobreponham, uma política emancipatória de direitos humanos deve saber distinguir entre a luta pela igualdade e a luta pelo reconhecimento igualitário das diferenças a fim de poder travar ambas as lutas eficazmente. Estas são as premissas de um diálogo intercultural sobre a dignidade humana que pode levar, eventualmente, a uma concepção mestiça de direitos humanos, uma concepção que, em vez de recorrer a falsos universalismos, se organiza como uma constelação de sentidos locais, mutuamente inteligíveis, e que se constitui em rede de referências normativas capacitantes.

2.1. A hermenêutica diatópica No diálogo intercultural, a troca não é apenas entre diferentes saberes, mas também entre diferentes culturas, ou seja, entre universos de sentido diferentes e, em grande medida, incomensuráveis. Tais universos de sentido consistem em constelações de topai fortes. Os topai são os lugares comuns retóricos mais abrangentes de determinada cultura. Funcionam como premissas de argumentação que, por não se discutirem, dada a sua evidência, tornam possfvel a produção e a troca de argumentos. Topai fortes tornam-se altamente vulneráveis e problemáticos quando "usados" em uma cultura diferente. s O melhor que lhes pode acontecer é serem rebaixados de premissas de argumentação a meros argumentos. Compreender determinada cultura a partir dos topai de outra cultura é uma tarefa muito difícil e, para alguns, impossfvel. Partindo do pressuposto de que não é uma tarefa impossível, proponho, para a levar a cabo, uma hermenêutica diatópica, um procedimento hermenêutico que julgo adequado para nos guiar nas dificuldades a enfrentar, ainda que não necessariamente para superá-las inteiramente. Na área dos direitos humanos e da dignidade humana, a mobilização pessoal e social para as possibilidades e exigências emancipatórias que eles contêm só será

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ªNas trocas e diálogos interculturais experimentamos freqüentemente a necessidade de explicar ou justificar idéias ou ações que na nossa cultura são evidentes e do senso comum. 443

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concretizável na medida em que tais possibilidades e exigências forem apropriadas e absorvidas pelo contexto cultural local. A luta pelos direitos humanos e, em geral, pela defesa e promoção da dignidade humana não é um mero exercício intelectual, é uma prática que é fruto de uma entrega moral, afetiva e emocional baseada na incondicionalidade do inconformismo e da exigência de ação. Tal entrega só é possível a partir de uma identificação profunda com postulados culturais inscritos na personalidade e nas formas básicas de socialização. Por esta razão, a luta pelos direitos humanos ou pela dignidade humana nunca será eficaz se for baseada em canibalização ou mimetismo cultural. Daí a necessidade do diálogo intercultural e da hermenêutica diatópica. A hermenêutica diatópica baseia-se na idéia de que os topoi de uma dada cultura, por mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto a própria cultura a que pertencem. Tal incompletude não é visível a partir do interior dessa cultura, uma vez que a aspiração à totalidade induz a que se tome a parte pelo todo. O objetivo da hermenêutica diatópica não é, porém, atingir a completude - um objetivo inatingível - mas, pelo contrário, ampliar ao máximo a consciência de incompletude mútua por intermédio de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé em uma cultura e outro em outra. Nisto reside o seu caráter diatópico. 9 Um exemplo de hermenêutica diatópica é a que pode ter lugar entre o topos dos direitos humanos na cultura ocidental, o topos do dharma na cultura hindu e o topos da umma na cultura islâmica. Pode argumentar-se que é incorreto ou ilegítimo comparar ou contrastar uma concepção secular de dignidade humana, como são os direitos humanos, com concepções religiosas, como é o caso do hinduísmo e do islamismo. 10 A este argumento contraponho dois outros. Em primeiro lugar, a distinção entre o secular e o religioso assume contornos muito específicos e marcados na cultura ocidental, de tal modo que o que essa distinção distingue, quando aplicada no interior da A este respeito, ver também Panikkar, 1984: 28. urrem sido freqüentemente afirrr.ado que o hinduísmo, em contraste com o cristianismo e com o islamismo, não é uma religião bem definida e claramente identificável. É antes "uma con· glomeração algo amorfa e vagamente coordenada de formações ou conjuntos semelhantes" (Halbfass, 1991: 51).

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cultura ocidental, não é equivalente ao que distingue quando aplicada no interior de uma cultura não-ocidental. Por exemplo, o que conta como secular em uma sociedade em que existem várias culturas não-ocidentais pode ser considerado religioso quando visto da perspectiva de qualquer dessas culturas. Em segundo lugar, nem mesmo no Ocidente a secularização foi alguma vez plenamente atingida. O que conta como secular é o produto de um consenso, no melhor dos casos obtido democraticamente, sobre o âmbito dos compromissos com exigências religiosas. Por esta razão, as concepções de secularismo variam muito de país para país na Europa e na América do Norte. Além disso, as raízes judaico-cristãs dos direitos humanos - a começar, nas primeiras escolas modernas do direito natural - são demasiado visíveis para serem ignoradas. 11 Em face disto, a própria distinção entre o secular e o religioso deve ser submetida à hermenêutica diatópica. Segundo Panikkar, dharma é o que sustenta, dá coesão e, portanto, força, a uma dada coisa, à realidade e, em última instância, aos três mundos (triloka). A justiça dá coesão às relações humanas; a moralidade mantém a pessoa em harmonia consigo mesma; o direito é o princípio do compromisso nas relações humanas; a religião é o que mantém vivo o universo; o destino é o que nos liga ao futuro; a verdade é a coesão interna das coisas.(... ) Um mundo onde a noção de Dharma é central e quase onipresente não está preocupado em encontrar o "direito" de um indivíduo contra outro ou do indivíduo perante a sociedade, mas antes em avaliar o caráter dharmico (correto, verdadeiro, consistente) ou adharmico de qualquer coisa ou ação no complexo teantropocósmico total da realidade (Panikkar, 1984: 39). 12

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llAshis Nandy é um dos mais influentes e consistentes críticos da aplicação do conceito ocidental de secularismo no contexto indiano (1988; 1996). Mostra, por exemplo, que o recente revivalismo religioso na Índia (Hindutva e o Partido Bharatiya ]anata, atualmente no poder) é, contrariamente às aparências, parte integrante de uma política secularizada. Por sua vez, Bhargava (1998; 1999) faz uma análise detalhada do conceito de secularismo e sublinha as questões complexas que ele levanta quando aplicado no contexto indiano. A partir desta análise nos dá uma perspectiva inovadora do secularismo nas sociedades ocidentais. Ver também Chandhoke (1999) e a sua discussão sobre o secularismo e os direitos das minorias religiosas. 12Ver também Inada, 1990; Mitra, 1982; R. Thapar, 1966. 445

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Vistos a partir do topos do dharma, os direitos humanos são incompletos na medida em que não estabelecem a ligação entre a parte (o indivíduo) e o todo (o cosmos) ou, dito de forma mais radical, na medida em que são centrados no que é meramente derivado, os direitos, em vez de centrados no imperativo primordial, o dever dos indivíduos de encontrarem o seu lugar na ordem geral da sociedade e de todo o cosmos. Vista a partir do dharma, e na verdade também a partir da umma, como veremos a seguir, a concepção ocidental dos direitos humanos está contaminada por uma simetria muito simplista e mecanicista entre direitos e deveres. Apenas garante direitos àqueles dos quais pode exigir deveres. Isto explica por que razão, na concepção ocidental dos direitos humanos, a natureza não tem direitos: porque não lhe podem ser impostos deveres. Pelo mesmo motivo é impossível garantir direitos às gerações futuras: não têm direitos porque não têm deveres. Por outro lado, e inversamente, visto a partir do topos dos direitos humanos, o dharma também é incompleto, dado o seu viés fortemente nãodialético a favor da harmonia, ocultando assim injustiças e negligenciando totalmente o valor do conflito como caminho para uma harmonia mais rica. Além disso, o dharma não está preocupado com os princípios da ordem democrática, com a liberdade e a autonomia, e negligencia o fato de, sem direitos primordiais, o indivíduo ser uma entidade demasiado frágil para evitar ser subjugado por aquilo que o transcende. Além disso, o dharma tende a esquecer que o sofrimento humano possui uma dimensão individual irredutível: não são as sociedades que sofrem, mas os indivíduos. Em outro nível conceituai pode ser ensaiada a mesma hermenêutica diatópica entre o topos dos direitos humanos e o topos da umma na cultura islâmica. Os passos do Corão em que surge a palavra umma são tão variados, que o seu significado não pode ser definido com rigor. O seguinte, porém, parece ser certo: o conceito de umma refere-se sempre à comunidade étnica, lingüística ou religiosa de pessoas que são o objeto do plano divino de salvação. À medida que a atividade profética de Maomé foi progredindo, os fundamentos religiosos da umma tornaram-se cada vez mais evidentes e, conseqüentemente, a umma dos árabes foi transformada na umma dos muçulmanos. Vista a partir do topos da umma, a incompletude dos direitos humanos individuais reside no fato de, com base neles, ser impossível fundar os laços 446

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e as solidariedades coletivas sem as quais nenhuma sociedade pode sobreviver, e muito menos prosperar. Exemplo disto mesmo é a dificuldade da concepção ocidental de direitos humanos aceitar direitos coletivos de grupos sociais ou povos, sejam eles as minorias étnicas, as mulheres, as crianças ou os povos indígenas. Este é, de fato, um exemplo específico de uma dificuldade muito mais ampla: a dificuldade de definir a comunidade como arena de solidariedades concretas, campo político dominado por uma obrigação política horizontal. Esta idéia de comunidade, central para Rousseau, foi varrida do pensamento liberal, que reduziu toda a complexidade societal à

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dicotomia Estado/sociedade civil. Por outro lado, a partir do topos dos direitos humanos individuais é fácil concluir que a umma sublinha demasiadamente os deveres em detrimento dos direitos e por isso tende a perdoar desigualdades que seriam de outro modo inadmissíveis, como a desigualdade entre homens e mulheres ou entre muçulmanos e não-muçulmanos. A hermenêutica diatópica mostra-nos que a fraqueza fundamental da cultura ocidental consiste em estabelecer dicotomias demasiado rígidas entre o indivíduo e a sociedade, tornando-se assim vulnerável ao individualismo possessivo, ao narcisismo, à alienação e à anomia. De igual modo, a fraqueza fundamental das culturas hindu e islâmica devese ao fato de nenhuma delas reconhecer que o sofrimento humano tem uma dimensão individual irredutível, que só pode ser adequadamente considerada em uma sociedade não hierarquicamente organizada. O reconhecimento de incompletudes mútuas é condição sine qua non de um diálogo intercultural. A hermenêutica diatópica desenvolve-se tanto na identificação local quando na inteligibilidade translocal das incompletudes. Um bom exemplo de hermenêutica diatópica entre a cultura islâmica e a cultura ocidental no campo dos direitos humanos é dado por Abdullahi Anna'im (1990; 1992). Existe um grande debate sobre as relações entre islamismo e direitos humanos e a possibilidade de uma noção islâmica de direitos humanos. 13 Este debate abrange um largo espectro de posições e o UAfém de An-na'im (1990; 1992), ver Dwyer, 1991; Mayer, 1991; Leites, 1991; Afkhami, 1995; Gerber, 1999. Também Hassan, 1982; AI Faruqui, 1983. Acerca do debate mais amplo sobre a relação entre modernidade e o despertar religioso islâmico, ver, por exemplo, Sharabi, 1992; Shariati, 1986 e Khaliq, 1999. 447

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Sharia. A sua proposta, a "Reforma islâmica", é baseada em uma revisão seu impacto ultrapassa o mundo islâmico. Embora correndo o risco de excessiva simplificação, dttas posições extremas podem ser identificadas nesse debate. Uma, absolutista ou fundamentalista, é sustentada por aqueles para quem o sistema jurídico religioso do Islã, a Sharia, deve ser integralmente aplicado como o direito do Estado islâmico. Segundo esta posição, há conflitos irreconciliáveis entre a Sharia e a concepção ocidental dos direitos humanos, e sempre que tal ocorra a Sharia deve prevalecer. Por exemplo, em relação ao status dos não-muçulmanos, a Sharia determina a criação de um Estado para muçulmanos que apenas reconhece estes como cidadãos, negando aos não-muçulmanos quaisquer direitos políticos. Ainda segundo esta posição, à luz da Sharia, a paz entre muçulmanos e não-muçulmanos é sempre problemática e os confrontos são inevitáveis. Em relação às mulheres, o problema da igualdade nem sequer é colocado; a Sharia impõe a segregação das mulheres e, em algumas interpretações mais estritas, exclui-as de toda a vida pública. No outro extremo encontram-se os secularistas ou modernistas, que entendem que os muçulmanos devem se organizar politicamente em Estados seculares. Segundo esta posição, o Islã é um movimento religioso e espiritual, e não político e, como tal, as sociedades muçulmanas modernas são livres para organizar o seu governo do modo que julgarem conveniente e apropriado às circunstâncias. A aceitação de direitos humanos internacionais é uma questão de decisão política independente de considerações religiosas. Apenas para dar um exemplo, entre muitos, desta posição: uma lei tunisina de 1956 proibiu a poligamia com o argumento de esta ter deixado de ser aceitável, tanto mais que a exigência corânica de justiça no tratamento das co-esposas seria impossível de realizar na prática por qualquer homem, com exceção apenas do próprio Profeta. An-na'im critica estas duas posições extremas. A via per mezzo que propõe pretende encontrar fundamentos interculturais para a defesa da dignidade humana, identificando as áreas de conflito entre a Sharia e "os critérios de direitos humanos" e propondo uma reconciliação ou relação positiva entre os dois sistemas normativos. Segundo ele, o que há de mais problemático na Sharia histórica é o fato de excluir as mulheres e os não-muçulmanos do princípio de reciprocidade. Propõe, assim, uma reforma ou reconstrução da

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evolucionista das fontes islâmicas que relativiza o contexto histórico específico em que a Sharia foi criada pelos juristas dos séculos VIII e IX. Nesse contexto histórico específico, uma construção restritiva do "Outro" e, portanto, uma aplicação igualmente restritiva do princípio da reciprocidade, foi provavelmente justificada. No contexto atual, há todas as condições para uma concepção mais ampla da igualdade e da reciprocidade a partir das fontes corânicas. An-na'im demonstra que uma análise atenta do conteúdo do Corão e do Suna revela dois níveis ou fases da mensagem do Islã: uma do período da Meca Antiga, e outra do período subseqüente, o período de Medina. Segundo eles, a mensagem primitiva de Meca é a mensagem eterna e fundamental do Islã, que sublinha a dignidade inerente a todos os seres humanos, independentemente de sexo, religião ou raça. Esta mensagem, considerada demasiado avançada para as condições históricas do século VII (a fase de Medina), foi suspensa e a sua aplicação adiada até que no futuro as circunstâncias a tornassem possível. O tempo e o contexto, diz An-na'im, estão agora presentes no nosso tempo e no nosso contexto. Não me cabe avaliar a validade específica desta proposta para a cultura islâmica. Esta postura é precisamente o que distingue a hermenêutica diatópica do orientalismo. 14 O que quero realçar na abordagem de An-na'im é a tentativa de transformar a concepção ocidental de direitos humanos em uma concepção intercultural ao reivindicar para eles a legitimidade islâmica, em vez de renunciar a ela. Abstratamente e visto de fora, é difícil ajuizar qual das abordagens, a religiosa (fundamentalista ou moderada, como no caso de Anna'im) ou a secularista, terá maior probabilidade de prevalecer em um diálogo intercultural sobre direitos humanos a partir do Islã. Porém, tendo em mente que os direitos humanos ocidentais são a expressão de um profundo, embora incompleto, processo de secularização, sem paralelo na cultura islâmica, estaria inclinado a sugerir que, no contexto muçulmano, a energia mobilizadora necessária para um projeto cosmopolita de direitos humanos

••sobre a construção etnocêntrica do Outro, oriental, pela cultura e ciência européias a partir do século XIX, cfr. Said, 1985. 449

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poderá ser gerada mais facilmente em um quadro religioso moderado. Se este for o caso, a abordagem de An-na'im é muito promissora. Na Índia, uma via per mezzo semelhante está sendo perseguida por alguns grupos de defesa dos direitos humanos, particularmente por aqueles que centram a sua ação na defesa dos intocáveis. Tal via consiste em basear a luta dos intocáveis pela igualdade e pela justiça social nas idéias hindus de kharma e de dharma. Para isso propõe uma reinterpretação destes conceitos de modo a transformá-los em fonte de legitimidade e de mobilização. Por exemplo, é dada primazia ao conceito de "dharma comum" (sadharana dharma) em detrimento do "dharma especial" (visesa dharma) das diferentes castas, rituais e deveres. Segundo Khare, o dharma comum, baseado na identidade espiritual de todas as criaturas, tem tradicionalmente criado um sentido partilhado de cuidado mútuo, de renúncia à violência e ao dano, de busca da eqüidade. Tem promovido atividades a favor do bemestar público e tem atraído reformadores sociais progressistas. Os ativistas dos direitos humanos encontram aqui uma convergência com um impulso especificamente indiano. A ética do dharma comum favorece particularmente a luta dos reformadores sociais intocáveis (1998: 204).

O "impulso indiano" do "dharma comum" torna possível a contextualização cultural e a legitimidade local dos direitos humanos, o que permite a estes deixarem de ser um localismo globalizado. 15 Esta reinterpretação da tradição hindu e sua articulação com os direitos humanos é, assim, um outro exemplo das virtualidades da hermenêutica diatópica. O resultado é, assim como no caso da "reforma islâmica", uma concepção culturalmente híbrida da dignidade humana e, por isso, também uma concepção mestiça e multicultural dos direitos humanos. Pela sua própria natureza, a hermenêutica diatópica é um trabalho de colaboração intercultural e não pode ser lavado a cabo a partir de uma única cultura ou por uma só pessoa. Não é, portanto, surpreendente que a aborda-

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Sobre direitos humanos na Índia e, em geral, no Sul da Ásia cfr. Anderson e Guha, 1998; Mahajan, 1998; Nirmal, 1999; e Vijapur e Suresh, 1999. 450

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gem de An-na'im, um genuíno exercício de hermenêutica diatópica, seja por ele conduzida com consistência desigual. Na minha perspectiva, An-na'im aceita demasiado fácil e acríticamente a idéia de direitos humanos universais. Este autor, ao mesmo tempo que propõe uma abordagem evolucionista crítica e contextual da tradição islâmica, faz uma interpretação da Declaração Universal dos Direitos Humanos surpreendentemente a-histórica e ingenuamente universalista. A hermenêutica diatópica requer não apenas um tipo de conhecimento diferente, mas também um diferente processo de criação de conhecimento. A hermenêutica diatópica exige uma produção de conhecimento coletiva, participativa, interativa, intersubjetiva e reticular, uma produção baseada em trocas cognitivas e afetivas que avançam por intermédio do aprofundamento da reciprocidade entre elas. Em suma, a hermenêutica diatópica privilegia o conhecimento-emancipação em detrimento do conhecimento-regulação. 16 A hermenêutica diatópica conduzida por An-na'im a partir da perspectiva da cultura islâmica e as lutas pelos direitos humanos organizadas pelos movimentos feministas islâmicos, seguindo as idéias da "Reforma islâmica" por ele propostas, têm de ser complementadas por uma hermenêutica diatópica conduzida a partir da perspectiva de outras culturas e, especialmente, da perspectiva da cultura ocidental dos direitos humanos. Este é provavelmente o único meio de integrar na cultura ocidental a noção de direitos coletivos, os direitos da natureza e das futuras gerações, bem como a noção de deveres e responsabilidades para com entidades coletivas, sejam elas a comunidade, o mundo ou mesmo o cosmos.

2.2. As dificuldades do multiculturalismo progressista A hermenêutica diatópica oferece um amplo campo de possibilidades para os debates que estão atualmente ocorrendo nas diferentes regiões culturais do sistema mundial sobre os temas gerais do universalismo, do relativismo,

16 Cfr. Santos (1995: 25) sobre a distinção entre as duas formas de conhecimento, uma que conhece transformando o caos em ordem (o conhecimento-regulação) e outra que conhece transformando o colonialismo em solidariedade (o conhecimento-emancipação).

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do multiculturalismo, do pós-colonialismo, quadros culturais de transformação social, tradicionalismo e renovação cultural. 17 Porém, uma concepção idealista de diálogo intercultural poderá esquecer facilmente que tal diálogo só é possível por intermédio da simultaneidade temporária de duas ou mais contemporaneidades diferentes. Os parceiros no diálogo apenas superficialmente se sentem contemporâneos; na verdade, cada um deles sente-se apenas contemporâ?eo da interpretação que propõe para a tradição histórica da sua cultura. E assim sobretudo quando as diferentes culturas envolvidas no diálogo partilham um longo passado de trocas sistematicamente desiguais. Que possibilidades há para um diálogo intercultural quando uma das culturas foi moldada por massivas e continuadas agressões à dignidade humana perpetradas em nome da outra cultura? Quando as culturas partilham tal passado, a contemporaneidade que partilham no momento de iniciarem o diálogo é, no melhor dos casos, um quid pro quo e, no pior dos casos, uma fraude. O dilema cultural levantado é o seguinte: dado que, no passado, a cultura dominante tornou impronunciáveis algumas das aspirações à dignidade humana por parte da cultura subordinada, será agora possível pronunciálas no diálogo intercultural sem, ao fazê-lo, justificar e mesmo reforçar a subordinação? Imperialismo cultural e epistemicídio são parte da trajetória histórica da modernidade ocidental. Após séculos de trocas culturais desiguais, será justo tratar todas as culturas de forma igual? Será necessário tornar impronunciáveis algumas aspirações da cultura ocidental para dar espaço à pronunciabilidade de outras aspirações de outras culturas? Paradoxalmente - e contrariando o discurso hegemônico - é precisamente no campo dos direitos humanos que a cultura ocidental tem de aprender com 0 SuPª para que a falsa universalidade atribuída aos direitos humanos no contexto imperial seja convertida em uma nova universalidade, construída a partir de baixo, o cosmopolitismo.

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O caráter emancipatório da hermenêutica diatópica não está garantido a priori e, de fato, o multiculturalismo pode ser o novo rótulo de uma política reacionária. Basta mencionar o multiculturalismo do primeiro ministro da Malásia ou da gerontocracia chinesa quando se referem à "concepção asiática de direitos humanos" para justificar as conhecidas e as desconhecidas "Tianamens" . 19 Um dos mais problemáticos pressupostos da hermenêutica diatópica é a concepção das culturas como entidades incompletas. Pode argumentarse que, pelo contrário, só culturas completas podem participar de diálogos interculturais sem correrem o risco de ser descaracterizadas ou mesmo absorvidas por culturas mais poderosas. Uma variante deste argumento reside na idéia de que só uma cultura poderosa e historicamente vencedora, como é o caso da cultura ocidental, pode atribuir-se o privilégio de se autodeclarar incompleta sem com isso correr o risco de dissolução. Assim sendo, a idéia de incompletude cultural será, afinal, o instrumento perfeito de hegemonia cultural e, portanto, uma armadilha quando atribuída a culturas subordinadas. Esta linha de argumentação é particularmente convincente quando aplicada a culturas não-ocidentais que no passado foram vítimas dos mais destrutivos "encontros" com a cultura ocidental; encontros de tal maneira destrutivos que, em alguns casos, levaram à extinção cultural. É este o caso de muitas culturas dos povos indígenas das Américas, da Austrália, da Nova Zelândia, da Índia etc. Estas culturas foram tão agressivamente amputadas e descaracterizadas pela cultura ocidental que recomendar-lhes agora a adoção da idéia de incompletude cultural, como pressuposto da hermenêutica diatópica, é um exercício macabro por mais emancipatórias que sejam as suas intenções. 20 19Sobre

17

Para o debate africano, ver Oladipo, 1989; Oruka, 1990; Wiredu, 1990; Wamba dia Wamba, 1991a, 1991b; Procee, 1992; Ramose, 1992. Uma amostra do rico debate na Índia está em A. Nandy, 1987a, 1987b, 1988; Chatterjee, 1984; Pantham, 1988. Uma visão global das diferenças culturais pode ser encontrada em Galtung, 1981. 18 Sobre a idéia de "aprender com o Sul", cfr. Santos (1995: 475-519; 2000: 367-380).

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a concepção asiática dos direitos humanos, cfr. Welch Jr. e Leary (1990). Sobre o caso específico da Índia e da Ásia do Sul, cfr. Anderson e Guha (1998), Nirmal (1999) e Vijapur e Suresh (1999). 20Neste capítulo concentro-me na hermenêutica diatópica entre a cultura ocidental e as grandes culturas orientais, no caso o hinduísmo e o islamismo. Uma hermenêutica diatópica que envolva as culturas dos povos indígenas suscita questões analíticas distintas e exige pressupostos específicos. Ainda que de modo preliminar, trato deste tema em Santos (1995: 313-327) e em Santos (2001c: 201-212).

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O problema desta argumentação é que ela conduz logicamente a dois possíveis resultados alternativos ao diálogo intercultural, ambos bastante perturbadores: o fechamento cultural ou a conquista cultural. Em um tempo de intensificação das práticas sociais e culturais transnacionais, o fechamento cultural é, quando muito, uma aspiração piedosa que na prática oculta e implicitamente aceita a "fatalidade" de processos caóticos e incontroláveis de desestruturação, contaminação e hibridação cultural. Tais processos são baseados em relações de poder e em trocas culturais tão desiguais que o fechamento cultural se transforma na outra face da conquista cultural. Nestes termos, a verdadeira questão é saber se a conquista cultural em curso pode ser substituída por diálogos interculturais baseados em condições estabelecidas por mútuo acordo. E se a resposta for positiva, há que identificar as condições a serem discutidas. O dilema da completude cultural pode ser assim formulado: se uma cultura se considera inabalavelmente completa não tem nenhum interesse em envolver-se em diálogos interculturais; se, pelo contrário, admite, como hipótese, a incompletude que outras culturas lhe atribuem e aceita o diálogo, perde confiança cultural, torna-se vulnerável e corre o risco de ser objeto de conquista. Por definição, não há saídas fáceis para este dilema, mas também não penso que ele seja insuperável. Tendo em mente que o fechamento cultural é uma estratégia autodestrutiva, não vejo outra saída senão elevar as exigências do diálogo intercultural até um nível suficientemente alto para minimizar a possibilidade de conquista cultural, mas não tão alto que destrua a própria possibilidade do diálogo (caso em que se reverteria ao fechamento cultural e, a partir dele, à conquista cultural). 2.2.1. Condições para um multiculturalismo progressista

As condições para um multiculturalismo progressista variam muito no tempo e no espaço e segundo as culturas envolvidas e às relações de poder entre elas. Apesar disso, me parece que as seguintes orientações e os seguintes imperativos transculturais devem ser aceitos por todos os grupos sociais e culturais interessados no diálogo intercultural.

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t. Da completude à incompletude. Como disse, a completude cultural é o ponto de partida, não o ponto de chegada. Mais precisamente, a completude cultural é a condição que prevalece no momento que antecede o início do diálogo intercultural. O verdadeiro ponto de partida do diálogo é o momento de frustração ou de descontentamento com a cultura a que pertencemos, um sentimento por vezes difuso de que a nossa cultura não fornece respostas satisfatórias para todas as nossas questões, perplexidades ou aspirações. Este sentimento suscita a curiosidade por outras culturas e suas respostas, uma curiosidade quase sempre baseada em conhecimentos muito vagos dessas culturas. De qualquer modo, o momento de frustração ou de descontentamento envolve uma pré-compreensão da existência e da possível relevância de outras culturas. Dessa pré-compreensão emerge a consciência da incompletude cultural e dela nasce o impulso individual ou coletivo para o diálogo intercultural e para a hermenêutica diatópica. Longe de pretender reconstituir a completude cultural, a hermenêutica diatópica aprofunda, à medida que progride, a incompletude cultural, transformando a consciência inicial de incompletude, em grande medida difusa e pouco articulada, em uma consciência auto-reflexiva. O objetivo central da hermenêutica diatópica é precisamente fomentar auto-reflexividade a respeito da incompletude cultural. 2. Das versões culturais estreitas às versões amplas. Longe de serem entidades monolíticas, as culturas têm grande variedade interna. A consciência dessa diversidade aprofunda-se à medida que a hermenêutica diatópica progride. Das diferentes versões de uma dada cultura deve ser escolhida para o diálogo intercultural a que representa o círculo de reciprocidade mais amplo, a versão que vai mais longe no reconhecimento do outro. Como vimos, das duas interpretações dos ensinamentos do Profeta que constam do Corão, An-na'im escolhe a que assegura o círculo mais amplo de reciprocidade, a que reconhece como iguais muçulmanos e não-muçulmanos, homens e mulheres. Da mesma forma e pelas mesmas razões, os reformadores sociais intocáveis da Índia privilegiam o 455

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"dharma comum" em detrimento do "dharma especial". O mesmo procedimento deve ser adotado no que se refere à cultura ocidental dos direitos humanos. Das duas versões de direitos humanos, a liberal e a social-democrática, deve ser privilegiada a última, porque estende aos campos econômico e social a igualdade que a versão liberal apenas considera legítima no campo político. 3. De tempos unilaterais a tempos partilhados. O tempo do diálogo intercultural não pode ser estabelecido unilateralmente. Cabe a cada comunidade cultural decidir quando está pronta para o diálogo intercultural. Devido à falácia da completude - que leva cada cultura a desprezar a diferença de outras culturas -, quando uma dada comunidade se dispõe ao diálogo intercultural tende a supor que a mesma disposição existe nas outras culturas com os quais pretende dialogar. É este precisamente o caso da cultura ocidental, que durante séculos não teve qualquer disponibilidade para diálogos interculturais mutuamente acordados, e que agora, ao ser atravessada por uma consciência difusa de incompletude, tende a crer que todas as outras culturas estão igualmente disponíveis para reconhecer a sua incompletude e, mais do que isso, ansiosas para se envolverem em diálogos interculturais com o Ocidente.

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a qual se escondem trocas culturais muito desiguais. Daí também que o significado político de pôr fim unilateralmente ao diálogo intercultural seja diferente consoante a decisão seja tomada por uma cultura dominante ou por uma cultura subordinada. No primeiro caso, trata-se freqüentemente de atos de chauvinismo agressivo justificados por objetivos imperiais (como, por exemplo, "a luta contra o terrorismo"), enquanto no caso de culturas subordinadas trata-se muitas vezes de atos de defesa ante a impossibilidade de controlar minimamente os termos do diálogo. A vigilância política, cultural e epistemológica da hermenêutica diatópica é, pois, uma condição para o êxito desta. Cabe às forças, movimentos e organizações cosmopolitas defender as virtualidades emancipatórias da hermenêutica diatópica dos desvios reacionários.

Se o tempo para iniciar o diálogo in~ercultural tem de resultar de uma convergência entre as comunidades culturais envolvidas, o tempo para o terminar ou suspender deve ser deixado à decisão unilateral de cada comunidade cultural. Não há nada irreversível no processo da hermenêutica diatópica. Uma dada comunidade cultural pode necessitar de uma pausa antes de avançar para uma nova fase do diálogo, ou pode chegar à conclusão de que o diálogo a enfraquece além do que é tolerável e que, por isso, deve pôr-lhe fim. A reversibilidade do diálogo é crucial para impedir que ele se perverta e transforme em conquista cultural ou em fechamento cultural recíproco. É a possibilidade de reversão que confere ao diálogo intercultural a qualidade de um processo de negociação aberto, explicitamente político, que progride por via de conflitos e consensos segundo regras mutuamente acordadas. Na ausência ou insuficiência de explicitação de tais regras, o diálogo intercultural pode transformar-se facilmente na fachada benevolente sob

4. De parceiros e temas unilateralmente impostos a parceiros e temas escolhidos por mútuo acordo. Sempre que uma dada comunidade cultural decide envolver-se em um diálogo intercultural não o faz indiscriminadamente, com qualquer outra comunidade cultural ou para discutir qualquer tipo de questões. O requisito de que tanto os parceiros quanto os temas do diálogo não podem ser unilateralmente impostos e devem ser fruto de acordos mútuos é talvez a condição mais exigente da hermenêutica diatópica. O específico processo histórico, cultural e político pelo qual a alteridade de uma dada cultura se torna particularmente significante para uma outra cultura em um dado momento varia imensamente, já que resulta de convergências únicas de uma grande multiplicidade de fatores. Em geral, pode-se dizer que o colonialismo, as lutas de libertação e o pós-colonialismo têm tido um papel decisivo na em~rgên­ cia da alteridade significativa. No que diz respeito aos temas, a convergência é muito difícil de alcançar, não só porque a tradução intercultural dos temas é inerentemente problemática, mas também porque em todas as culturas há temas demasiado importantes para serem incluídos em um diálogo com outras culturas. Como disse antes, a hermenêutica diatópica tem de centrar-se não nos "mesmos" temas, mas nas preocupações isomórficas, em perplexidades e desconfortos que apontam na mesma direção apesar de formulados em linguagens distintas e quadros conceituais

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virtualmente incomensuráveis. O importante é a direção, a noção e o sentimento de incompletude da cultura. 5. Da igualdade ou diferença à igualdade e diferença. Provavelmente todas as comunidades culturais, ou pelo menos as mais complexas, distribuem os indivíduos e os grupos sociais segundo dois princípios de vínculo hierarquizado - trocas sistematicamente desiguais entre indivíduos ou grupos formalmente iguais, de que é exemplo paradigmático a exploração capitalista dos trabalhadores; atribuição de hierarquia entre di.ferenças consideradas primordiais, expressa, por exemplo, no racismo e no sexismo - e, portanto, segundo concepções rivais de igualdade e de diferença. O multiculraralismo progressista pressupõe que o princípio da igualdade seja utilizado de par com o princípio do reconhecimento da diferença. 21 A hermenêutica diatópica pressupõe a aceitação do seguinte imperativo transcultural: temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direitos a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.

3. CONCLUSÃO

Na forma como têm sido predominantemente concebidos, os direitos humanos são um localismo globalizado, uma espécie de esperanto que dificilmente poderá se tornar a linguagem quotidiana da dignidade humana nas diferentes regiões culturais do globo. Compete à hermenêutica diatópica proposta neste capítulo transformá-los em uma política cosmopolita que ligue em rede línguas diferentes de emancipação pessoal e social e as torne mutuamente inteligíveis e traduzíveis. É este o projeto de uma concepção multicultural dos direitos humanos. Nos tempos que correm, este projeto pode parecer mais do que nunca utópico. Certamente é, tão utópico quanto o respeito universal pela dignidade humana. E nem por isso este último deixa de ser uma exigência ética séria.

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deste tema mais detalhadamente em Santos, 2001b. 458

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Pluralismo jurídico, soberania fraturada e direitos de cidadania diferenciais: instituições internacionais, movimentos ,, sociais e Estado pós-colonial na India1

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1 'Tradução de Ana Cláudia Jorge.

Introdução

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Em contraposição à preocupação predominante nos estudos recentes acerca do pluralismo jurídico transnacional, que se concentra na lex mercatoria e na produção autônoma e espontânea de direito por parte de uma pequena elite de árbitros comerciais internacionais e de gigantescas sociedades de advogados (Garth, 1995; Teubner, 1996, 1997), este capítulo retrata opapel de instituições internacionais, organizações não-governamentais (ONGs) e movimentos sociais, nas suas complexas interações com o Estado, como atores em uma paisagem jurídica heterogênea. Assim, a dinâmica e as trajetórias do pluralismo jurídico e da transnacionalização do direito são analisadas com a utilização de material empírico oriundo da Índia. Tendo em consideração a forma como o direito entra na construção da ordem neoliberal, procura-se analisar o funcionamento do poder quer na domesticização da disciplina neoliberal, quer na resistência a esta. O capítulo examina a resistência colocada pelo Estado subalterno às instituições globais, bem como as lutas dos movimentos populares contra o Estado indiano. Deste modo, para discutir a ambivalência dos grupos-movimento em relação ao Estado são utilizados três breves estudos de caso. O Estado é necessário como aliado contra as empresas multinacionais para a proteção do direito de acesso a sementes por parte dos agricultores. Mas o Estado também é inicialmente evitado na luta de Narmada visando diretamente o Banco Mundial, e mais tarde é procurado na busca de uma solução judicial junto ao Supremo Tribunal da União Indiana contra negligências administrativas e abuso de poder por parte do governo estadual. Já no conflito em torno da ecodiversidade na Floresta de Gir, os grupos de defesa dos direitos humanos e o Banco Mundial aliam-se para usar a project law no sentido de proteger os direitos tradicionais dos pastores contra o governo esta465

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dual e 0 World Wildlife Fund (WWF),2 que estão empenhados em proteger 0 hábitat dos leões por intermédio do direito ambiental federal. As mutações nos contornos da governação, quer dentro, quer além do Estado-nação, são discutidas com a intenção de explorar algumas das ambivalências do direito como ferramenta de dominação, ou como instrumento de capacitação. O capítulo defende que a análise dos elementos que compõem a política das ONG-movimentos sociais consiste em compreendêlas não só como entidades locais englobadas em estruturas nacionais e globais mais amplas - como uma boneca russa, na qual uma entidade maior envolve e contém uma menor -, mas como espaços fragmentados que possuem múltiplas ligações nacionais e supranacionais. Os movimentos sociais e as ONGs na Índia assumem preponderância como mediadores entre leis nacionais e internacionais no nível local, mas também como canais para afirmação do direito consuetudinário e dos direitos coletivos tradicionais das comunidades locais na arena nacional e nos fóruns internacionais. As ONGs associadas aos movimentos de base são igualmente importantes na mobilização de conhecimentos divergentes, para formular leis e políticas populares alternativas a partir da utilização de diversas normas oriundas de diferentes fontes. Conseqüentemente, a sua contribuição para a reafirmação do direito consuetudinário e para o desenvolvimento do direito nacional e internacional, além do seu papel de mediadoras, tradutoras e interfaces entre comu~i­ dades locais, Estados-nação e organizações internacionais, merece uma análise cuidadosa. Muitos destes desenvolvimentos no sentido da emergência de uma sociedade civil global em uma "ordem mundial pós-Westfaliana", para usar a expressão de Richard Falk (1999), são ambivalentes. Por um lado, ampliam 0 espectro das possibilidades de participação democrática na era do "Estado pós-soberano", como defende Scholte (2000), no sentido em que os cidadãos ultrapassam os seus governos e entram em interação direta com as instituições responsáveis pelo novo governo supranacional. Por outro lado, e paradoxalmente, algumas das ações dos movimentos sociais e das ONGs conferem à Organização Mundial do Comércio (OMC), ao Fundo Monetá2Fundo

Mundial para a Vida Selvagem. (N. da T.) 466

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rio Internacional (FMI) e ao Banco Mundial maior autoridade e legitimidade, contribuindo indiretamente para um maior enfraquecimento da soberania dos Estados subalternos.

1. PLURALISMO JURÍDICO E ESTADOS SUBALTERNOS

A idéia de pluralismo jurídico, central para a antropologia jurídica dos anos 60 e 70, questiona as assunções básicas da teoria política e da jurisprudência liberais, especialmente no que diz respeito à congruência entre o território, o Estado e o direito. Ao trazermos para primeiro plano a coexistência de uma pluralidade de ordenamentos jurídicos no seio de uma unidade política única, 3 particularmente dos direitos consuetudinários das comunidades e dos direitos religiosos a par com o direito da metrópole e com o direito criado especificamente nas e para as colônias nas sociedades (pós)-coloniais, o pluralismo jurídico questiona a centralidade do direito elaborado pelo Estado e a sua exigência de exclusividade no ordenamento normativo da vida social. As paisagens legais nacionais sempre foram complexas, variadas e multiniveladas, cinzeladas em maior ou menor grau por diversas influências externas por intermédio de processos de empréstimo, difusão e imposição. Mas a crescente proeminência do direito internacional, de ordenamentos e regimes jurídicos supranacionais, da transnacionalização do direito estatal e, finalmente, da intervenção direta de instituições multilaterais, doadores internacionais e ONGs transnacionais contribui para uma nova dimensão do pluralismo jurídico. Estas alterações afetam a própria natureza das funções reguladoras e protetoras do direito, transformam as condições para a legitimação e aumentam o envolvimento direto dos atores globais na arena jurídica nacional. A transnacionalização e o pluralismo jurídico, no sentido da multiplicidade de atores, arenas, métodos e formas de produção do direito, também estão alterando a própria natureza e a noção de direito como corpo coerente e

1upendra Baxi (1999) fala, por exemplo, da oposição entre o direito estatal e o direito popular/sistemas legais não-estatais. 467

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unitário de conhecimento e prática de tomada de decisões baseada em princípios (Cotterrell, 1995). À medida que o governo é substituído por uma pluralidade de regimes de governo supra e infra-estatais, com atores públicos e privados, há um direito descentralizado e microscópico que coexiste, de uma forma mais ou menos incômoda, com o direito monumental que anteriormente era monopólio dos Estados. O domínio do direito está sendo expandido no processo de inclusão de convenções, tratados, acordos bilaterais e multilaterais, bem como de protocolos com efeito jurídico, embora estes não possam ser entendidos como direito, no sentido estrito em que possuam uma base legislativa. Além disso, a linha divisória entre direito público e privado e entre direito e política está sendo reformulada, dada a produção de normas por parte de atores como sociedades de advogados, árbitros privados e ONGs. A criação do direito torna-se cada vez mais um processo contínuo, de origem tanto administrativa quanto legislativa, sendo as regras, regulamentos e prescrições produzidas a partir de uma diversidade de fontes e locais com fronteiras inconstantes. O próprio Estado está sendo descentrado e reconfigurado no processo de transnacionalização do direito e no contexto do pluralismo jurídico supranacional que acompanha este processo. No entanto, o diagnóstico geralmente predominante de erosão da soberania do Estado pelas forças da globalização não leva em consideração o papel ainda preponderante do Estado, ainda que seja como terreno contestado em uma paisagem jurídica cada vez mais plural; um terreno no qual vários ordenamentos jurídicos infra e supra-estatais interagem e competem uns com os outros (Santos, 1995). Uma vez que os Estados (pós)-coloniais nunca possuíram monopólio absoluto sobre a produção de direito, as especificidades das suas trajetórias contemporâneas de globalização econômica e jurídica apenas podem ser analisadas contra o pano de fundo das continuidades históricas, freqüentemente representadas como processos de recolonização (Randeria, 1999). A soberania fraturada, a fragmentação da ação do Estado e a pluralidade jurídica não são exclusivas do Sul, mas os efeitos ambivalentes e o caráter contraditório destes desenvolvimentos são sentidos mais fortemente nestes Estados fracos. Utilizo o termo "Estados fracos" em três sentidos: Estados (pós)-coloniais possuidores de estruturas frágeis e de uma história relativamente curta 468

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de formação do Estado; Estados colocados em posição subalterna no sistema internacional, dependentes de ajuda externa e dos ditames de agências internacionais; e, finalmente, Estados que não colonizaram completamente os imaginários das suas populações. Qual será o espaço disponível para os Estados fracos adotarem políticas que protejam os interesses dos setores vulneráveis das suas próprias populações no quadro estabelecido pelo dogma neoliberal, guardado pelo "Consenso de Washington" e pelo regime da OMC, que privilegia os interesses dos Estados poderosos e dos jogadores globais? Se os Estados subalternos não podem estabelecer ou alterar as regras do jogo, será que têm ao menos a possibilidade de formular escolhas no que diz respeito à extensão, calendarização e seqüenciação das reformas econômicas e alterações legais concomitantes, ou à implementação dos acordos da OMC ou das condições de ajuste estrutural? Pode ser útil distinguir aqui entre os Estados falidos como Somália ou Ruanda, os Estados fracos como Benin ou Bangladesh e os Estados ardilosos como a Índia ou a Rússia. 4 Os Estados ardilosos, normalmente corruptos, iludem tanto os cidadãos quanto as instituições e os doadores internacionais com um falso papel de intermediários. Enquanto Estado fraco não é capaz de escapar das suas obrigações na justiça, não tendo as capacidades que lhe permitem disciplinar e regular de uma forma eficaz os atores estatais e não estatais e de negociar os termos sob os quais irá partilhar a soberania com os atores sub e supranacionais, os Estados ardilosos semiperiféricos servem-se da sua fraqueza para legitimar a sua não responsabilização perante os seus cidadãos e perante as instituições internacionais. Quando confrontados com o descontentamento popular em face de suas políticas, os Estados ardilosos alegam uma incapacidade de resistir às pressões exercidas pelos doadores externos no sentido da realização de reformas. No entanto, fazem também uso da sua fraqueza em relação ao público domésticos para justificar a implementação parcial e seletiva das reformas perante as instituições internacionais. Os Estados ardilosos são suficientemente autônomos para selecionar estrategicamente as reformas que introduzem, adiar algumas alterações e re-

•Agradeço a Ivan Krastev a sugestão do termo "Estado ardiloso" (cunning state) no decurso de diversas estimulantes discussões em torno das questões desenvolvidas neste capítulo.

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tardar deliberadamente outras, implementar certas políticas com pouca convicção, cumprir apenas parcialmente as condições ligadas aos empréstimos e programar estrategicamente as reformas (como, por exemplo, a privatização antes do fim do monopólio). Embora seja uma arma dos fracos, esta estratégia ardilosa pode ser utilizada para colher enormes lucros para certos setores das elites governantes nesses Estados. Estas situações podem, claro, ser vistas como sinais de um Estado brando, mas no meu ponto de vista tal leitura falha no reconhecimento de estratégias de resistência por parte dos Estados ardilosos. De acordo com os proponentes da globalização econômica, o Estado indiano não é suficientemente forte para desregular, privatizar e liberalizar na medida das necessidades. Aqueles agentes crêem que as reformas foram feitas demasiado tarde e devagar e que o seu alcance não foi suficientemente amplo, enquanto, para os opositores das prescrições neoliberais o Estado indiano é fraco, cedendo às determinações ditadas pelas Instituições de Bretton Woods sem que tenham sido adotadas medidas adequadas de política social para amortecer o impacto das reformas radicais sobre os pobres. Os primeiros defendem que o Estado indiano foi demasiado condescendente para com os trabalhadores, enquanto os segundos consideram que foi condescendente com o capital, mas duro com os trabalhadores pobres (Randeria, 1999). Verifica-se que algumas formas de pluralismo jurídico na Índia evidenciam uma continuidade com normas e instituições tradicionais, outras refletem um desenho colonial, a par com compromissos pós-coloniais, e ainda que algumas formas recentes de pluralismo jurídico têm sido impostas ao país a partir da reestruturação neoliberal e da respectiva resistência. Os pluralistas jurídicos, que estudaram o pluralismo infra-estatal, têm tradicionalmente sido defensores do direito da comunidade e, de uma forma mais ou menos explícita, têm apresentado uma posição antiestatista. Todavia, estão começando a descobrir as virtudes do controle estatal e da soberania e autonomia estatais ao serem confrontados com a globalização, a transnacionalização do direito e a pluralidade jurídica supra-Estado, sob o domínio de instituições internacionais que defendem os interesses dos pluralistas jurídicos do capital global, à semelhança de muitos grupos-movimento indianos.

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O pluralismo jurídico nunca constituiu apenas uma categoria meramente descritiva, sendo também uma categoria normativa. Antes, a idéia de pluralismo jurídico fazia parte de uma conceitualização binária do mundo, dividindo-o em sociedades não-ocidentais, caracterizadas por uma pluralidade de ordenamentos jurídicos conflitantes e sobrepostos, e sociedades ocidentais que não possuíam estas mesmas características. Se a antropologia, com a sua hostilidade ou, pelo menos, indiferença, em relação ao Estado, tendia a celebrar o pluralismo jurídico, a teoria política liberal via esta heterogeneidade como um sinal de atraso ou de formação imatura do Estado. Aceditava-se que a modernização levaria ao estabelecimento do monopólio do Estado sobre a produção, aplicação e interpretação do direito, em conjunto com a idéia de cidadania abstrata, envolvendo um conjunto único de leis para todos os cidadãos. Com o crescente reconhecimento, por parte dos sociólogos do direito, de que todas as sociedades são juridicamente plurais, a existência de diversas fontes de normas jurídicas e arenas institucionais deixou de ser uma forma de marcar a diferença e alcançou status de universalidade. Contudo, ao insistir na "policentralidade jurídica" (Petersen e Zahle, 1995) de todas as sociedades, esta abordagem viu-se reduzida a uma única categoria conceituai das diferentes trajetórias históricas e temporalidades da formação do Estado em diversas regiões do mundo. Além disso, não levou em consideração a articulação específica dos ordenamentos jurídicos supra e subnacionais com o direito dos advogados no seio das ricas e complexas paisagens legais da maioria das sociedades não-ocidentais. Ao pretender contrariar a atribuição de uma modernidade deficiente às sociedades com pluralismo jurídico pela transformação da heterogeneidade e hibridação jurídicas em norma, tal perspectiva acabou perdendo de vista as especificidades dessa mesma pluralidade nas diferentes sociedades. A verdade é que, tnesmo sendo as sociedades juridicamente plurais, o são de maneiras diferentes, dependendo do alcance e da eficácia do direito estatal, da coexistência ou interpenetração dos ordenamentos jurídicos estatais e nãoestatais, do fato de estas últimas serem estruturas comunitárias tradicionais paralelas ao direito estatal ou consistirem em justiça popular (revolucionária), desafiando o direito estatal; da extensão do reconhecimento explícito do direito não-estatal pelo Estado ou da sua mera tolerância, dada

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a fraqueza do Estado em face dos atores externos ou da sua incapacidade de competir com as milícias privadas, autoridades religiosas e conselhos comunitários locais. A homogeneização descuidada e a universalização ilusória envolvidas na consideração de que todas as sociedades são juridicamente plurais requer a formulação de algumas questões: Será que o pluralismo jurídico na Índia é semelhante ao do Canadá ou, do Quênia? Será a Índia juridicamente plural no mesmo sentido que é a Africa do Sul ou a Colômbia? Deverá o termo ser aplicado em comum a Portugal, Brasil e Moçambique? Irei agora discutir quatro tipos diferentes de pluralidade jurídica na Índia, ou melhor, as vias pelas quais esta é introduzida no campo jurídico nacional por atores e processos transnacionais: (i) o direito internacional e supranacional é um entre diversos ordenamentos jurídicos que operam ou são invocados por diferentes atores localmente; (ii) são introduzidas alterações nas normas, regulações e políticas nacionais por parte do governo ou da administração nacionais, quer sob a pressão externa associada às condições de ajuda, quer visando moldar o direito estatal para ficar em consonância com os regimes e protocolos internacionais, entre outros, levando a uma pluralização "dentro" do direito estatal; (iii) existem regras, contratos e procedimentos de organizações internacionais e agências doadoras que operam diretamente no seio do Estado-nação; 5 (iv) as ONGs contribuem para a pluralidade jurídica pela formulação de tratados alternativos ou políticas populares de caráter naciO.nal ou supranacional, fazendo uso de diversas normas, cuja base pode ser a comunidade tradicional ou as normas nacionais ou internacionais. A extensão, intensidade, velocidade e impacto destes processos de transnacionalização jurídica não são uniformes no seio do espaço nacional, de tal forma que podemos falar de gradientes desiguais de globalização, dependendo da área de regulação envolvida e do contexto local.

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2. DOMESTICAÇÃO DA DISCIPLINA NEOLIBERAL: A DANÇA DOS DOADORES COM OS ESTADOS DEPENDENTES 6

O Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial do Banco Mundial, intitulado "O Estado em um mundo em mudança", redefine o papel do Estado como um "enabling state", em termos da "fiabilidade do seu quadro institucional" e da "previsibilidade das suas regras e políticas, bem como da consistência com que são aplicadas" (World Bank, 1997: 4-5), sendo estas as questões fundamentais para a garantia da credibilidade dos governos. O novo papel idealizado para o Estado ne~ta dramaturgia neoliberal é o de atrair capital estrangeiro, assegurando a proteção dos seus direitos e das liberdades dos investidores. Muito da retórica das teorias da globalização defende que o Estado não está sendo diminuído no seu papel como agência de produção e aplicação de normas, procurando-se, antes, restruturá-lo para que surja como uma entre outras arenas de prática reguladora que facilite maiores lucros para o capital. O estabelecimento de um novo quadro jurídico que favoreça o comércio, o investimento e capital global é vital para o "consenso de Washington", que defende uma mistura de políticas universalmente válida e aplicável (privatização, desregulação, liberalização do comércio, livre fluxo de capitais, fim dos monopólios, mercados de trabalho flexíveis, políticas monetárias e fiscais rígidas, proteção dos direitos dos investidores e dos direitos de propriedade intelectual), independentemente do contexto regional e das especificidades da economia do país. Também é necessária a criação de órgãos legislativos e agências de aplicação das normas no seio do Estado (daí a ênfase na primazia do direito e nas reformas institucionais, legais e judiciais), e das normas que transcendem as fronteiras do Estado-nação. O documento da OMC "Dez vantagens do sistema de comércio da OMC" cita o "bom governo" como uma delas. Esta expressão significa que, ao restringir as opções disponíveis de políticas reguladoras e distributivas nacionais e ao impedir grupos de interesses especiais de fazer lobby em defesa de opções que

Esta seção incide sobre muitos dos assuntos tratados extensamente por Günther e Randeria (2001), resumindo alguns dos argumentos elaborados por Randeria (no prelo).

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iVer K. Von Benda-Beckmann (2000) para uma discussão pormenorizada deste ponto. 472

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estão em desacordo com os preceitos neoliberais, a OMC contribui para a implementação eficaz do pacote de políticas de Bretton Woods. Os acordos multilaterais de investimento, os tratados comerciais e os poderes adjudicativos da OMC fazem parte desta nova arquitetura de governo global, "dentro" e "além" do Estado-nação. Os seus críticos na Índia argumentam que estes novos quadros legais constitucionais e quasi-constitucionais procuram assegurar, a longo prazo, o poder do capital sobre o Estado e a ação da política macroeconômica e social, no quadro de uma estreita visão da democracia, limitada à existência de eleições pluripartidárias e de uma interpretação seletiva da primazia do direito. Uma das principais conseqüências deste tipo de estratégia é isolar várias esferas econômicas da arena política do controle parlamentar (Gill, 2000) conseqüentemente, limitando tanto a tomada de decisões democrática quanto a fiscalização dessas esferas. As palavras-chave no discurso do desenvolvimento, como participação, capacitação e envolvimento da sociedade civil, não se aplicam, por exemplo, à política macroeconômica, aos aspectos de controle dos programas de ajuste estrutural do FMI ou à aceitação das disciplinas do comércio e do investimento, incluindo a extensão e institucionalização dos direitos de propriedade intelectual e o direito dos contratos no quadro da OMC. As afirmações da sua legitimidade procuram basear-se na validade universal das suas prescrições, uma vez que estas derivam da ciência econômica e são utilizadas para defender a necessidade de isolar do exercício da escolha política este conhecimento de especialistas. O argumento de defesa das regras de liberalização do comércio e investimento da OMC é construído, por exemplo, em termos da necessidade de isolar estas regras das oscilações inerentes à política democrática, tornando-as não-negociáveis em termos internos. Ao afastar as leis e as políticas relevantes da tomada de decisões na esfera política e jurídica doméstica e ao diluir a jurisdição do governo nacional, estes processos aprofundam o déficit democrático e enfraquecem a legitimidade dos Estados semiperiféricos e periféricos. A questão da legitimidade de instituições internacionais como a OMC, FMI ou Banco Mundial está interligada com a questão do poder. Os críticos na Índia apontam os efeitos perniciosos sobre a soberania do Estado das prescrições de políticas e dos condicionalismos - ofertas que os Estados

dependentes não podem recusar-, e o sigilo das negociações de acordos entre os burocratas nacionais e as organizações internacionais, fora do escrutínio parlamentar e do debate público. Os acordos do FMI e do Banco Mundial com os governos são negociados com a administração de forma semelhante, não sendo sujeitos a discussão e aprovação pelas instituições democráticas domésticas. As regras da OMC têm de ser ratificadas por um parlamento que não pode emendá-las, podendo apenas optar entre aceitar ou rejeitar o tratado na sua totalidade. O sigilo que cerca as pré-negociações, às quais as organizações da sociedade civil não têm acesso e das quais não participam7 , implica que as informações sobre o próprio processo, as posições dos diversos membros e as alternativas disponíveis ou consideradas não são apresentadas aos políticos ou aos cidadãos (Howse, 2001). Curiosamente, os burocratas que trabalham para o FMI, a OMC ou o Banco Mundial, quando confrontados com o déficit democrático ou os problemas de legitimidade destas organizações, afirmam ser apenas conselheiros impotentes que servem os seus Estados-membros, sem qualquer meio de assegurar o cumprimento no nível político. 8 A necessidade não só de legitimidade formal, mas de "legitimidade social", para usar o termo jurídico de Weiler (1999) no contexto interno, é subvalorizada pelos debates públicos sobre as condições de acesso ao crédito em todos os países do Sul. Como salienta Sally Falk Moore (2000), as condições têm caráter de lei, constituindo uma dimensão operacional das relações internacionais praticadas pelos doadores em relação aos Estados dependen-

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Quando a OMC declara que tem consultado as ONGs, o mais provável é que esteja se referindo a associações industriais ou comerciais (ver a lista de ONGs que a OMC consulta na sua página da Internet) do que redes de advocacia ou grupos populares de desenvolvimento, urna vez que o abrangente termo organizações não-governamentais inclui urna grande heterogeneidade de organizações com pouco em comum entre si, exceto não serem governamentais nem terem fins lucrativos. 8 0 representante da OMC, em urna conferência realizada recentemente no lnstitute for Advanced Studies, em Berlim, sobre o terna "Governo além do Estado" (maio de 2000), quando questionado sobre a legitimidade do poder exercido pela organização, reiterou a defesapadrão: "o Secretariado da OMC presta apenas um apoio administrativo e técnico à OMC e aos seus membros". Esta formulação pode ser encontrada na página da Internet da organização "Dez mal-entendidos comuns acerca da OMC", dos quais o primeiro é: "a OMC dita as políticas governamentais n.

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tes. As categorias jurídicas comuns podem não ser adequadas para classificar as condicionantes e capturar as suas complexidades: a aceitação destas condições faz com que o acordo tenha as características de um contrato, ou será que 0 fato de existir uma profunda assimetria de poder entre as partes torna a imposição de condições um ato quase legislativo? As condições associadas aos empréstimos são uma oferta dificilmente recusável para os Estados subalternos. Contudo, uma coisa é a aceitação formal dos termos de um acordo, outra é o seu cumprimento. O não-cumprimento, o cumprimento parcial ou retardado e a aplicação seletiva fazem parte da arte de resistir dos Estados subalternos no seio da ordem internacional.9 É comum verificar que tanto os doadores quanto os receptores sabem de início que o cumprimento absoluto é impossível ou politicamente inexeqüível. No entanto, nenhuma das entidades pode afirmá-lo publicamente. Assim, quando de cada nova iniciativa política, algumas condições ganham novos prazos e outras são esquecidas, desde que, pelo menos, o cumprimento nominal de alguns termos possa ser considerado como uma reafirmação simbólica da desigualdade de poder entre os dois lados na "dança dos doadores e dos seus dependentes", para usar a expressão de Moore (2000). O Estado indiano, por exemplo, privatizou apenas algumas empresas do setor público e, mesmo assim lentamente, acolheu entusiasticamente algumas partes do regime da OMC, mas requereu uma moratória de cinco anos sobre outras, enquanto acatava de bom grado a maioria das condições do empréstimo do FMI de 1991. Foi pedido ao governo que abolisse os controles sobre a circulação de divisas estrangeiras, que reduzisse drasticamente os gastos públicos e que desvalorizasse a rúpia em 18% em relação ao dólar. Em troca do empréstimo, o Banco Mundial exigiu a abolição do licenciamento industrial e a elevação do teto de participação acionária dos estrangeiros para 51 %. Em 1993, e como contrapartida de um novo empréstimo, o governo cumpriu as determinações do FMI e do Banco Mundial relativas à aceleração das reformas

9Em entrevistas a mim, os advogados do FMI e do Banco Mundial sublinharam a sua impotência em face do atraso e do não-cumprimento dos termos dos acordos de empréstimo por parte dos Estados-Membros.

do setor financeiro, à remoção de subsídios agrícolas improdutivos e à liberalização da importação de produtos industriais, mas alegou que a exigência de uma desregulação do mercado de trabalho (que iria permitir aos empregadores total liberdade para contratar e despedir) poderia apenas ser cumprida gradualmente, dada a sensibilidade política das questões. No entanto, ainda está por legislar uma solução que permitia redução de despesas com os trabalhadores nos setores público e privado, bem como o fechamento, a liquidação ou reestruturação de empresas inviáveis. A desregulação do mercado de trabalho, tal como foi exigida pelo Banco Mundial, demanda uma legislação federal que revogue ou dilua a Lei das Disputas Industriais de 1947 e a Lei dos Sindicatos Indianos de 1926. Os estudos feitos pela OIT (Organização Internacional do Trabalho) já mostraram que os custos sociais das reformas do mercado na Índia têm sido substancial e sistematicamente subestimados. No entanto, redução de despesas fora do âmbito de uma adequada rede de segurança viola direitos econômicos, sociais e culturais reconhecidos pela Convenção Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ICESCR), cuja proteção é garantida pela Constituição Indiana. A reforma do sistema tributário pretendida pelos doadores está ainda incompleta. Além disso, o governo indiano resistiu à pressão do Banco Mundial e do FMI para a introdução da total convertibilidade da rúpia nas transações de capitais, enquanto tem sido extremamente flexível e cumpridor das exigências dos doadores no que diz respeito às políticas e aos programas demográficos. Por exemplo, a Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) foi autorizada, nos anos 90 não só a voltar à Índia para implementar o seu maior e mais caro projeto de controle populacional, o State Innovations in Family Planning, 10 no Estado de Uttar Pradesh, mas também para ajudar a formular políticas demográficas estatais para os diferentes estados da União Indiana. É interessante verificar que o governo central não cedeu à exigência da Usaid de que deveria haver uma agência independente administrando o projeto de 350 milhões de dólares, estabelecendo-se uma organização sob o seu controle, cujo quadro seria constituído principalmente por burocratas do governo do estado de Uttar Pradesh. t 0Jnovações

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O governo também rejeitou a já muito antiga exigência da Usaid de introduzir contraceptivos injetáveis no sistema de saúde pública por intermédio do programa. Em vez de utilizar o argumento dos custos proibitivos dos injetáveis para o erário, legitimou a recusa citando a forte oposição dos grupos de mulheres do país aos contraceptivos de longa ação, tidos como um perigo para a saúde, tendo ainda declarado existir no Supremo Tribunal um caso, pendente desde 1994, levantado por grupos de mulheres contra a realização de testes do contraceptivo injetável Depo-Provera nos programas de saúde pública, estando ainda em vigor a sentença provisória do tribunal banindo a realização destes testes (Randeria, 1999). Presume-se normalmente que o Estado seja um conjunto unificado de instituições, mas os movimentos sociais na Índia procuraram e freqüentemente obtiveram apoio judicial contra o poder burocrático, como aconteceu no caso das culturas de camarão na costa sul. Swaminathan (1998) sugeriu que o Relatório Final da Comissão dos Direitos Humanos do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC) de 1992 (Türk, 1992) abre uma nova e interessante possibilidade de recurso judicial em nível nacional contra os Programas de Ajuste Estrutural (PAEs). Em uma situação em que os governos são mais responsabilizáveis pelas suas políticas perante as instituições internacionais, o recurso judicial contra a violação de direitos de personalidade poderia tornar um Estado ardiloso responsabilizável pelos seus cidadãos. O Porta-voz Especial da Comissão do Ecosoc faz notar que os PAEs entram em conflito com o direito a um nível de vida adequado, sobretudo porque estão relacionados com direitos básicos de subsistência. Assim, estes programas apresentam um impacto profundamente negativo sobre diversos direitos econômicos e sociais garantidos na ICESCR. Uma vez que a linguagem normativa em questão é relativamente vaga, é difícil demonstrar que os PAEs efetivamente violam estes direitos. Além disso, a Convenção não tem meios efetivos de aplicação, dado que depende da ação do Estado. O Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais do Ecosoc, estabelecido em 1987, indicou que a violação destes direitos deveria poder ter recurso judicial de acordo com o sistema jurídico nacional, sem especificar até que grau os direitos deveriam ser sujeitos a jurisdição e sem estabelecer as penas apropriadas. Por exemplo, a introdução de pagamentos pelos usuários

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de escolas e hospitais, bem como o corte ou redirecionamento dos gastos nestas áreas, restringe o acesso à saúde e à educação, em especial para os pobres, assim como a desregulação dos mercados de trabalho e a privatização das empresas do setor público afetam negativamente o direito básico ao trabalho, diminuem os benefícios da legislação social e salários, enquanto aumentam o tempo de trabalho. Conseqüentemente, poder-se-ia defender que certas políticas de reforma econômica implicariam direitos constitucionais econômicos e sociais relativos à garantia de meios de subsistência adequados, a salários suficientes e a condições de trabalho justas e humanas. As inovações nos procedimentos no quadro da litigação em nome do interesse público poderiam bem ser usadas para este fim (Randeria, 2001a).

3. ALIANÇAS CÍVICAS, DIREITO DE PROJETO (PROJECT LAW) E DIREITO ESTATAL: OS DIREITOS DAS COMUNIDADES PASTORIS VERSUS OS DIREITOS DOS LEÕES"

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As agências internacionais são importantes fontes de pluralismo jurídico, por intermédio da introdução de novas normas na arena nacional e local. É freqüente serem também responsáveis pela concretização e aplicação do direito quer diretamente, quer por intermédio dos governos ou de ONGs. Este pode ser tanto o direito internacional quanto o "direito de projeto" (project law) (Benda-Beckmann, 2000}, ou seja, regras e procedimentos usados por agências bilaterais e multilaterais e que elas próprias desenvolveram ou derivaram dos seus respectivos sistemas jurídicos nacionais. Ao introduzir os seus próprios procedimentos formais e regras substantivas para a implementação dos projetos, as agências de ajuda bilaterais e multilaterais tornaram-se um novo fator significativo no pluralismo jurídico transnacional. Como defende Benda-Beckmann (2000}, as organizações internacionais também introduzem na arena jurídica nacional conceitos e princípios que

t ': 11 0s meus agradecimentos a Achyut Yagnik (SETU, Ahmadabad) pelas discussões em tomo das questões levantadas nesta seção. Agradeço-lhe ainda, tal como a Varsha Ganguly e Ashok Shrimal, por terem partilhado comigo as suas experiências no projeto do Banco Mundial e na campanha pelos direitos das comunidades pastorais, bem como por ter me permicido o acesso ao seu material relativo a estes assuntos.

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podem ser considerados como "protodireito", uma vez que não possuem o status formal de direito mas que, na prática, freqüentemente possuem o mesmo grau de obrigatoriedade. Além disso, por intermédio dos seus acordos de empréstimo e crédito com os Estados, introduzem aquilo que pode ser descrito como "direito de projeto", sob a forma de um conjunto adicional de normas. Na mesma linha, conceitos como "bom governo", "co-gestão" e "sustentabilidade", entre outros, foram elaborados no âmbito de vários tratados, convenções e protocolos internacionais, embora não representem princípios desenvolvidos na sua totalidade nem apresentem coerência interna. Nos níveis nacional e local existem diversos atores que os invocam em sobreposição ou competição com as leis nacionais ou que os utilizam como base da legitimidade das suas queixas contra os direitos tradicionais e o direito consuetudinário. Por vezes, durante o processo, são forjadas coligações estranhas, que podem ser descritas como "estranhos.parceiros.com" (odd bedfellows.com). Alguns dos paradoxos e contradições das possibilidades da coexistência de ordens normativas múltiplas e sobrepostas são evidentes. Por exemplo, no choque entre as ONGs ambientalistas e o movimento de defesa dos direitos humanos na Índia que, de tempos em tempos, têm entrado em confronto. A polêmica em torno de um parque nacional em Gujarat, na região ocidental da Índia, ilustra um conflito desta natureza, envolvendo a utilização de diferentes conjuntos de normas legais locais por dois grupos diferentes de ONGs, cada um com as suas próprias redes transnacionais, representando interesses opostos. Enquanto os ambientalistas defendem a proteção da vida selvagem na floresta Gir, as ONGs de defesa dos direitos humanos têm estado preocupadas em assegurar o modo de vida e a continuidade cultural da comunidade pastoril da área. Os grupos ambientalistas, incluindo a poderosa ONG transnacional World Wide Fund for Native - Índia (WWF-1), baseiam a sua legitimidade moral no fato de representarem titulares de interesses (stakeholders) globais. Fazendo uso dos seus recursos financeiros e ligações nos meios de comunicação, o WWF-India deu aos leões uma cobertura nacional e internacional maior do que a dos criadores de gado. Os ambientalistas invocam e aplicam normas baseadas em leis ambientais nacionais e internacionais, para defender a proteção da biodiversidade, em especial os leões, da 480

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floresta de Gir. As ONGs locais de defesa dos direitos humanos, apoiadas por uma rede do sul e sudeste asiático, advogam a proteção dos direitos tradicionais de acesso aos recursos naturais, com base no direito consuetudinário do grupo pastoril. No entanto, invocam também a doutrina do public trnst, que irá requerer uma confirmação destes direitos por parte do Estado (Randeria, 2001a). O WWF-India, ao qual está aliado o governo da província de Gujarat, tem procurado fazer tábua rasa dos direitos tradicionais dos criadores de gado aos produtos de origem florestal, pastagens e água, em nome do bem comum. Afirma que, tanto o sistema ecológico local quanto os leões são ameaçados pelos tradicionais métodos de criação das grandes manadas de gado pertencentes à comunidade pastoril, bem como pelas suas crescentes exigências de infra-estruturas modernas e outros serviços na área (como estradas pavimentadas, eletricidade, escolas e centros de saúde) (Ganguly, 2000). O Banco Mundial está financiando na Índia, na floresta de Gir e em seis outras regiões do país, diversos projetos na área da biodiversidade, no âmbito do seu programa de ecodesenvolvimento (Randeria 2001a, 2001b). Durante o período limitado do projeto e nas áreas abrangidas, as políticas do Banco Mundial que favorecem a proteção dos povos indígenas prevalecem sobre as leis e ações do Estado, nos termos dos compromissos aceitos pelo governo da Índia no seu acordo com o Banco Mundial (World Bank, 1996). No entanto, não se sabe ainda se as condições contidas neste acordo irão prolongar-se além dele ou terão algum impacto permanente ou profundo na política ou no direito nacionais. Na base do conflito está a legislação nacional, sob a forma de uma Lei de Proteção da Vida Selvagem, elaborada com a ajuda de especialis·tas do Smithsonian Institute (EUA) na década de 70 e adotada pelo Parlamento indiano. Essa lei contém disposições legais para a declaração de certas áreas como "áreas protegidas" para efeito do estabelecimento de parques nacionais ou santuários da vida selvagem. lendo como objetivo a conservação ambiental, inclui procedimentos que na prática atentam contra os direitos das comunidades locais nestas áreas. Mais especificamente, as ações levadas a cabo pelo governo de Gujarat no âmbito destas disposições legais resulta481

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riam na transferência forçada das comunidades de pastores das "áreas protegidas". O WWF-India colocou-se ao lado do governo no interesse da proteção ambiental, ao passo que os grupos de defesa dos direitos humanos recorreram ao Supremo Tribunal. Estes grupos encontraram um aliado no Banco Mundial, cujas diretivas e políticas operacionais procuram proteger de despejo forçado as pessoas afetadas pelos projetos e garantir os direitos tradicionais dos membros das comunidades tribais. Estas diretivas e políticas asseguram uma transferência participativa de populações e tlma política de reabilitação que garante os padrões de vida, a capacidade de obter renda e o potencial de produção daqueles que são afetados por um projeto, e estipula que estas condições não se deteriorem como resultado do mesmo. Ironicamente, a transferência prevista pelo governo de Gujarat em consonância com as leis nacionais foi temporariamente evitada com a ajuda dos tribunais, não porque violasse os direitos tradicionais das comunidades locais, mas porque contrariava não só esta nova política do Banco Mundial, mas também as condições aceitas pelo governo indiano como signatário do acordo com o Banco Mundial. No entanto, as ONGs de defesa dos direitos humanos constituem um caso que vai muito além da muito limitada abordagem protetora delineada na política do Banco Mundial. De fato, recentemente aquelas organizações desafiaram a própria base desta política e das leis nacionais, que reconhecem apenas direitos individuais para efeito de compensações, ignorando os direitos coletivos das comunidades ao acesso aos recursos naturais (Randeria 2001a, 2001b). As ONGs estão hoje formando uma ampla coligação nacional para reafirmar e proteger os direitos coletivos das comunidades locais aos bens comuns (por exemplo, direitos dos criadores de gado, das comunidades pesqueiras, dos agricultores marginais e pobres, dos trabalhadores sem terra e dos povos indígenas a terra, água e florestas), direitos consuetudinários de que gozaram durante séculos. Além das batalhas judiciais, há vários anos as ONGs têm se envolvido em lutas locais em torno deste tema. No entanto, a questão geral adquiriu proeminência devido à exacerbação da situação sob a política de liberalização e privatização do Estado indiano na época da "globalização predatória", para utilizar o termo de Richard Falk. É cada vez maior o número de "terras de ninguém", áreas florestais e áreas 482

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costeiras sob proteção ambiental especial do Coastal Area Zonal Plan 12 adquiridas pelo Estado e entregues às empresas a preços nominais. O Supremo Tribunal indiano decidiu ser admissível esta aquisição de terra pelo Estado em benefício das empresas privadas, uma vez que constitui um "fim de benefício público", independentemente disso destruir os modos de vida e os meios de subsistência das comunidades locais, que perdem os seus direitos consuetudinários e, em conseqüência, podem ser desalojadas à força e empobrecidas. Assim, vemos como o Estado capacitante (enabling state) entra cada vez mais em conflito com os seus cidadãos, em especial os marginalizados que dependem, para a sua sobrevivência, dos recursos de propriedade comum, como a terra, a água e as florestas. É desta forma que o novo e profícuo direito ambiental nacional e supranacional, bem como uma crescente juridificativa da vida social, andam de mãos dadas com a erosão dos direitos coletivos e da autonomia cultural das comunidades (Randeria, 2001b). Neste contexto, as ONGs de defesa dos direitos humanos e os movimentos de base questionaram o próprio conceito de domínio eminente (eminent domain) presente na jurisprudência anglo-saxônica, pelo qual todos os recursos naturais são do Estado. Com base neste conceito a Coroa Britânica e o Estado colonial, e agora o Estado indiano pós-colonial, reclamaram direitos de propriedade sem restrições sobre todos os recursos naturais sob o seu domínio. As ONGs de defesa dos direitos humanos consideram esta interpretação contrária aos e incapaz de ajustar os direitos consuetudinários das comunidades locais aos direitos comuns. Além disso, defendem a substituição deste conceito pela doutrina do curador público (public trustee), cada vez mais freqüentemente reconhecida pelo Supremo Tribunal indiano, de acordo com interpretações e julgamentos nos Estados Unidos. Esta doutrina desafia a natureza absoluta do conceito de eminent domain ao considerar o Estado curador, em vez de proprietário, dos recursos naturais existentes no seu território. Estes são os processos da particularização do direito ocidental e da sua mestiçagem, por intermédio dos quais se atribui ao direito ocidental uma tônica e um estilo determinados com sua tradução local no contexto de lutas

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políticas específicas. Estes processos alertam-nos contra a busca de alternativas, presumivelmente autênticas, aos conceitos e normas jurídicos modernos ocidentais nas tradições da Índia pré-colonial, e salientam os processos altamente criativos do que Merry (1997) apelidou de "vernacularização do direito". No entanto, a especificidade dos atuais processos de transnacionalização do direito, com as suas dinâmicas divergentes, trajetórias desiguais e efeitos dissemelhantes em diferentes contextos culturais só pode ser analisada adequadamente contra o pano de fundo da importação, imposição e reconstituição colonial do direito no mundo não-ocidental (Randeria, no prelo). A Lei da Aquisição de Propriedade, de 1894, e a Lei da Floresta, de 1927, são peças de legislação colonial, ainda em vigor na Índia hoje em dia, que se baseiam na premissa do eminent domain. As ações levadas a cabo pelas autoridades locais com base nestas leis em nome do "interesse público" - conceito não definido pelo direito - foram desafiadas pelas ONGs, invocando os direitos humanos, os direitos coletivos consuetudinários e, mais recentemente, a doutrina do Estado como "curador público". Diversos movimentos sociais e ONGs de desenvolvimento travaram uma longa luta pela revisão de leis que poderiam afetar negativamente os povos indígenas e outras comunidades pobres e marginalizadas. Até agora tiveram sucesso na prevenção de repetidas tentativas governamentais de promulgar uma nova lei para as florestas que iria diluir ainda mais, ou mesmo abolir, os tradicionais direitos de acesso aos recursos naturais utilizados por estas comunidades. Como parte da sua campanha, a coligação de ONGs formulou a sua própria proposta alternativa de uma "Política da floresta do povo", em conjunto com um projeto de lei, tendo também procurado fundamentar os direitos coletivos consuetudinários das comunidades à terra, água e florestas no direito constitucional à vida e aos meios de subsistência (Artigo 21 da Constituição indiana). A abordagem do Estado indiano da questão dos direitos coletivos é pouco consistente, pois apenas reconhece os direitos de alguns grupos ao seu próprio direito da família baseado em normas religiosas (por exemplo: os hindus, muçulmanos, cristãos e parsis têm direitos próprios separados, mas não os sikhs, budistas ou jainistas). Os tribunais de primeira instância tole484

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ramas decisões de conselhos de casta, tribais e "jamat" semi-autônomos relativas a assuntos de direito da família. Os grupos reconhecidos com entidades legais para este efeito são diferentes daqueles a quem se aplicam as restrições. O reconhecimento dos direitos coletivos é em parte um legado da política colonial britânica e dos compromissos pós-coloniais para proteger as minorias religiosas e reparar as injustiças cometidas contra comunidades marginalizadas, mas é também influenciado por pressões eleitorais atuais e circunstanciais políticas. Quando o Estado colonial britânico institucionalizou as quotas baseadas nas castas e direitos da família distintos para diferentes grupos religiosos as identidades de todas estas comunidades foram marcadas e forjadas no contexto destas políticas. A Constituição indiana reflete esta tensão entre a acomodação de direitos coletivos de vários tipos e uma moldura básica baseada no princípio liberal dos direitos individuais. O pluralismo jurídico, tanto no âmbito do direito estatal (o reconhecimento de direitos ou leis diferentes para os vários grupos), quanto no âmbito do direito infra-estatal (a tolerância da jurisdição paralela dos conselhos comunitários semi-autônomos), é um sinal de modernidades desiguais mais do que de reminiscências de práticas e instituições tradicionais. Embora altamente relutante em aceitar quaisquer direitos coletivos das comunidades locais aos recursos naturais, o Estado confere direitos de grupo em muitos outros contextos. Uma das poucas exceções a este princípio é a garantia de direitos especiais a alguns grupos indígenas sobre a terra e as florestas por eles utilizadas coletivamente, de forma a protegê-los da alienação por elementos não-tribais (Seção V da Constituição indiana). No entanto, além das comunidades indígenas, são reconhecidas como entidades legais algumas comunidades religiosas, sobre as quais se aplicam conjuntos distintos de direitos de personalidade, como os direitos de grupo conferidos aos Dalits (castas abrangidas pela Seção V), povos indígenas (tribos abrangidas pela Seção V) e uma categoria heterogênea de castas, incluindo alguns grupos muçulmanos (as chamadas classes social e economicamente atrasadas), com o objetivo de fazer com que as quotas sejam proporcionais à respectiva população destes grupos. As quotas ou reservas, como são conhecidas estas medidas de "discriminação positiva", incluem disposições legais para a representação política nos 485

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órgãos legislativos, bem como para o tratamento preferencial nas admissões em instituições de ensino superior e empregos no aparelho burocrático do Estado e em empresas públicas. Os direitos de grupo reconhecidos pela Constituição indiana representam medidas temporárias, ao contrário do que acontece com os direitos coletivos das comunidades locais aos recursos naturais, utilizados para proteger o direito à vida e aos meios de subsistência e para preservar a forma de vida característica destas comunidades, e conseqüentemente que seriam permanentes. A política de quotas baseadas em castas foi desde o início introduzida como uma medida de curto prazo concebida para assegurar a representação política e para eliminar desvantagens na educação e no emprego. Da mesma forma, os distintos direitos de personalidade baseados em normas religiosas foram concebidos como temporários, até que pudesse ser elaborado um Código Civil uniforme para todos os cidadãos, baseado nos Princípios Diretores da Política do Estado, da Constituição. Nestes últimos anos, tanto a política de quotas para as comunidades carentes quanto os distintos direitos de família para as minorias baseados em normas religiosas têm estado sob o ataque maciço das classes médias, predominantemente hindus. Ambas as políticas de pluralismo jurídico no seio do direito estatal têm sido descritas como prejudiciais à sociedade indiana, uma vez que se considera estarem perpetuando identidades particularistas à custa da integração das minorias na sociedade nacional. Mas essa é uma outra história.

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4. A LUTA DE NARMADA REFORMA O BANCO MUNDIAL MAS PERDE A BATALHA JURÍDICA NA ÍNDIA

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Dado que cada vez mais cidadãos têm suas vidas diretamente afetadas pelo trabalho das instituições internacionais e suas políticas, não é qualquer surpresa verificar que apresentam diretamente os seus protestos a estas instituições, ultrapassando a arena política nacional e transnacionalizando as questões. Muitas das ambivalências da nova arena transnacional da "subpolítica global", como Ulrich Beck (1998) a denomina, são ilustradas pela duradoura e bem-sucedida luta do movimento local Narmada Bachao Andolan 486

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(Movimento Salvem Narmada) (NBA), em conjunto com uma rede de ONGs nacionais e transnacionais de Índia, Europa e EUA, contra a construção do projeto Sardar Sarovar no rio Narmada, na Índia ocidental. O projeto incluía 30 barragens de grande porte, 133 de médio porte e 3.000 pequenas barragens, juntamente com uma central hidrelétrica de 1.200 megawatts. O Banco Mundial foi forçado a retirar o apoio financeiro a este projeto nocivo ao ambiente, que iria deslocar entre 100 mil e 200 mil pessoas sem uma reabilitação adequada. Algumas das complexidades e contradições da campanha, que envolveu várias ONGs indianas, grupos ambientalistas dos EUA, grupos de ajuda ao desenvolvimento da Europa, do Japão e da Austrália, são exploradas na excelente etnografia de Jai Sen (1999). Essa obra descreve o nascimento de uma nova modalidade de ação social transnacional - a "rede de advocacia transnacional" (Keck e Sekknik, 1998), delineando também a forma pela qual a dinâmica da resistência local foi crescentemente moldada pela escolha das arenas de negociação e pelas estruturas das instituições internacionais utilizadas como alavancas para o poder. Como nos relembra a campanha de Narmada, a política transnacional tem lugar nas arenas políticas nacionais de diversos países do Norte simultaneamente, e não fora da esfera política nacional. Por exemplo, neste caso, várias ONGs européias mobilizaram apoio público e reuniram um grupo de defensores nos seus próprios países, de forma a fazer um lobby junto aos ministros para o desenvolvimento, aos deputados e ao diretor executivo de cada país no Conselho de Administração do Banco Mundial. No entanto, ao estabelecerem uma ligação com as poderosas ONG norte-americanas para utilizar as sessões do Congresso dos EUA como fórum para exercer pressão sobre os bancos multilaterais para o desenvolvimento, em geral, e sobre o Banco Mundial, em particular, no sentido de modificarem suas políticas e reformarem suas estruturas, os movimentos sociais e ONGs do Sul não só reforçaram as assimetrias do poder existentes entre o Norte e o Sul, como também conferiram maior legitimidade àquelas instituições ao ignorarem a arena política nacional para abordá-las diretamente. Em conseqüência, diminuíram ainda mais a legitimidade do seu próprio governo (Sen, 1999). Contudo, foi também em Washington que o movimento indiano, bem como a campanha transnacional que o apoiou, produziu várias alterações 487

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estruturais a longo prazo, não intencionais e imprevistas. A estratégia que visava os diretores executivos do Conselho de Administração do Banco Mundial oriundos dos países europeus e dos EUA fez com que estes dessem um passo sem precedentes: desafiar a autoridade do pessoal do banco e interessar-se diretamente pela negociação dos projetos. Jai Sen defende que a campanha, paradoxalmente, reduziu o controle democrático sobre as estruturas do Banco Mundial ao aumentar o controle do Congresso dos EUA e ajudou a aumentar o poder dos principais países-membros do Norte (os membros do G-7 controlam cerca de 60% dos votos) sobre os funcionários do Banco Mundial. Porém, na instituição, a campanha levou também ao estabelecimento do "Painel global sobre grandes barragens" e a alterações internas dos mecanismos de controle e verificação. Entre as alterações significativas introduzidas como resultado da experiência com a barragem Sardar Sarovar está uma política de divulgação pública de informações, que estabelece que a informação sobre projetos específicos relativos ao ambiente e as transferências deve ser dada àqueles que são afetados pelos projetos antes da sua apreciação. Assim, a gestão do Banco é obrigada a obter esta informação do governo que pede o empréstimo e a torná-la pública (Udall, 1998).

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5. GOVERNO NO ESTADO E ALÉM DELE: O PAINEL DE INSPEÇÃO DO BANCO MUNDIAL E O SUPREMO TRIBUNAL DA ÍNDIA

Uma das grandes proezas da campanha de Narmada foi o estabelecimento, em 1993, de um painel de inspeção no Banco Mundial, em resposta à pressão exercida pelas ONGs por maior transparência e responsabilização e às ameaças, por parte de membros influentes da Câmara dos Representantes dos EUA, de bloquear mais contribuições desse país à Associação Internacional para o Desenvolvimento (Udall, 1998). O painel não é um órgão com poderes punitivos, mas é um fórum de recurso para qualquer grupo afetado negativamente por um projeto financiado pelo Banco Mundial (Kingsbury, 1999). Contudo, o objetivo principal do painel de inspeção é verificar se os funcionários do Banco cumpriram as suas próprias normas e procedimentos. 488

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Entre os 17 requerimentos estudados pelo painel até meados de 1999, dois eram relacionados a projetos na Índia: o projeto da central termelétrica da National Thermal Power Corporation (NTPC), de 1997, em Singrauli, e o projeto de ecodesenvolvimento (do qual o projeto Gir, acima discutido, faz parte), no Parque Nacional Nagarhole, em Karnataka, de 1998.13 Em ambos os casos, alegava-se que os órgãos de gestão do Banco não tinham cumprido sua própria política de avaliação do ambiente, dos povos indígenas e do deslocamento forçado. A queixa relativa a sérias falhas na concepção e implementação do projeto de ecodesenvolvimento foi submetida por uma ONG indiana representando povos indígenas que vivem no Parque Nacional Nagarhole, alegando que não tinham sido preparados quaisquer planos de desenvolvimento com a sua participação, como é estabelecido pelas diretrizes do Banco, uma vez que o projeto sequer tinha reconhecido o fato de estes povos residirem dentro da área central pelo projeto. O deslocamento forçado destas comunidades adivasi do seu hábitat na floresta iria não só arruinar a sua vida sociocultural, como eliminar seus meios de subsistência. Embora os funcionários do Banco tenham descartado qualquer desvio em relação à política e aos procedimentos, o painel, após um estudo dos documentos escritos e uma visita ao local, recomendou que o Conselho de Administração do Banco autorizasse uma investigação. O painel considerou que "existia um potencial significativo para a ocorrência de danos graves" (Shihata, 2000: 135), uma vez que os princípios-chave da concepção do projeto pareciam ter falhado. Tendo em conta a pouca informação à disposição dos funcionários do Banco, o painel entendeu que durante a apreciação do projeto não teria sido possível prever a forma como este poderia afetar a população adivasi residente no parque. Em vez de consultar esta população antes do projeto, como era exigido, os órgãos de gestão do Banco afirmaram ter previsto a sua participação na fase de implementação. Shihata, então Conselheiro Geral do Banco Mundial, salienta que a "concepção de processo" do projeto mais flexível e inovadora, por oposição ao blue print project, significava que os mecanismos de planejamento seriam estabelecidos paralelamente à imple-

upara um estudo crítico detalhado do Painel de Inspeção do Banco Mundial e, em especial, dos dois casos indianos que a ele foram levados, ver Randeria (2001a). 489

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mentação do projeto. Como diz Shihata, verifica-se, com surpresa, que a própria abordagem escolhida envolve o risco de não cumprimento da política de consulta e planejamento participativo do Banco Mundial, uma "característica que, embora aparente, não foi explicada na época em que o projeto foi apresentado ao Conselho de Administração para aprovação" (2000: 134). O painel fez notar que, violando as diretrizes sobre deslocamento in:voluntário, não havia sido preparado qualquer plano de desenvolvimento para os povos indígenas durante a fase de apreciação e que não estavam sendo elaborados quaisquer "microplanos" para as famílias adivasi (97% das quais desejavam permanecer no Parque Nacional), por intermédio dos quais essas mesmas famílias e grupos individuais residentes da área protegida pudessem expressar suas necessidades e obter apoio financeiro. Apesar destas conclusões e do potencial forte impacto negativo sobre as comunidades nativas da área, o Conselho de Administração do Banco, cedendo a pressões do governo da Índia, decidiu, em 1998, não autorizar qualquer investigação. Em vez disso, apenas pediu aos órgãos de gestão que, em conjunto com o governo regional do Estado de Karnataka e as pessoas afetadas, abordassem as questões levantadas no relatório do painel e que intensificassem a implementação e o microplanejamento do projeto. Dada a longa história de descumprimento das diretrizes do Banco, pelos seus próprios funcionários ou pelo governo de Gujarat (como amplamente documentado no relatório da Comissão Morse sobre a barragem de Narmada), a decisão do Conselho de Administração é motivo de preocupação, já que reflete a recusa dos diretores executivos dos países devedores do Conselho de Administração do Banco Mundial (incluindo a Índia) de permitir as investigações do painel, que consideram uma violação à sua soberania nacional. Após uma década de graves violações das políticas ambientais e de transferência por parte do banco e do governo da Índia terem levado à retirada do Banco Mundial do projeto Sardar Sarovar, ficamos surpreso com a curta memória institucional do Banco; sua falta de responsabilidade, mesmo na ausência de responsabilidade legal, perante as pessoas afetadas pelos seus projetos; sua fé na vontade política e na capacidade de implementação das condições relativas ao ambiente e aos direitos humanos por parte dos governos que recebem os empréstimos; a falta de supervisão desta implementação por parte do Banco; e, de forma geral, sua contínua insensibilidade quanto aos custos so-

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ciais e ecológicos do tipo de desenvolvimento que defende e financia. Apesar de o governo da Índia há décadas falhar na elaboração de uma política nacional de deslocamento e reabilitação, o Banco continua, surpreendentemente, a adiantar créditos para projetos de desenvolvimento que envolvem o desalojamento. O fato de o banco ter uma política de divulgação pública da informação, ausente no próprio contexto nacional, não é consolo para aqueles que são expulsos à força pelos seus projetos. Não parece que um painel de inspeção com poderes tão limitados seja uma solução para os problemas de sobrevivência das pessoas à beira do deslocamento forçado, uma vez que não existe nem uma comissão de recursos independentes com autoridade para modificar, suspender ou cancelar os projetos do Banco Mundial, nem o recurso judicial adequado contra práticas ilegais por parte do Estado. As ONGs que criticam estas pouco entusiásticas medidas de reforma adotadas pelo banco chamam a atenção para o fato de que a dívida dos países não é cancelada com a interrupção de um projeto, continuando o Banco livre de responsabilidade legal pelo impacto ecológico e social negativo dos seus projetos. Se até aqui a experiência dos cidadãos indianos com o painel tem sido decepcionante, a amarga experiência das tentativas do Narmada Bachao Andolan de agir judicialmente contra um Estado que tem desprezado constantemente suas próprias leis e políticas igualmente revela algumas das limitações da utilização dos tribunais nacionais pelos movimentos sociais como arena para defender uma justiça social. O recurso aos tribunais ajuda a divulgar a questão na imprensa, mas pode levar à sua despolitização durante uma cara, morosa e imprevisível batalha no tribunal, na qual o que conta são tecnicismos jurídicos e não questões morais. Apesar de um controvertido e prolongado debate público na Índia e da grande utilização do Supremo Tribunal indiano pelo movimento Narmada após a saída do Banco Mundial do projeto, a questão ainda tem de ser seriamente debatida no Parlamento Nacional. A campanha ainda não conseguiu produzir alterações políticas ou jurídicas na Índia em relação às grandes barragens, à aquisição de terra, ao deslocamento involuntário ou ao realojamento e reabilitação. O movimento do vale do Narmada, que procurou radicalizar a agenda do damn-the-dams 14 em uma crítica à ideologia e à

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significado é aproximadamente "malditas sejam as barragens". (N. da T.) 491

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prática de gigantismo nas ações de desenvolvimento e ampliar a política para permitir a inclusão de modelos para um futuro alternativo, baseado em pequenos projetos autônomos locais, está viciado após anos de negociações sobre pormenores técnicos no Supremo Tribunal, como, por exemplo, a altura da barragem. Além disso, o governo justificou a sua inação de anos em relação às alterações políticas ao destacar o status sub judice de todos os assuntos perante o tribunal. Quando olhamos para trás, a saída do Banco Mundial do projeto pode parecer uma benção mista, uma vez que sob pressão de ONGs de Gujarat alguns funcionários e missões do Banco procuraram fazer adotar e implementar políticas de reabilitação. A melhoria relativa das políticas e a da sua execução em Gujarat, em comparação com Madhya Pradesh e Maharashtra, pode ser atribuída a esta pressão por parte dos doadores. O veredicto do Supremo Tribunal, pronunciado no dia 18 de outubro de 2000, foi um rude golpe para os movimentos populares e a grave negação de justiça levanta questões fundamentais acerca das próprias limitações da utilização dos tribunais pelos movimentos sociais na sua luta por justiça social. De fato, o tribunal máximo necessitou de seis anos e meio para chegar à conclusão de que o tribunal não devia ter qualquer papel nesse tipo de decisão! A decisão por maioria do juiz do Supremo Tribunal Anand e do juiz Kirpal rejeitou todas as objeções relacionadas às questões ambientais e da reabilitação, confiando inteiramente nas declarações juradas dos governos estaduais, tendo apenas pedido à Autoridade de Controlo do Narmada que redigisse um plano de ação sobre assistência e reabilitação no espaço de quatro semanas. Como apontam os críticos desta decisão, é pouco provável que o governo faça em quatro semanas o que não conseguiu fazer em 13 anos. A decisão por maioria, que louva as grandes barragens e os seus benefícios para a nação, não só permite a construção da barragem de Narmada, mas, ao colocar em questão o locus standi dos movimentos sociais como requerentes em nome do interesse público, também limita as futuras opções jurídicas para uma ação coletiva dos cidadãos contra o Estado. Na petição que o Narmada Bachao Andolan apresentou em 1994 contra o governo da União Indiana, requeria-se um embargo da construção da barragem com base no artigo 32 da Constituição indiana, que garante a todo cidadão o direito de apelar ao Supremo Tribunal na defesa de seus direitos 492

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fundamentais. O NBA defendia que a magnitude do desalojamento provocado pela barragem era tal, que era impossível a reabilitação total das pessoas cuja terra seria submersa pelo projeto. Uma vez que os governos dos estados não tinham tomado, nem poderiam então tomar, providências adequadas para o realojamento e reabilitação destas comunidades, o movimento pediu o embargo da construção da barragem por violar a decisão do tribunal interestadual, que requeria o cumprimento desta condição antes da construção da barragem. Em um nfvel mais fundamental, o NBA levantou a questão de quem tem o direito de definir o que é bem comum e quais os critérios que o definem. De quem é o interesses que pode ser definido como interesse nacional, quando os interesse dos desalojados colidem com os dos futuros beneficiados? Será que pode ser utilizado um mero cálculo utilitário, em que o número de beneficiados é maior do que o das vítimas, para negar às comunidades pobres e vulneráveis o direito à vida e aos meios de subsistência? É legítimo o Estado declarar um conjunto de interesses parciais - os do lobby dos agricultores ricos, dos industriais e dos empreiteiros - como sendo sinônimo do bem comum? O NBA desafiou, assim, o próprio princípio de que o Estado, por definição, age no interesse público, tendo pedido judicialmente uma revisão independente da totalidade do projeto e dos seus custos ambientais, econômicos e humanos. Além de ter levantado a questão da ilegalidade das práticas do Estado (como, por exemplo, a ausência de estudos ambientais que deveriam ter sido realizados antes do processo de construção, como determina o Ministério do Ambiente), o NBA defendeu também que os custos negativos, em termos humanos e ecológicos, das grandes barragens superam em muito os seus benefícios. Em resposta à petição, o Supremo Tribunal suspendeu os trabalhos de construção da barragem de 1995 até 1999, enquanto pedia aos três governos estaduais relatórios sobre o progresso da reabilitação dos "desapossados", bem como as providências futuras em relação a essas comunidades, em conjunto com rápidas pesquisas e planos ambientais para a superação dos perigos. Nas audições de 1999, os conselheiros do governo do Estado de Gujarat pediram ao tribunal que desse um claro sinal a favor da barragem, para que os investidores estrangeiros se sentissem incentivados a investir no projeto (Sathe, 2000). É difícil calcular qual o peso que este argumento teve na de493

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cisão do Tribunal de permitir a retomada da construção, apesar de não terem sido feitos muitos progressos na avaliação da reabilitação ou do ambiente. No entanto, este argumento reflete as prioridades e preocupações do governo de Gujarat, que escolheu privilegiar o direito à segurança do investiment? estrangeiro sobre os direitos fundamentais dos seus próprios cidadãos. E curioso verificar que foi agora revelado que o projeto Narmada, promovido durante anos pelo governo do Estado como sendo a "linha da vida de Gujarat", (já que iria proporcionar água potável e infra-estruturas de irrigação para as áreas propensas a secas de Saurashtra e Kachch 15 ), tinha objetivos completamente diferentes. Em 1996, anunciou-se que a água da barragem seria vendida a empresas privadas a preço de mercado, uma oferta que diversas grandes empresas de fertilizantes, cimento, petroquímica e química podem aceitar como uma alternativa mais econômica à desalinização da água do mar. É também preocupante que o tribunal tenha recusado levar em consideração a questão geral da utilidade das grandes barragens, justificando esta recusa com o argumento de que as questões políticas devem ser resolvidas pelo governo e pela administração, ao mesmo tempo que declarava as barragens essenciais para o progresso econômico. Com base na doutrina da separação de poderes, esta defesa da limitação dos poderes por parte do poder judicial em abordar assuntos políticos, de maneira a não se intrometer em áreas da competência administrativa, revelou-se uma surpresa e um desapontamento depois de mais de uma década de ativismo judicial, e cinco anos depois do NBA ter dado entrada na petição. No entanto, o julgamento Narmada não é nenhuma anomalia na história de limitação de poderes do Supremo Tribunal no contexto de petições em nome do interesse público que desafiaram grandes projetos de desenvolvimento e infra-estrutura na última década. Como salienta Upadhyay (2000), está em consonância com a tendência do poder judicial de insistir sobre o executivo para que tome decisões corretamente em vez de decisões corretas. O Supremo Tribunal freqüentemente deixou à consideração do Governo decidir sobre a natureza A. Co~is_são de Revisão Independente do Banco Mundial (Morse e Berger, 1992) levantou sér'.as duvidas s~bre esta pretensão, uma vez que não encontrou provas de um planejamento séno para este fim. 15

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dos projetos públicos para a melhoria dos padrões de vida dos cidadãos e resolver conflitos de interesse provocados por perspectivas opostas sobre o desenvolvimento. Neste caso, o tribunal considera ser o seu papel verificar se todos os aspectos foram levados em consideração e se as leis sobre a terra foram cumpridas, mas não se a decisão está correta ou errada. Curiosamente, o tribunal tomou uma posição completamente diferente nos casos de proteção ambiental. Nem as questões técnicas nem as políticas o levaram a aplicar a limitação de poderes quando procurou reconciliar o desenvolvimento com considerações de ordem ecológica. O tribunal procurou desenvolver uma jurisprudência ambiental rica para compensar a indiferença administrativa, mas tem preferido manter uma atitude defensiva de não-interferência nas decisões administrativas sobre projetos de infra-estrutura (Upadhyay, 2000). Décadas de resistência por parte das vítimas do desenvolvimento no vale do Narmada, que suportaram o peso da repressão e da violência estatais, não levaram a repensar as questões básicas levantadas pelo movimento: o deslocamento forçado e a destruição ecológica no interesse do desenvolvimento industrial, bem como a busca de modelos alternativos de desenvolvimento ambientalmente sustentáveis e socialmente justos que respeitem a diversidade cultural e o direito das comunidades a determinar o seu próprio modo de vida e seus meios de subsistência. Depois de o Banco Mundial ter retirado o financiamento à barragem Sardar Sarovar no rio Narmada, o governo de Gujarat lançou papéis no país e no exterior para reunir o capital necessário. Continuaram as tentativas de atrair o financiamento multinacional, que está fora do controle democrático em qualquer dos países envolvidos, para o financiamento da barragem de Maheshwar, no rio Narmada.

6. A ÁRVORE NEEM INDIANA EM JULGAMENTO EM MUNIQUE

A história da luta em torno da árvore Neem indiana serve para ilustrar sete teses sobre o pluralismo jurídico supranacional e subnacional, o papel do Estado simultaneamente como arquiteto e vítima da transnacionalização do direito e, por fim, a contribuição das ONGs para a mobilização de resistência e a criação de um direito alternativo. 495

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Nos dias 9 e 10 de maio de 2000, o destino da árvore Neem indiana esteve suspenso na sala 3.468 do Instituto Europeu de Patentes, em Munique (Alemanha). Em causa estava a legitimidade de uma patente para um método de preparação de um óleo com propriedades pesticidas, extraído das sementes da árvore, uma das 14 patentes de produtos derivados da árvore Neem indiana concedidos pela autoridade de Munique. A empresa transnacional norte-americana W.R.Grace e o Departamento norte-americano para a Agricultura, em conjunto donos de seis dessas patentes, eram representados por uma sociedade de advogados de Hamburgo. Alinhada contra eles estava uma coligação transnacional de peticionários requerendo a revogação da patente: Vandana Shiva, diretora da Research Foundation for Science, Technology and Ecology 16; Linda Bullard, presidente da International Federation of Organic Agricultural Movements 17 e Magda Alvoet, ministra belga da Saúde e do Ambiente. Eram representados por um professor suíço de Direito da Universidade de Basiléia. Os representantes dos interesses químicos norte-americanos permaneceram em silêncio durante os dois dias de audiências. Era o silêncio dos poderosos, daqueles que sabiam que o tempo, o dinheiro e o governo dos EUA estavam do lado dos interesses econômicos norte-americanos. O Instituto Europeu de Patentes ouviu os eloqüentes argumentos políticos de Vandana Shiva sobre a biopirataria e o colonialismo intelectual, bem como o testemunho do agricultor do Sri Lanka Ranjith de Silva sobre a ilegitimidade moral de uma patente que menospreza séculos de sabedoria tradicional local. Mas o que acabou pesando na decisão do Opposition Division Bench foram os valores para a centrifugação, filtração e evaporação fornecidos pelo testemunho de Abhay Phadke, dono de uma fábrica indiana. A sua empresa, nos arredores de Delhi, tem usado, desde 1985, um processo muito semelhante ao patenteado pela empresa multinacional e pelo Departamento da Agricultura norte-americanos para fabricar o mesmo produto na Índia. Ao fim de uma batalha legal de cinco anos, no dia 1O de

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maio de 2000 o Instituto Europeu de Patentes revogou a patente com base no fato de o processo patenteado pelos norte-americanos não trazer qualquer novidade. A luta em torno das patentes relacionadas à árvore Neem pode ser utilizada para ilustrar sete teses sobre a transnacionalização do direito e o pluralismo jurídico, que traçam os contornos do papel sujeito a restrições mas central do Estado e a importância das ONGs e dos movimentos sociais neste processo: i

6.1. Globalização hegemônica versus globalização contra-hegemônica

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Ao contrário do ponto de vista expresso no jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung, o Instituto Europeu de Patentes, em Munique, não foi o palco do conflito entre o Oriente e o Ocidente, mas entre duas visões de globalização e sobre o rumo do processo. Como em Seattle, os adversários na batalha eram, de um lado, os proponentes de uma globalização neoliberal em nome do lucro e, do outro, os seus oponentes da sociedade civil globalmente ligados em rede. Como atores em uma sociedade civil global emergente, movimentos de agricultores e ONGs ambientalis·tas indianos ligados transnacionalmente em rede estão entre os mais fervorosos rivais de um novo regime jurídico internacional de "direitos de propriedade intelectual", que permite às empresas transnacionais do Norte um acesso fácil e econômico aos recursos naturais do Sul, transformando a herança comum em mercadoria e colocando em perigo a biodiversidade das culturas agrícolas, ameaçando os meios de subsistência dos produtores primários pobres e forçando os consumidores de sementes e medicamentos naturais do Sul à dependência e freqüentemente à destituição. Estes movimentos fazem notar que os países capitalistas do Norte se industrializaram sem as restrições do regime de patentes que agora impuseram ao mundo em desenvolvimento (Shiva et al., 2000). A questão central das suas lutas na arena jurídica e política local, nacional e transnacionalmente é a seguinte: quem, e segundo que normas, estabelece as regras para os processos de globalização? Estes movimentos estão levantando questões sobre segurança alimentar e direitos dos agricultores e, em um nível mais geral,

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'Fundação de Investigação para a Ciência, Tecnologia e Ecologia. (N. da T.) 'Federação Internacional dos Movimentos para a Agricultura Orgânica. (N. da T.)

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situando as questões na esfera da justiça social, da democratização do governo global e da legitimidade das instituições e dos regimes jurídicos internacionais. Por exemplo, o "tribunal das sementes" (seeds tribunal) transnacional, organizado em 24 e 25 de setembro, em Bangalore, por várias ONGs, grupos de mulheres, sindicatos de trabalhadores agrícolas e movimentos de agricultores, recolheu testemunhos de agricultores indianos que falavam da venda de rins por membros da família para cobrir os custos crescentes dos fatores de produção agrícolas; de suicídios de agricultores apanhados em uma malha de dívidas devido ao elevado preço das sementes, estabelecido por empresas multinacionais, e por subseqüente perda das colheitas; da inadequação e má qualidade da distribuição pública das sementes, que facilita a penetração de multinacionais estrangeiras; do aumento da dependência comercial dos pequenos camponeses e da destruição da biodiversidade nas suas regiões. As organizações de agricultores aprovaram uma resolução pedindo que multinacionais como a Monsanto "Deixem a Índia", fazendo eco do slogan de Mahatma Gandhi, criado em 1942 no calor do movimento nacional contra o domínio britânico. Estas organizações propuseram um boicote às sementes das filiais indianas das multinacionais até que estas se tornassem independentes dessas firmas estrangeiras. Também prometeram solenemente manter a soberania dos agricultores sobre os gêneros alimentícios e as sementes, protegendo-a das companhias multinacionais, e declararam que não obedeceriam a qualquer lei de patentes ou lei sobre a proteção da variedade vegetal ao abrigo do regime da OMC, que considera as sementes propriedade privada destas empresas. Os agricultores exigiram ainda a exclusão das sementes e dos gêneros alimentícios do regime Trade-Related Intellectual Property Rights (TRIPs) 18 da OMC e defenderam a reintrodução de restrições quantitativas nas importações agrícolas, removidas recentemente pelo governo da Índia em consonância com as normas da OMC para a liberalização do comércio, um ponto que irei abordar posteriormente.

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Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio. (N. da T.)

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6.2. Estados ardilosos em vez de Estados fracos? Debatendo os limites à autonomia do Estado O júri do "tribunal das sementes" pedia um papel ativo e central do Estado na proteção dos meios de vida dos agricultores na Índia. Recomendou a melhoria da distribuição pública das sementes, o estabelecimento de instrumentos reguladores para assegurar a existência de fatores de produção agrícola de boa qualidade, uma moratória de 10 anos na introdução da engenharia genérica na alimentação e na agricultura, a representação dos agricultores na comissão de preços agrícolas e a garantia de preços mínimos de apoio. Mas o diagnóstico do júri sobre o "silêncio do Estado" na questão dos direitos dos agricultores coexiste incomodamente com as suas próprias exigências de alterações na recente legislação indiana visando proteger os interesses dos agricultores, uma vez que o Estado tem permanecido tudo menos silencioso, como é testemunhado pela (Segunda) Alteração à Lei das Patentes, de 1999, pela Proposta de Lei para a Proteção da Variedade das Espécies Agrícolas Vegetais e Direitos do Agricultor, de 1999, e pela Proposta de Lei para a Diversidade Biológica, de 2000, atualmente em discussão no parlamento. Uma dura crítica ao Estado, aliada a um apelo à proteção da segurança e soberania alimentares nacionais, além dos direitos dos produtores primários pobres, reflete alguma ambivalência dos atores da sociedade civil no que toca ao Estado, que é visto como um opositor, mas também como um aliado. Em condições de globalização econômica e jurídica, o Estado é considerado simultaneamente cúmplice dos interesses das empresas multinacionais e protetor da soberania nacional. No entanto, será que podemos contar com o Estado indiano para reformar a sua política, favorecendo os seus cidadãos vulneráveis e não o capital global? A resposta depende de termos tendido ou não a confundir Estados ardilosos com Estados fracos. Os Estados fracos não podem proteger os seus cidadãos, enquanto os Estados ardilosos sequer se preocupam em oferecer a segurança limitada que poderiam oferecer. A harmonização global de diferentes sistemas nacionais de direito de patentes ilustra algumas das complexidades da globalização jurídica e o papel contraditório que o Estado tem nela. Não existe um direito das patentes global; esta área ainda é regulamentada nacionalmente, com exceção da União

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Européia. Contudo, o regime TRIPs da OMC impõe fortes restrições à soberania dos Estados-nação no que diz respeito ao conteúdo e ao calendário das leis nacionais, que têm de ser adequadas ao novo regime da OMC. A amplitude da autonomia nacional sob o sistema sui generis disponível como opção dentro do TRIPs, que as ONGs gostariam de ver explorado pelos governos, permanece altamente discutida, com a crescente pressão contra ele por parte das nações exportadoras de tecnologia genética, como os EUA e a Argentina. No entanto, apesar da transnacionalização jurídica e da crescente importância da OMC, o Estado ainda continua a ser uma importante arena de produção de Direito. Apesar da Índia possuir um elaborado quadro jurídico nesta área, viu-se forçada a rever suas leis de patentes, que antes permitiam apenas patentes de processos e agora passam a incluir patentes de produtos. É também obrigada a introduzir legislação sobre a variedade das produções de origem vegetal e sobre os direitos do criador, visando permitir, pela primeira vez, o patenteamento de produtos agrícolas e farmacêuticos. Se houvesse vontade política, o Estado poderia promulgar e implementar leis, no âmbito da OMC, que protegessem os interesses dos agricultores, consumidores e produtores indianos. A campanha em torno da questão genética na Índia salientou, entre outros aspectos, que o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt) e a OMC exigem dos Estados-membros a elaboração de um regime de patentes ou um sistema sui generis eficaz que proteja as espécies vegetais recentemente desenvolvidas, não impondo aos Estados a adoção do modelo da International Union for the Protection of New Varieties of Plants (Upov). 19 Desta forma, o Estado indiano pode optar por um sistema sui generis mais adequado ao contexto indiano. O sistema da Upov é baseado nas necessidades dos países industrializados, onde a agricultura é uma atividade comercial, ao contrário da Índia, que tem uma grande maioria de pequenos agricultores marginais. Este sistema protege os direitos das empresas de sementes, que são os principais produtores em um ambiente no qual a pesquisa sobre sementes é conduzida em instituições privadas com fins lucrativos, estando assim em desacordo com a realidade indiana, na qual os agricultores são criadores que 1

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individual ou coletivamente conservaram os recursos genéticos e produziram sementes, e onde a maioria da pesquisa é feita em instituições públicas. Em conseqüência, a campanha em torno da questão genética defende a promulgação, pelo Estado, de legislação sui generis para a proteção dos direitos dos agricultores como produtores e consumidores de sementes. Foi falta de conhecimento técnico, ignorância das opções disponíveis no acordo da OMC, indiferença quanto às necessidades dos produtores primários pobres ou leitura atenta consciente das políticas contra estes devido à pressão exercida por poderosos lobbies nacionais e internacionais, ou uma soma de todos estes fatores o que levou o governo indiano a remover as restrições quantitativas à importação de 714 artigos, incluindo 229 mercadorias agrícolas, em março de 2000, depois de ter perdido a batalha legal contra os EUA na OMC? O governo afirmou que a sua nova política de exportação e importação cumpria as suas obrigações junto à OMC e beneficiava os consumidores ao autorizar a importação de produtos mais baratos. No entanto, ao abrigo do acordo da OMC, a Índia não era obrigada nem a remover as restrições quantitativas no ano de 2000 nem a selecionar os artigos específicos que escolheu. De fato, se o Estado tivesse exigido a permanência das restrições quantitativas por motivos de segurança alimentar e pelo impacto negativo da sua remoção no emprego e nos modos de vida dos produtores primários pobres, poderia ter mantido a maioria das restrições quantitativas. O fato de o Governo ter escolhido defender a continuação das restrições quantitativas com base nos seus problemas na balança de pagamentos debilitou seus argumentos, dado que já não tem nenhum déficit nas trocas comerciais. É difícil dizer se esta foi ou não uma estratégia deliberadamente destinada ao fracassso. No entanto, o contraste com as políticas das nações fortemente industrializadas não podia ser maior. Os EUA, o Japão e a maioria dos governos europeus aumentaram os subsídios aos seus próprios agricultores, assim distorcendo gravemente os preços agrícolas e conseqüentemente calculando os índices de produtividade ou competitividade com base em falsos preços relativos. Em uma situação como essa, ao impor, por exemplo, uma tarifa de 80% às importações de arroz por parte da Índia, de acordo com as prescrições da OMC, e depois de ter levantado a restrição quantitativa ao arroz, é pouco provável que o Governo possa dar uma pro5

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teção adequada aos produtores de arroz indianos. Em conjunto com o arroz, o chá, o café, a borracha, as especiarias, o leite e os vegetais, o peixe e mais de 60 derivados de peixe podem agora ser livremente importados. O Fórum Nacional de Trabalhadores da Pesca, no seu forte protesto contra a suspensão das restrições quantitativas, alertou para a possibilidade de quebra nos preços do peixe, como resultado de importações em larga escala, vendo este último passo do governo à luz de uma longa história de tentativas de liberalizar o regime de pesca em alto-mar. Além disso, como afirmaram muitos críticos indianos da Rodada do Uruguai, existem muitas regras na OMC que desequilibram ainda mais a balança contra os países do Sul, ao contrário da retórica sobre a criação de um campo de jogos igualitário (Khor 2000a, 2000b). Teoricamente, talvez os países do Sul, os perdedores finais do regime TRIPs, anulem estas perdas com os lucros obtidos pela liberalização do comércio agrícola e têxtil. No entanto, a maioria dos países do Norte, que têm sido muito lentos no cumprimento de seus compromissos nesta área, pode recorrer à ampla provisão de salvaguarda para o comércio agrícola e têxtil. O acordo TRIPs não tem nenhuma provisão deste gênero, que permita aos países repor temporariamente as tarifas alfandegárias no caso de as perdas dos produtores domésticos serem superiores às esperadas (Howse, 2001). Assim, embora os custos da implementação do regime TRIPs tenham se revelado muito superiores ao previsto para a maioria dos países em vias de desenvolvimento, o acordo concede apenas um determinado período de carência para a sua implementação. Conseqüentemente, muitos desses países, incluindo a Índia, gostariam de reabrir as negociações dos compromissos que assumiram na Rodada do Uruguai, quando tinham pouca informação e se sentiam ameaçados pelo unilateralismo dos EUA (Khor 2000a, 2000b).

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tratados internacionais, por vezes contraditórios. A Índia, em conjunto com países africanos e cinco países da América Central e Latina, pediu uma revisão e uma emenda do Acordo TRIPs da OMC, bem como uma moratória de cinco anos para a sua implementação. A Organização da Unidade Africana (OUA) e a Índia exigiram que o regime Trips ficasse em consonância com a Convenção sobre a Diversidade Biológica e a Iniciativa Internacional da FAO sobre os Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e a Agricultura, o que impossibilitaria patentear formas de vida e protegeria as inovações das comunidades agrícolas locais. O governo indiano declarou que as suas obrigações sob o regime Trips conflitam com algumas das suas obrigações ao abrigo da Convenção sobre a Diversidade Biológica. No entanto, as sanções do Trips, que permitem, por exemplo, represálias em qualquer área do comércio, são muito mais fortes do que os débeis mecanismos das leis ambientais internacionais. As ONGs indianas, em conjunto com redes transnacionais de advocacia, como a Genetic Resources Action International (Grain) ou a Rural Advancement Foundation International (Rafi), por exemplo, têm utilizado esta pluralidade de regimes jurídicos transnacionais para questionar a legitimidade do regime Trips da OMC, que contraria provisões da Convenção sobre a Biodiversidade, ou o Protocolo sobre Biossegurança sobre formas de vida geneticamente modificadas, que não está em conformidade com a anterior Iniciativa Internacional da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), que reconhece explicitamente os direitos dos agricultores às sementes.

6.4. As ONGs como mediadoras e criadoras de leis

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A prolongada luta contra a Proposta Dunkel e o Acordo Trips mostra avariedade de contribuições vitais para a glocalização jurídica dadas pelas ONGs e por movimentos sociais indianos com ligações transnacionais. Ao mesmo tempo que representavam os interesses dos agricultores indianos nos fóruns internacionais e transnacionais, transmitam informações sobre as complexidades jurídicas para a imprensa nacional e as comunidades locais. As suas campanhas não só criaram uma consciência pública das questões envolvidas, como mobilizaram agricultores e exerceram pressão sobre o Estado e

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6.3. Uma pluralidade de regimes jurídicos supranacionais incompatíveis Duas das estratégias adotadas pelos Estados subalternos confrontados com condicionalidades do ajuste estrutural e com vários regimes jurídicos supranacionais foram, por um lado, o atraso na implementação em nível nacional e, por outro, a exploração da existência de uma pluralidade de leis e

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desafiaram, nos tribunais norte-americanos e europeus, a concessão às empresas transnacionais do Norte de patentes sobre produtos agrícolas e farmacêuticos baseados nos recursos genéticos do Sul. Mas além de servirem de mediadores entre o nível local e o nacional e os fóruns supranacionais e questionarem os novos regimes jurídicos em várias arenas políticas e jurídicas, as ONGs e os grupos de advocacia também estão envolvidos na produção de normas alternativas, combinando normas de diversas fontes. Em 1998, a campanha em torno da questão genética esboçou uma Convention of Farmers and Breeders (COFaB) 20, como um tratado alternativo à Upov, que reconhece tanto os direitos coletivos da comunidade quanto os direitos individuais dos agricultores como enquanto criadores; reconhece o seu conhecimento comum proveniente de fontes orais e escritas; estipula que o criador perde o seu direito se o "potencial de produtividade" constante do ato de inscrição tiver perdido validade ou se não tiver a capacidade de cumprir as exigências dos agricultores, levando à escassez de material para plantação, ao aumento dos preços de mercado e a monopólios; garante a cada Estado contratante o direito a avaliação independente da execução da variedade antes de permitir a sua proteção. O relatório de 1999 do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas para o Desenvolvimento Humano comenta este tratado como: uma proposta internacional forte e coordenada [que] oferece aos países em vias de desenvolvimento uma alternativa à legislação européia sobre a necessidade de proteger os direitos dos agricultores a poupar e reutilizar as sementes e a cumprir os objetivos de segurança alimentar e nutricional dos seus povos (UNDP, 1999: 74).

6.5. Fragmentação do direito estatal e soberania fraturada A transnacionalização do direito é acompanhada de um aumento da sua fragmentação e por uma fratura da soberania do Estado. A ação estatal torna-se cada vez mais heterogênea, perdendo o direito estatal o seu caráter unitário 20

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e coerente. Por exemplo, o direito indiano de patentes precisa ser alterado para ficar em conformidade com diversos regimes jurídicos supranacionais, que podem ser contraditórios, como acontece no caso do regime Trips da OMC e da Convenção sobre a Diversidade Biológica. Por outro lado, a política populacional indiana, fortemente influenciada pelo Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA) e pela Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), precisa estar de acordo com o Programa de Ação da Conferência das Nações Unidas do Cairo, fundada nos direitos da reprodução, e com a Emenda Tirhat do Congresso norte-americano, que proíbe apoio financeiro dos EUA a qualquer programa nacional para a população que permita o aborto. Nos anos 90, as condições de empréstimo do FMI e do Banco Mundial exigiam amplas alterações no direito fiscal indiano, nas leis de licenciamento industrial e na liberalização do comércio. A diluição do direito do trabalho exigida por estas instituições iria contrariar garantias constitucionais, mas também colidir com os acordos com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e com as provisões da ICESCR. A coexistência destas diferentes lógicas de regulação por parte de diferentes instituições do Estado ou de diferentes áreas de regulação e, por vezes, dentro da mesma área, produz uma nova forma de pluralismo jurídico, um pluralismo no seio do direito estatal, por um lado associado à transnacionalização do direito (Santos, 1995: 118) e, por outro, à operação simultânea de múltiplas normas transnacionais sem sua incorporação no direito doméstico. Por exemplo, a pluralidade de leis transnacionais sobre regimes de biodiversidade também é duplicada nacionalmente. A Proposta de Lei para a Biodiversidade 2000, recentemente apresentada e que está sendo discutida no Parlamento indiano, prevê o estabelecimento de um novo órgão regulador a Autoridade Nacional para a Biodiversidade (ANB). No entanto, a ANB ' . não pode ser a única autoridade a lidar com os biorrecursos ou com as exigências relativas aos direitos aos biorrecursos, um fato que a proposta de lei não prevê nem reconhece, não especificando nem a jurisdição da ANB sobre outros órgãos com os quais compete, nem a aplicabilidade das outras leis que regulam entram os direitos de propriedade intelectual e o acesso aos biorrecursos. As suas provisões podem não estar em harmonia com uma lei mais

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antiga, a Lei para os Fármacos e Cosméticos, com a nova Proposta de Lei para os Indicadores Geográficos ou com a Proposta de Lei para a Proteção das Variedades Vegetais e Direitos dos Agricultores. A Proposta de Lei Sobre Biodiversidade segue-se à Convenção sobre a Biodiversidade de 1992, mas não consegue utilizar as suas provisões para reconhecer as reivindicações dos povos indígenas ou permitir aos requerentes afirmar os seus direitos tradicio~ nais. Ao definir apenas a ANB como autoridade reguladora, o Estado pode na verdade acabar negando às comunidades o direito de defender os seus direitos tradicionais e apresentar reivindicações independentemente do órgão do Estado, especialmente de um Estado que não possui uma adequada base de dados para proteger este tipo de reclamações e de direitos. Dada a história do Estado indiano, tal centralização de todo o poder regulador em um órgão burocrático, com pouca participação da sociedade civil, pode ou não ser eficaz contra a biopirataria praticada pelas empresas multinacionais. O mais certo é ser prejudicial às comunidades locais e aos povos indígenas, apesar de muito falar e pouco fazer para o estabelecimento de comitês locais para a biodiversidade. 6.6. Pluralismo jurídico e a emergência do cidadão ardiloso?

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de uma rígida escolha binária entre regulação jurídica nacional ou global, ou entre o direito estatal e o direito da comunidade, este capítulo tentou esboçar os contornos de uma emergente e nova paisagem de pluralismo jurídico, um mosaico de regulação supranacional, legislação nacional, tratados e políticas populares alternativos, direito de projeto